domingo, 20 de março de 2011

QUARTO ACTO - continuação XI


Rodopiava sem o mesmo receio.

O corpo de Fernanda descansa sentado na pequena pedra de granito que faz de degrau à frente do jardim do senhor ministro.

O meu medo, mais uma vez, é de a perder nestas etapas em que a sua mente desliza para o desconhecido.

A água que bebe serve agora para seu consolo, renova-lhe as cores e não parece tão perdida.

Mantém o olhar preso ao chão, as mãos trémulas agarram o copo com dificuldade.

Volta a levá-lo à boca lentamente e bebe sem pressas recebendo a frescura renovada do néctar transparente.

Levanta os olhos em direcção ao céu. Procura os pássaros amigos que ainda agora pelas nuvens passeavam.

Recordo as palavras mágicas que me disse enquanto dormia naqueles dias de silêncio polvilhados com esperança.

Recordo acima de todas as outras, estas palavras:


Do vale à montanha

Da montanha ao monte

Desci na vontade de [encontrar] / engolir a tua sombra

De [encontrar] / engolir o teu mistério

De trocar os secretos caminhos

Por outros que teremos de encontrar

Em horizontes sem rios

Em rios sem pontes

Na Luz, no centro desnudado daquele vale


Caminhamos sem silêncios

Caminhamos desalinhados

Pisamos a imagem desfocada

No espelho deste leito refrescante

Que ao contrário de outros

Vai assim subindo

Do vale à montanha

Da montanha ao monte


Por penhascos pretos o tempo volta atrás

Volta a celebrar tudo aquilo que já fomos

Volta a encantar

Por nos transportar

Até ao cheiro da infância

Até ao púrpura que se cola aos dedos

Até ao doce que nos afaga a língua

Até aos prados onde nos conhecemos


Do vale à montanha

Da montanha ao monte

Desci na vontade de [encontrar] / engolir a tua sombra

Desci na vontade de encontrar

E engolir o teu mistério

Cavalo de sombra


adaptado de Cavaleiro Monge ( Fernando Pessoa )


Os momentos que nos colam a memória ao sonho e ao pesadelo são os mesmos. Enquanto fugíamos do centro do inferno cavalgando o fiel Felício, nada existiu, nada mais existiu nem nada se sonhou. Fernanda recorda os mesmos instintos e olha-me tão intensamente que os meus pensamentos passaram a ser seus. Tento fugir para um outro lado e não consigo. Nada do que eu penso lhe escapa.

A frieza inicial da experiência é substituída pela clareza, pela partilha, pelo sentimento de infinito que me invade neste instante. A viagem é comum e o azul é claro como o céu. O meu adversário passou a ser o nosso, o meu desejo, o meu destino, as minhas ilusões, todos os cansaços e todas as memórias são agora nosso património comum.


( LIVRO DE BERNARDO )


Com este pedaço de história se podem construir milhares de outras histórias, tal como um rio se pode transformar em mar, o mar em Oceano e o Oceano em vida. O que sai do mar tem força para transformar a vida, a mesma que cresce nas ondas, na areia, no princípio da selva, nos seus segredos, nas suas sombras. Da planície subi à montanha, desci à raiz das sequóias, até ao caule, o mesmo que se esconde nas profundezas da gruta mais funda. A vida encanta-se quando salto do cimo dos rochedos, quando fujo aos predadores, quando lhes dou caça. A vida não descansa, oprime mas liberta-me das angústias e dos medos. Dança comigo depois da noite, depois da lua, depois do gosto amargo que por vezes a pinta com cores escuras, que a transforma em pó e em vento e em miragem. A vida arrasta-se continuamente desde o socalco do seu princípio. Renasce por mistério nesta desmedida forma de loucura que nos esmaga, nos embriaga, nos ensina, nos perdoa, nos mima e nos alimenta.

Cedo percebi que nada mais fazia sentido. O poder da adivinhação que me foi estorvando os dias e as noites com loucura estão à beira do fim. Não me apercebi do vulto que pairava por cima de nossas cabeças. Não fui capaz de antecipar esta miragem que tudo destruiu e foi em mim que cresceu a vontade imensa em fazê-la acontecer.

Quis surgir depois da madrugada. Tudo aquilo que anteriormente se foi montando não é mais que um pedaço de sonho, uma amálgama de ideias, de desconexos pensamentos cruzados a preto-e-branco e sem a magia da tua presença. Vou voltar a adormecer. Talvez o sonho me possa trazer de novo a doçura da tua voz.


FIM.


sexta-feira, 18 de março de 2011

QUINTO ACTO - continuação X


Os únicos observadores aqui presentes vão descendo das alturas. O vento sopra com grande intensidade. Alguém o tentou e a intensa ventania ameaça tornar-se num temporal com proporções de ciclone. A água acabou o jejum neste final de Verão e finalmente começa a cair em bátegas fortes e compassadas. Ninguém se pode já queixar da sua falta. A corrente desce dos céus acompanhada por intensa trovoada. Rajadas fortíssimas dificultam-me a tarefa de encerrar as janelas e as portadas. A água tenta forçar a sua entrada nas divisões. Lefébvre vai chegar todo encharcado ao hospital caso ainda vá a caminho. A água da chuva vai ajudar a limpar a cidade pantanosa ao aumentar de caudal pelas ruelas outrora empoeiradas. Finalmente o Tejo vai poder respirar de algum alívio. O rio cemitério gastou todas as lágrimas quando recebeu os corpos dos milhares de mortos que caíram com a cidade. Ele próprio cresceu com a ajuda do mar enlouquecido e ajudou a destruir muito daquilo que ainda se conseguia manter de pé por um qualquer milagre. Presa de um destino cruel, foi-me difícil acreditar na vida como sobrevivente do terremoto. A vida transformou-se definitivamente depois daqueles minutos de angústia que tudo mudaram. Um deserto nasceu, uma solidão incomparável tomou conta de mim. Um frio impossível move-se como um réptil dizendo-me que nunca mais verei quem eu procuro. Quero voltar atrás, quero voltar para os dias antes da tragédia e sonhar com um novo Novembro sem o desastre. Um Mundo diferente onde as águas são calmas, o céu sempre azul, e onde a terra se mantenha sempre firme, fiel à sua missão.
As árvores surgem verdes e as flores perfumadas. O cheiro dos cavalos paira no ar, a luz invade o quarto, a casa toda. A mão no peito do meu filho protege o seu sono. A floresta está toda ardida e os tremores de terra continuam a fazer-se sentir. É difícil recordar as coisas neste lugar onde Deus deixou de falar. A fogueira já está acesa, o novo adormecer transporta mais um pesadelo, um em que tudo arde e apenas ficam as cinzas para contar a história. O ciclone é quase furacão e a morte já é vista como esperança. Lefébvre é lindo, um amigo que não imaginava saiu do túnel mascarado de esperança. O ruído incomoda e a sujidade é tremenda. Vai demorar dias para por tudo limpo e no seu devido lugar. Corro no meio da floresta ardida com o meu filho a acompanhar-me. Fugimos da desgraça e do medo mas somos perseguidos e as perguntas surgem umas atrás das outras sem parar. Vou para sempre tomar conta de ti porque essa é a minha obrigação. Já não há nada para conversar e a única vontade que me acompanha é a vontade que tenho de sobreviver a todo o custo. A chuva não pára de cair, o céu vestiu-se de um cinzento escuro, muito escuro, tão escuro que recordo os dias em que desejei morrer quando era jovem, quando me usavam para tudo o que não interessa recordar. O meu filho tapa os ouvidos para não me ouvir lamentar. As pontes são cada vez mais altas, as recordações pesadas, as despedidas dolorosas e o medo de falhar simplesmente insuportável. O calor é o mais importante, manter este calor aceso para sempre e assim derrotar a escuridão. A trovoada tomou conta da cidade, os trovões são imperadores e a água abastece os lugares escondidos com inclemência. Se eu morrer quem te irá proteger meu filho? Não fales, não grites pois os Libertadores podem escutar qualquer lamuria, qualquer gesto, qualquer cheiro de tristeza ou de doença. Temos de fugir daqui sem que dêem conta da nossa fuga. As lareiras voltaram a acender-se e o cansaço tomou conta de nós. Andamos sem saber ao certo que rumo tomar. São mais as dúvidas que as certezas. A fome tomou conta de nós. Esqueci Lefévbre e os dias são feitos de mentiras. O amor parece ter desaparecido, só o meu amor por ti, meu filho, se mantém eterno. E é essa a certeza única que me faz continuar. Não quero que me vejas chorar agora que os vidros se começaram a partir e a música deixou de se fazer escutar. Uma pequena maravilha pode sempre acontecer e tudo porque não se deve deixar acabar a esperança. Afinal, talvez se deva agradecer aos Libertadores por tudo o que somos e por tudo o que existe. Agradecer pelo meu filho, pelo nosso filho que agora descansa, agradecer as memórias, a relva verde e agradecer o calor deste mundo quando se mantém quente.
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sábado, 12 de março de 2011

QUINTO ACTO - continuação IX




Subi demasiado depressa antes que a ilusão do momento me transportasse novamente para onde não desejava regressar. A força dos Libertadores nasceu com a motivação invisível de sugar a linguagem dos homens. Descobri que Bernardo não possui ainda a força que ele próprio gostaria. Os espaços de regresso, de sonho ou ilusão, acabam misturados nesta paisagem difusa em que nada é aquilo que se representa. A própria Luz desapareceu, como as cores, como a linha longínqua do horizonte, como o discurso. Deixei de ver e de escutar. Resta somente a voz que me vai ditando estas palavras sem que as force. Derramei o medo e a justiça pois não fazem qualquer sentido por aqui. O desejo desapareceu. Não tenho corpo. Os Libertadores trabalharam estas paragens e não deixaram nada ao acaso. A página está em branco, está em preto, suja, encardida, baça, desfocada, dormente e ausente. A minha história acabada terá aqui um recomeço, um que me foi escondido. Voltar a ver a luz do sol, caminhar nas galerias relvadas dos planaltos de Queluz e nas praias de areias finas de Algés. Quando me descreverem novamente o gosto da tua pele, o delicado rendilhado das tuas palavras e do teu olhar, tudo voltará a ser como era antes. O voo destes pássaros, destes mensageiros amigos, acalmou de vez a minha solidão. Os dias não mais se anteciparão, as palavras não serão adivinhadas nem os ventos surgirão do local exacto em que antes se tinham dado a conhecer. Esses exercícios de pura insanidade, estas bolsas irreparáveis de solidão, acabam de ser destruídos nesta improvável reunião. O ministro acalmou-me com a demonstração clara da evidência relatada. Ao pintor daqueles sonhos e pesadelos que tão claros e cristalinos lhe saíram dos pincéis com inigualável mestria, essas histórias pintadas da antecipação da loucura, do trágico acontecimento, acalmaram-me os receios devolvendo-me o espírito e a raiz de quem sou. Quando deixarmos a presença do ministro, terei tantas coisas a esclarecer com Bernardo. Olho para ele e receio que não consiga entender nem a metade dos meus sentimentos.
Terei o cuidado de não abrir as emoções erradas. As minhas estão por agora mais tranquilas. Não serei o monstro que me estava a ser dado conhecer. Outros experimentaram do mesmo pedaço de irrealidade, o mesmo reflexo misterioso e inexplicável que nos impele para a dúvida, para a ilusão. O poder que se bebe desta malga é doce e torna tudo tão claro, transparente. Não consigo encontrar palavras capazes de o descrever.
Os pássaros fogem. A sua companhia promoveu-me a força necessária para continuar. Voltei a dar os passos correctos em direcção ao que ainda falta percorrer.
- Bernardo, tenho sede! Preciso de um pouco de água. Tenho a boca tão seca que mal consigo arranjar forças para falar.
Páro. Sinto as pernas a fraquejar, o corpo a dar de si, os olhos seguem a vontade das pálpebras. O segredo guardado e agora desvendado deixou-me marcas claras, físicas até, que sinto com maior intensidade. O sistema ameaça desligar-se, ameaça transportar-me para aquele lugar que não desejava revisitar. A escuridão voltou, as forças abandonam-me definitivamente. Aguardo pelo resguardo dos braços de Bernardo que correrão em meu auxílio.
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A estrada devolveu-nos Nápoles. Tanto silêncio e simultaneamente tanta satisfação ao longo do regresso. Com a tarde a chegar ao fim, a baía ficou mágica com a luz do entardecer. Paramos junto a um dos muitos cafés que fica em frente ao porto. Aguardamos envolvidos neste confortável silêncio pelos cappuccinos que pedimos na nossa melhor imitação de italiano. Estamos sob a influência da recente visita a Pompeia. Bernardo resolveu as dúvidas e as antigas inseguranças. Nasceram-lhe asas de esperança. Portas abertas para outras tantas que continuam fechadas. Avançou e os seus olhos reflectem agora essa nova sensação de alegria.
Aquela era a mensagem que gostaria de escutar. Fecha-se no seu silêncio, guarda para si a solidão do momento. As respostas que Pompeia lhe trouxe vieram embrulhadas neste descanso. Que sei eu sobre a alma do meu amado? Que ajuda lhe poderei dar na sua dor? Agora que a tarde desceu e a espuma doce e quente nos pinta os lábios, deixamos que os pensamentos naveguem até ao horizonte que se espraia, até à luz do sol que se despede e onde a vista procura descansar.
Olhos que se cruzam novamente no lugar perfeito, olhos que se despedem, olhos que se entrelaçam e se escondem nas surpresas de cada um. Olhos que se lêem, olhos que se imaginam, olhos que sorriem e lutam por adivinhar o coração. Subimos, depois da delícia e do nascer da noite, para o quarto do Hotel Napolitano. A cama recebeu-nos, o doce escondido de nossos corpos derreteu os lençóis feitos de seda, contou as maravilhas perdidas que fomos redescobrindo às almofadas desalinhadas e o chão acabou por nos abrigar, agradecendo aos deuses o sumo que vai saindo de nossos corpos. A noite entrou pela janela, faz-nos companhia e enreda-se em nós como a maré, transformando-se em gente, transformando-nos em pétalas de flor, em pássaros, em outros que outrora fomos. Fundimos os corpos na companhia do luar que nos ilumina e transforma.
Morremos e renascemos vezes e vezes sem conta nestas horas. A noite persegue-nos, o tapete levanta-nos, a vida transforma-se. Queremos ser todos os seres vivos do Mundo ao mesmo tempo. Agarramos os que já nos aconteceram e todos os outros que ainda seremos. Refugiamo-nos um no outro como um só. A Felicidade existe agora e aqui como nunca antes a sentimos
Voltámos a dar passos correctos em direcção ao que ainda falta percorrer. Acordámos no meio da estrada como num sonho, viajando apaixonadamente pela cor dos nossos beijos. Descemos por um pequeno barco invisível que alguém se entreteve a pintar numa imensidão azul. Como dois condenados, somos incapazes de imaginar um final mais cruel para os nossos actos. O meu príncipe nem sabe como lhe vai saber a mel este meu beijo.


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quarta-feira, 9 de março de 2011

QUINTO ACTO - continuação VIII

São os pássaros que nos recebem de coração aberto quando saímos do refúgio de senhor Ministro. A vontade de falar foi abafada, a voz ficou colada ao céu-da-boca e tudo aquilo que a minha imaginação supôs ficou esmagada perante as imagens da pintura do governante. A vida é um estranho desígnio, uma composição, um tecido fino de cambraia ou organdi que faz uso dos viajantes para com eles tecer eternamente as suas rendas. Gostei de saber que nada me foi antecipado sem que antes a outros a miséria e a desgraça tenha sido igualmente relatada. Uma espécie de loucura começou a tomar conta dos meus dias. Preparei muitas acções para irem ao contrário de tudo o que me ia sendo explicado. Mas até essas tentativas me foram comunicadas, mesmo essas, as que eu ousei tentar alterar, apareciam-me momentos antes em vozes que gritavam em mim as exactas dimensões desses desvios. E assim, mais uma vez, se transformavam em norma. Nada é deixado ao acaso, como uma vil doença, uma maldade acrescida de uma tremenda solidão. E depois tudo começou a ser diferente desde a tua chegada. Os pedidos que fiz para que tudo pudesse voltar a ser como antes começaram a obter algumas respostas. O silêncio que a mim própria impus foi tábua de salvação, foi o meu escudo. Nesse esconderijo senti-me segura, protegida das gélidas situações que fazia acontecer e de todas as outras que me eram transmitidas. Não há nada de bom nesse império vil pois são tremendas as dores causadas pela ruína do seu saber. Fico grata por aqui ter chegado sem qualquer antevisão do que nos foi apresentado. Este retorno da normalidade é uma autêntica bênção, o calor da tua mão é uma autêntica bênção, a vida tal como existe é uma autêntica bênção. Os pesadelos voltarão, como antes, porque é natural que aconteçam. Não serão impostos ou desejados, nem dourados ou prateados, nem coloridos, nem serão dados avisos da sua apresentação. Quando descerem pelas árvores do adormecimento, apertar-te-ei ainda mais na minha direcção para que o teu calor os dissolva até mais tarde, até que numa outra noite mais cinzenta voltem a visitar-me. Dar-lhes-ei de beber com agrado sabendo agora que são, afinal, partes de mim.

- Bernardo, olha quantos pássaros voam lá no alto. Estavam à nossa espera, eu sei que eles estavam à nossa espera. Só me apetece chorar.

Sem saber porquê, as lágrimas começam a correr-me livres pelo rosto abaixo como água num jardim. Estes últimos dias têm sido pródigos em trazer até mim pequenos terramotos. Nada em minha vida é uma certeza, só Bernardo, que depressa tomou conta do meu coração. Nisso não há razão nem tão pouco esclarecimento, só satisfação. As lágrimas continuam a limpar-me o rosto e a toldar-me a visão. Avanço com a mão cada vez mais apertada à de Bernardo sem que a vista consiga focar o chão que vou pisando.



Ei-los a desviar a sua rota, passam atrás de nós, por cima de nós como se soubessem que estamos diferentes. Vieram ter comigo em liberdade para me dar a entender alguma coisa. Sei como interpretar a presença dos pássaros em sonhos, mas eis que aqui eles surgem tão reais, dotados de um comportamento fantasioso. Seremos um do outro assim há tanto tempo? Tantas e tantas portas nos foram escondendo, mantendo-nos afastados como dois estranhos. E que dizer da escolha feita para nos colocarem de novo frente a frente? E digo de novo pois sei que não foi na praça destruída e em ruínas que te vi pela primeira vez. Não sei quantas foram as vezes que passeámos juntos anteriormente, sempre com a mesma dificuldade em encontrar o momento certo para alimentar o coração. Será isso que os pássaros me vêm aqui transmitir? Sinto diferença nestas lágrimas que agora me fogem até ao chão. É seguramente isso que estes pássaros bailarinos nos vêm hoje comunicar.
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terça-feira, 8 de março de 2011

QUINTO ACTO - continuação VII ( livro de Bernardo )



( LIVRO DE BERNARDO )


Vejo umas escadas que subo. Entro num quarto, estranho quarto onde as janelas abertas dão para uma imensa lagoa, talvez mesmo uma enseada onde o mar parece não ter fim. A vista alcança para o outro lado da enseada onde a terra se ergue numa montanha de dois cumes que sobem em direcção ao céu. A imensa montanha domina a paisagem com o silêncio como rei. O mar não se escuta, o vento é mudo e as nuvens parecem ter sido semeadas no azul de forma equilibrada. São muitas as gaivotas que bailam junto ao mar e nada as parece incomodar, nem mesmo as gigantescas cidades flutuantes que descansam em cima da imensidão azul.

De uma das janelas do quarto olho para ao montanha, para o mar, para o desespero perdido, para a ruína, para o que estando longe fica perto, muito mais perto de ti e de nós. Olho e não me consigo alhear da desventura e do pavor. A lembrança de um outro episódio surge no meio desta total ausência de som. Aqui o silêncio ainda é rei e senhor. Aqui vejo passar centenas de corpos ardentes, apavorados, correndo em todas as direcções e em nenhuma. As roupas deixaram de lhes fornecer compostura, alguns atiram-se para o chão rolando desesperados, tentando por cobro ao terrível padecimento. Uma luz imensa com o poder de mil sóis nasceu do centro do planeta tapando por completo o céu estrelado que antes se conseguia contemplar. Toda a vida desapareceu nesse instante neste lugar, o tempo fugiu, as pedras e o ar foram derretidos para sempre. Sem que o pudesse negar, começo a escutar novamente. Não podia ter sido escolhido momento mais inoportuno para que o dom da audição fizesse o seu retorno. É na fronteira da destruição causada pela luz incandescente que brotou das entranhas da terra que me encontro. Os esgares de dor destes milhares de mártires, as vozes, os gritos, são de tal ordem que não nasceram ainda as palavras certas para que os possa descrever. Os corpos desnudados que correm sem labaredas a vesti-los, trazem o rosto coberto de cinzas, os ombros cobertos de cinzas, os braços e as mãos cobertos de cinzas, o peito coberto de cinzas, o sexo coberto de cinzas, as pernas e os pés carregados de cinzas. Atiro-me para a cama que se encontra no centro do quarto, de barriga para baixo e com as mãos a taparem-me a face. Grito desesperada com quantas forças me permitem a garganta e a voz sem contudo me conseguir fazer escutar. Bato violentamente com as pernas e rolo para cada um dos lados da cama. Aperto os braços dobrados e os cotovelos em direcção ao corpo sem nunca tirar as mãos do meu rosto. De olhos cerrados, começo a morder os lençóis e a manta num reflexo incontrolável. No esforço para fazer desaparecer de vez esta lembrança, começo a bater violentamente com a cabeça na cabeceira da cama, uma, duas, três vezes, até que a salvação acaba por me ser cedida no final da quinta tentativa.

Passei mais uma vez pela escuridão morna e aconchegante, pelo silêncio e pela neblina. As dores não passam por aqui e o tempo deixa de fazer qualquer sentido. Os Libertadores são atirados para estes vazios de quando em vez. Vagueio sem rumo sabendo que o medo não tem razão de existir. Relinchos de cavalos, de muitos cavalos, são os únicos sons audíveis nesta imensidão. O cheiro que consigo alcançar, o único cheiro que me é aqui dado a conhecer, é o cheiro do dia daquela corrida, o cheiro do teu corpo onde descansei o rosto cansado antes de ter desfalecido. Voamos agora em direcção ao passado e ao futuro. Fazemos parte desses dois períodos sem que em nenhum deles possamos verdadeiramente dizer onde pertence o tempo presente.

Acordo junto à janela desse quarto, sem sentir o chão, sem sentir as cores e sem nada escutar. Olho a mesma paisagem e vejo as gaivotas a riscar o céu e o mar cinzento junto às enormes cidades flutuantes, junto à montanha do lado de lá do imenso mar. Não sinto o chão porque me trazes ao teu colo. Não sinto as cores porque me tapas os olhos enquanto me beijas os lábios com ternura. Não escuto os sons porque me tapas os ouvidos sempre que me acaricias e brincas com os meus cabelos. Desces comigo das alturas até ao reino do chão onde te ajoelhas. Sentas-me no centro da cama e colocas na minha mão direita o anel. Tudo o que me querias dizer está agora reflectido no sorriso do teu rosto.


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segunda-feira, 7 de março de 2011

QUINTO ACTO - continuação VII




Durmo. Se sonho, ao despertar não sei
Que coisas eu sonhei.
Durmo. Se durmo sem sonhar, desperto para um espaço aberto
Que não conheço, pois que despertei
Para o que ainda não sei.
Melhor é nem sonhar nem não sonhar
E nunca despertar.
Fernando Pessoa



QUINTO ACTO – continuação VII

Descobri a razão, a causa de tanto desespero, de tanto receio e ansiedade. Os caminhos já percorridos desenterraram a razão e o lamento. Num instante tudo se altera, num instante tudo acontece como se nos tivessem virado a alma do avesso. E contudo a luz dos dias volta a iluminar com a mesma doce aparência de sempre. Ajuda a fazer crescer uma nova raiz feita de esperança. Uma certa ventura paira no ar que se respira concedendo-nos uma alegria que há muito não fazia parte da paisagem. Encontrar a esperança após tamanha destruição e tentar encontrar os lados sensatos da razão. Muitos foram lançados numa empreitada meticulosa e imperialmente regulada pela organização imposta e arquitectada pelo ministro Sebastião. Começam agora as gentes a acordar pela primeira vez desde a catástrofe, sem o peso das terríveis imagens a pintar o início dos dias. Notam-se sorrisos, poucos, mas conseguimos notar um crescimento notável da confiança visível na maneira como os caminhantes avançam e em como a azáfama da grande cidade ecoa pelas suas colinas revigoradas. Tanta mão-de-obra ocupada nas gigantescas tarefas de limpeza e de reedificação e tudo conseguido com uma rapidez e organização inimagináveis. A alegria do ministro tem razão de ser, sente-se uma quase euforia nas suas palavras. Imaginou tudo ao detalhe, ao pormenor permitido pelas prenunciadoras imagens da pintura que nos deu a conhecer. Os acontecimentos foram-lhe antecipados e festejou o seu poder através desta visão que lhe permitiu acautelar ao pormenor todas as tarefas para restabelecer a paz e moldar a seu bel-prazer a imagem da nova capital, uma Lisboa que tinha previsto e que agora faz crescer dando assim forma ao seu sonho de grandeza e majestade.

Fernanda voou até mim e adivinhou as consequências do seu comportamento no meu coração. Sabia onde me vir encontrar e a sua momentânea perplexidade aconteceu fruto da interpretação que dera a muitos dos seus receios.
- Lembra-te dos sonhos, de tudo aquilo que te contei sem perceber, esperando que a minha vida não acabasse nesse código estranho e preocupante. Se eu pudesse controlar essa corrente desgovernada de imagens, histórias e sensações, teria tentado evitar essa maré de palavras. Já reparaste que estas pinturas parecem ter lido grande parte dessas descrições? Mas como são antigas, e como foram colocadas nestas madeiras com mestria por um mago pintor artista do passado. Pelos seus sonhos passaram os nossos sonhos e pelos seus pesadelos passaram os nossos pesadelos, e contaram-lhe estas histórias trágicas do que ainda estaria por acontecer. Afinal o mesmo tipo de padecimento flui, passa pelos tempos e por outros Libertadores. Serão seguramente situações distintas cujo peso não permite outra acção que não seja a de gritar em alta voz, numa qualquer voz que possa de alguma forma deixar registada a força do acontecimento. Assim como migram as palavras, migram os receios, os medos e a esperança.
Pedi neste momento um desejo. Poder voltar ao pequeno abrigo da cela hospitalar onde Fernanda, ainda mergulhada no seu cândido adormecimento, me ia contando em segredo todas as histórias que acabei por registar. Houve um instante irrepetível em que as suas palavras me transportaram para onde habita a verdade e o desejo. Naquele momento tudo aquilo que existe desapareceu, os nossos corpos não estavam mais ali, naquele lugar, e a sua voz transformou-se na mais perfeita de todas as melodias de mestre Bach.



quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

QUINTO ACTO - continuação VI

Em dias destes em que os deuses se esquecem de deixar acesas as centelhas da razão, permitimo-nos a devaneios que nos colocam mais dúvidas do que certezas. Ao informar-nos desta maneira, o ministro marcou claramente a sua intenção. Fernanda trazia em si as mesmas imagens da pintura. Foi clara na descrição dos detalhes, nas palavras que lhe saiam apressadas mas compassadas e que eu recolhia nas páginas rasuradas que cresciam à medida das suas descrições. O antecipar de muitas loucuras ou de acontecimentos mais banais, era sinónimo de uma perturbante alucinação. São as descrições exactas de muitas destas estranhas personagens que me afligem a racionalidade. Teimosa, deseja vencer as raízes crescentes da nossa incerteza mas nem sempre sai por cima nessa demanda. O que dizer agora quando nos confrontamos com esta evidência surgida do passado, com estas pinturas fabulosas que o ministro Sebastião arrecadou e que, segundo ele, lhe vinham também pintadas em sonhos e pesadelos divinatórios? As suas vontades cresciam como as ondas daquela maré devastadora que limpou as ruas da cidade! O Mundo carece de uma maior segurança que permita restabelecer a estabilidade que só a dúvida eterna nos concede. Fernanda viu-se já despojada do peso dessa muralha. A normalidade subjacente à condição humana não vem carregada com esta força enigmática, nem tão pouco conseguiriam as humanas gentes lidar com estes atributos divinos. Mascaram-se em alguns de nós, poucos e restritos iluminados, estes poderes supremos, e surgem embalados em dor e em mistério, queimam, destroem e corrompem as almas destes Libertadores ao ponto de lhes transformarem por completo a consciência. Fernanda ainda não disse uma só palavra desde que os seus olhos contemplaram pela primeira vez a obra de arte. Percorre todos os pormenores da paisagem com atenção. Saltam de personagem em personagem sem que a cabeça se movimente, sem que a boca se desprenda ou sem que as pálpebras interrompam uma só vez o esforço da missão. Por debaixo do decote percebe-se a ansiedade e a surpresa nos movimentos ritmados que o peito comunica. O seu rosto iluminou-se com a surpresa. Veio carregada com um misto de alívio e alegria. Era claro que não tinha partido só de si a antecipação da tragédia. Outros antes e agora já tinham percorrido o espaço dessa dor imensa, tornando também suas as inquietações, as vontades, os sonhos e as frustrações. As ligações que misteriosamente acabaram por se revelar são motivo para o nascimento de uma indisfarçável sensação de alegria. Os seus lábios esboçam um quase imperceptível sorriso.

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quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

QUINTO ACTO - continuação V


Esta não é mais do que a confirmação do que suspeitava. O ministro colocou perante nós a própria visão da existência. Somos partes de um todo, de um jogo que apenas a alguns se dá a conhecer. Estes momentos em que evidências do passado encerram em si o fermento das inúmeras possibilidades de futuro servem para confirmar a existência dos segredos. A presença de uma metamorfose com esta dimensão não deixa margem para dúvidas. As imagens que este pintor retirou da sua alma com a mestria de um predestinado atormentam a nossa. São por demais evidentes as aproximações entre o que retratou e o que se passou em Lisboa no trágico um de Novembro do ano passado. Espalhou pela paisagem todas as possíveis formas de demónios retirados das humanas gentes como se lhes tivesse descarnado a última réstia de humanidade. Retratou com clareza e justiça os mais relevantes dos ignóbeis actos e sórdidas acções cometidas pelos peregrinos da desventura em Lisboa durante o cataclismo, bem no auge da desgraça. A pairar por toda a paisagem esvoaçam as vozes dos penitentes. Os cadáveres das embarcações que galgaram as altas barreiras do Tejo seguem a galope nas ondas da maré de escombros que invadiram as ruas depois dos abalos. Derramo lágrimas ao recordar os momentos em que tudo desabava no coração da maior das loucuras. A capital do reino aparece destroçada pela ira dos imperadores do medo que neste quadro reinam invisíveis. Uma cidade engolida pelas chamas que a devoram lá ao fundo junto ao rio. O ministro lança olhares silenciosos na nossa direcção enquanto tenta escutar a surpresa que nos provocou a delirante pintura. Foram seguramente muitos dias excedidos em que o pintor foi descobrindo a herança deste futuro agora também feito passado. Foi capaz deste feito prodigioso ao ter vencido as forças do medo, forças que poderiam ter escondido de todos o que o artista claramente percebeu durante as suas enigmáticas visões. Que coragem a de conceber imagens tão alucinadas de futuros por desvendar. As palavras do poeta pintor, feitas de cor e de texturas únicas nas formas, nos receios, nos desesperados personagens que o visitaram pelas noites de alucinadas memórias, todas pintadas com um pormenor e com uma minúcia incomparável. O ministro está correcto ao entender esta pintura para além da sua excelência e do carácter único daquilo que retrata. Reflecte uma única certeza. As paisagens obscuras contidas nos sonhos ou pesadelos que nos visitam, por vezes dias e noites a fio, podem e devem ser entendidas com total naturalidade, isto apesar de nos consumirem a razão que tanta falta nos faz no sustento desta vida.


quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

QUINTO ACTO - continuação IV


Lefébvre acompanha os homens que transportam as bagagens até à entrada do pátio. Quase não falou desde o cais até aqui. Passeou as lembranças, como eu, pelas ruas destruídas, pelas calçadas e ruelas, pelas pracinhas, largos e escadarias que já não existem. Fachadas e edifícios inteiros desapareceram para sempre. Deles já só resta a memória. Descobri na nova paisagem da cidade uma certeza. As limpezas foram executadas com grande rapidez. Notam-se ainda as consequências provocadas pelo desastre e poucas são as colinas que respiram saudáveis a tranquilidade deste anoitecer. Desapareceu para sempre a Lisboa que conhecemos mas uma outra parece ter sido desejada com ansiedade. São muitos os estaleiros e os operários que vimos espalhados por toda a cidade, principalmente a tratarem dos edifícios religiosos que antes dos outros vão sendo reconstruídos. As pessoas avançam com os olhos escondidos, as mulheres agarradas aos corpos, de braços cruzados e arqueadas como penitentes. Notei os estrangeiros passeavam com respeito a observar atentamente as cicatrizes permanentes da paisagem. Deste lugar mais alto onde me debruço observo a tristeza do convento que chora baixinho a sua nova condição. Não se sabe ainda ao certo quantos foram os que faleceram, quantas famílias, quantos irmãos e irmãs, quantos pais, quantos avós, quantas mulheres grávidas ou crianças de colo, quantos mendigos ou quantos nobres foram derrotados nesse dia de Todos os Santos. O rei fugiu de medo e dorme agora numa real barraca para os lados da Ajuda. Triste mensagem dada ao povo amargurado. Refugia-se, como diz Lefébvre, na corajosa determinação do seu ministro que vai dando importantes instruções sobre a organização destes tempos mais funestos. A carta que o recebeu em Santarém vinha assinada pelo ministro e todos os que trabalhavam no mui nobre e real hospital de Todos os Santos receberam cartas idênticas e com a mesma assinatura ministerial. O rei parece mais bobo que fortaleza, mas teve a sensatez de colocar nas mãos desse Sebastião a tarefa ingrata de tentar fazer reerguer a força do povo e colocar de novo a capital do reino no seu devido lugar.

- Rafaela, prepara qualquer coisa para a ceia, nada de muito elaborado! Amanhã preciso de acordar bem cedo para me apresentar a Mestre Dufau mal nasça o dia, e este está marcado pelo cansaço da viagem. Uma sopa e um pão de centeio embrulhado num naco de presunto servirão para aconchegar as nossas fomes. Não te esqueças que a adega teve a ousadia de proteger as colheitas de vinho que tinham sido oferecidas pelo mestre Bernardo quando chegou da sua viagem por terras francesas. Abre um tinto de Bordéus que ele trouxe e, já agora, junta a tudo isso três ou quatro peças de fruta do nosso pomar escalabitano!

Lefébvre voltou a ser da cidade, voltou a ser o senhor que em Lisboa sempre conheci. Até a voz parece ter ficado transfigurada num timbre menos aveludado. Serão os meus delírios a julgar mais do que devem.

- Sim meu senhor, assim farei, como desejo de vossa mercê!

As passadas apressadas de Lefébvre foram rápidas a perceber a pequena subtileza da minha entoação. Parou. Vira-se para mim sem demora. Olha-me como se a diferença entre o bem e o mal tivesse sido finalmente compreendida. Avança em passos compassados a tentar ler as palavras escondidas nos meus olhos. Cresce como um gigante na minha direcção e cada passo que dá o sorriso do seu olhar volta de novo a iluminar-lhe o rosto redondo e corado. O queixo recebe a sua mão, as faces o seu calor e os meus lábios recebem os seus com perdição. Acendeu de novo o meu peito com ardor. Passeia pelos seios a mão gelada e veio encontrar a verdade da minha vontade com a mesma rapidez com que a minha mão deu conta da sua. As roupas já não nos pertencem e os corpos voltaram a ser outra vez verdadeiros. Senti a mesma razão de Santarém, apesar de estar novamente a pisar a terra dilacerada desta cidade maldita.

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QUINTO ACTO - continuação III


Os canhões ouvem-se ao largo e soam como uma trovoada. São muitas as embarcações que se despedem desta forma da cidade. Tornaram-se bem mais frequentes as visitas dos grandes barcos ingleses. Os almirantes britânicos visitam as ruínas de Lisboa, as mesmas que foram semeadas por toda a parte como lembranças do poder infernal que se encontra escondido nas entranhas violentas da terra. Trazem muitos mantimentos, víveres, matérias-primas e materiais de construção e levam muitos dos seus que resolvem regressar com medos por explicar. Muitas são as frases que saem da boca do povo e que mostram as resistências à reconstrução da cidade. Malagrida nunca se fez rogado e desde cedo procurou fazer-se escutar. Lisboa foi abandonada, destruída porque o pecado reinava por toda a parte. O castigo caiu dos Céus na igual proporção dos pecados cometidos por quem a habita. Segundo Malagrida, a cidade não deve, por nenhuma forma, ser aqui restaurada.

Estranhos são os desígnios da mente, são impossíveis de monitorizar, não respeitam protocolos, livros, crenças ou religiões. Como adolescentes egoístas, cruzam as entranhas do tempo despedaçando-o. Entram porta adentro com conversas mansas indecifráveis, depois já não querem mais conversar, fogem com sorrisos às mentiras que semeiam. Mágicos desígnios que nos mantêm concentrados na tentativa de leitura dos rótulos que trazem colados a si como literatura farmacêutica. Falamos, interpretamos, avançamos com pretensas soluções ou explicações para esses misteriosos desígnios. Alguém os deseja assim, ilegais, perigosos, maléficos, dolorosamente reais na sua capacidade de manter todas as coisas importantes coladas numa honestidade gélida e perturbadora. Não desejava encontrar aqui em Pompeia mais respostas do que aquelas que acabaram por me ser reveladas. Cresceram outras tantas questões por força da informação fornecida. Serei assim uma pessoa tão perturbada? Vejo fantasmas de passados distantes que falam comigo, que me permitem recordar tempos em que não posso acreditar ter existido. Contudo, como um desafio inquietante, essas vozes insistiram em ligar milhares de dúvidas desde cedo. Como a água que cai do céu nos dias de tempestade, cresceu em mim um caudaloso mar de perplexidades que se avolumou com o passar dos dias. Essa espécie de estado febril nunca desapareceu totalmente, confundiu-me a existência como um veneno enquanto criança, quase me matou as vontades enquanto jovem e montou irresponsáveis armadilhas na perturbante fase da minha adolescência. Nada nem ninguém me dava as respostas às imensas interrogações que aumentaram o volume desse gigantesco mar. Os trovões continuaram a fustigar a paisagem numa arrogância brilhante que ameaçava durar a vida inteira. Confrontou-me dias, semanas, meses, anos a fio em sonhos, em pesadelos e nos dias mais sombrios plantou-me esta espécie de ambição inatingível. A confiança no passar dos anos voltou, apesar do sarcasmo e da vontade que tive em deixar de acreditar neste sistema. Qual o fio que verdadeiramente une este misterioso procedimento, que tudo nos tira, que tudo nos volta a ensinar, que tudo nos explica para podermos finalmente voltar a adormecer? Constança preparou em quase completo segredo este regresso a Itália e às memórias do desconhecido que eu encontrei tão novo aqui em Pompeia. Nestas duas últimas semanas olhei para o presente, para o passado e para o futuro que crescerá surpreendente no que aqui viemos conquistar. Foi um verdadeiro choque dar seguimento a um objectivo que tinha de ser cumprido. As mãos ainda me tremem ao volante pois reflectem a minha grande emoção. Nada existe por acaso. Nada, absolutamente nada acontece por acaso, por uma qualquer ironia ou acidente. A construção das nossas vidas, de todas as vidas, obedece a um sentido que nos é transmitido através de conquistas. Muitos chamam-lhe destino, ou um outro qualquer nome das suas preferências para ajudar na tentativa de dar sentido a essa equação. A certeza, a única certeza é que ao longo desta jornada muitas serão as surpresas que nos estão reservadas. A invisível genealogia da existência está por cima de todas as coisas. O amanhã já aconteceu algures, o ontem estará algures por acontecer e o presente separa-se já, aqui e agora, em passado e em futuro sem o ser.

- Bernardo, em que pensas? Queres que eu conduza? Acabaste de passar ali atrás a saída para Nápoles Sul. Por ali era mais directo o caminho para o Hotel!

Os mundos encontram-se, afastam-se e arrastam-nos numa recorrente e paradigmática descoberta. Desde tempos imemoriais que corremos atrás de prejuízos. Nenhum deles nos faz acreditar no que quer que seja. Em determinados períodos da história as feras são atiçadas contra a nossa fragilidade, as bestas avançam sem aviso ou simulação e não se fazem antecipar. Atiçam as inclementes vontades assassinas, umas atrás de outras, sem descanso e com indiferença. Deixo para trás as memórias deste tempo longínquo com o muito que aprendi em Pompeia. As raízes e memórias desse passado iluminaram-me a viagem disso dando-me sentido.

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segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

QUINTO ACTO - continuação II



Os pensamentos afligem pela simples razão que muitos, a esmagadora maioria, se atreve a acontecer. A liberdade de escolher o futuro voltará a aparecer como dantes. Não acredito que seja sobre isso que o ministro nos deseje falar, que algum fundo de verdade saia das suas palavras quando nos parece ler as ideias a toda a hora e a todo o instante. O que será que está a guardar para nos mostrar? É um alívio já não antever as ocasiões para não ter de me atormentar com elas. Cumprir as tarefas rotineiras do simples acontecer, a vergonha de viver o momento como se fosse uma tortura, a tortura do segredo que todos esses momentos encerram. Vão passar dias sem que se saiba, dias que passarão como anos, correndo como dias de sorte que ao mesmo tempo que se invejam se odeiam, como mentiras venenosas. O ministro está aqui para nos mostrar um início, uma mudança ou um destino que, segundo ele, pensava ser um dom que só nele crescera. A decência da novidade partilhada pareceu-lhe menos pesada, menos difícil de suportar. Quem no seu perfeito juízo pode transportar consigo a responsabilidade total do que aconteceu à capital da nação? Não o diz, mas vê-se que é assim que pensa, e custa-lhe assumir e aceitar essa situação como guerreiro obstinado que é. Não viemos aqui apenas para descobrir o que em comum nos escreveram nas ideias. Seguramente que padecemos de uma qualquer estranhíssima doença que nos afecta a alma. Estamos ausentes e depois presentes, disponíveis para as tarefas que nos aguardam, que desejamos que aconteçam e que depois, pela misteriosa força deste desígnio, nos aparecem à frente para nosso deleite ou frustração. Volto a ligar este lugar, aqueço-o, reponho as suas pistas como se fosse a última réstia de normalidade que me resta. Ajuda-me imenso permitir que outro tipo de justiça possa fazer renascer esta cidade. As vidas ceifadas assaltam permanentemente e sem calma muitos dos nossos pesadelos, julgam-nos todos os dias, preocupam-se com os seus e deixam-nos num estado verdadeiramente calamitoso. Localizar destinos, deixar que eles nos arrastem e observem, dizer-lhes que contem connosco para não voltarmos a descer aos infernos por onde passeámos. A mão desliza pelas recordações da noite de ontem como se tivessem todas sido passadas da mesma maravilhosa maneira.

- Caros amigos, estamos a viver a primeira e talvez a mais importante de todas as vitórias. Interpreto a nossa sobrevivência às terríveis consequências do terramoto como um acontecimento da maior relevância. Quem foi capaz de nos unir após o desastre? Eu, que mais não tenho feito que criar sonhos onde me entretive a desenhar os traços apaziguadores da nova capital do reino, transfigurando-a majestosamente, transformando-a rumo ao futuro luminoso que a aguarda? Terá sido o caríssimo mestre Bernardo a quem as estranhas entrelinhas do futuro sombrio visitaram na véspera da calamitosa manhã, nascida bem carregada com as forças da destruição? Ou terá sido a bela Fernanda, que bem cedo aprendeu a cozinhar as forças negras da vontade, as sublimes mas pesadíssimas forças negras da vontade? Lisboa caiu por terra, desfeita primeira em pó e poeira, depois engolida nas lamas caudalosas da maré que a engoliu, e depois atiçada pelas chamas infernais que a consumiram quase até à exaustão. Lisboa caiu por vontade de quem? Por todas as nossas vontades, pela minha vontade particular em desejar construir uma Lisboa à minha imagem e ambição ou pelo apelo fervoroso a uma ruinosa vingança que germinou implacável na gentil e frágil Fernanda? Um sinal inesperado desceu de um qualquer passado tenebroso e resguardou-se no sonho tormentoso do mestre. Resolveu acordar e dar-se a conhecer como se um pedaço do próprio Inferno tivesse sido reclamado pelas miseráveis ruelas da cidade. O mais estranho de tudo isto é que nenhum de nós consegue ver estranheza em tanta injustificada coincidência. A nossa franqueza é única, cresceu e fortaleceu-se através destes acontecimentos inacreditáveis que passaram a vestir a realidade dos nossos dias. Estamos acima de todos os outros membros da Nação. Ninguém pode imaginar aquilo em que acreditamos. Possuímos e partilhamos partes distintas de um poder ímpar que temos obrigação de usar de forma coordenada e muito, muito sensata.


Nasceu um novo dia, um dia em que os ódios deixaram de fazer sentido. Passámos para o outro lado do palacete onde ainda não foram praticadas quaisquer reparações de relevo. Os efeitos da tragédia encontram-se bem marcados nos altos muros e na fachada da grande casa que se encontra no topo norte da propriedade, nas vidraças e nas janelas que aqui se encontram todas abertas. As chaminés rogam por auxílio. É com alguma surpresa que o ministro nos faz entrar pela porta principal do edifício que se encontra bastante danificada. Maior é a surpresa quando nos deparamos com o interior da habitação que não está tão deteriorado nem com o ar de quase abandono que as paredes exteriores nos comunicam. O ministro avança pela casa adentro, passa por dois salões, por quartos, por salas e por pequenas salinhas até que numa delas desce por uma escadaria que serpenteia ao redor de uma imensa estrutura granítica que parece não ter fim. Depois de algumas vertigens e de descer dezenas de degraus rodopiantes que nos transportam muitos metros para baixo da construção, atingimos um corredor frio, sombrio e claustrofóbico. As paredes parecem encolher à medida que avançamos mais vagarosamente e sempre com o ministro a liderar o cortejo. A iluminação é muito fraca e os olhos demoraram algum tempo a habituarem-se à penumbra. Descobri algumas pinturas que decoram as paredes apertadas deste lugar. Bernardo segue atrás de mim. Parou para poder observar melhor as estranhas pinturas.

- Vamos, já falta muito pouco até chegarmos ao local onde tenho guardado aquilo que vos desejo mostrar.

O ministro deu mais uma vintena de passos e mexeu num chaveiro que retirou da sua jaqueta aveludada. Rapidamente se escutou o barulho metálico da fechadura da porta onde termina este estranho corredor. Os candelabros de muitas velas foram sendo acesos com gestos prudentes e muito minuciosos numa espécie de ritual claramente ensaiado tamanha era a eficácia no método utilizado pelo ministro que vai dotando a sala com uma agradável claridade.

- Aqui estamos! Chegámos ao meu pequeno refúgio. Trouxe-vos até aqui com uma intenção, com um propósito muito claro que foi ponderado e estudado durante muitos dias. Alturas houve em que pensei manter apenas para mim este segredo que vos venho hoje revelar. Decidi partilhar a minha interpretação deste fenómeno convosco pois são mais as evidências daquilo que nos une do que daquilo que nos divide. Sentai-vos por favor caríssimos companheiros de viagem. O significado de tudo aquilo que nos rodeia tem-me trazido ocupado desde que me recordo de ser capaz de memorizar. Lembro-me claramente do dia em que consegui ser capaz de usar as cores do tempo e do dia em que transformei o peso das verdades com extraordinária facilidade, habilidades essas que em nada se podiam explicar. Muito receio foi por mim carregado ao dar uso desses milagrosos poderes. Atacaram os primeiros anos da minha existência e a tristeza que moldava o meu rosto não reflectia a felicidade suprema e o gozo divino que iluminava a minha alma. Cresci transportando este segredo, esta arma poderosa que foi fazendo toda a diferença ao longo de todos os dias da minha vida. Conheci alguns como vós, mas longe, muito longe de serem capaz de relatar o futuro ou de antecipar com tamanha exactidão e tanta minúcia os mais ínfimos detalhes daquilo que está para acontecer. A genial Fernanda foi a única pessoa, tão única e tão verdadeira que eu tinha de tomar esta decisão. Não consegui destruir as vossas pessoas, ia ser demasiado fácil e resultaria numa tragédia quase tão grande como aquela que sabíamos estar para acontecer. Vós mesmos já pensastes em oferecer-me a morte de presente. Não há um único dia que passe que não se iluminem por este país fora, na cabeça de muitos dos nossos inimigos, desejos para que tal aconteça. Não existe pensamento algum que eu não acabe por decifrar. Nos primeiros anos da minha juventude julguei enlouquecer pois muitos eram aqueles que me odiavam e que acabei por destruir. Cresci numa espécie de manicómio incandescente em que as palavras invisíveis dos outros faziam luz na minha alma e acalmavam as minhas sombras. Construi monstros e deles acabei por me alimentar. Foram eles os meus amigos e apesar de não terem física existência, fiz questão de os transformar em realidade para todos aqueles que maiores ódios me foram revelando. Os extraordinários relatórios que mestre Bernardo me foi fazendo chegar clarificaram de vez uma dúvida que me atormentava. Já não era único! Depois de tantos anos à procura, de quase já ter deixado de acreditar ser possível encontrar no espaço desta vida essa ímpar figura, reconheci tudo o que a Fernanda falou enquanto se manteve inconsciente. Deixei cair essa vaidade e decidi fazer de vós uma aliada para aquilo que ainda nos está reservado. Dias loucos e outros mais sensatos crescerão por nossas vontades. Nada mais simples e mais complexo do que isto. É de um pacto infinito que aqui vos falo e que aqui vos proponho.

É difícil acompanhar com clareza tanta informação. O ministro fala rapidamente e as palavras ecoam estranhas antes de começarem a fazer algum sentido. Bernardo está branco. Mantém-se calado. Sinto que se debate ao tentar decifrar tudo o que se está a passar.

- Senhor ministro. Antes de mais nada, deixe que lhe diga que as suas palavras me trazem algum conforto. É muito difícil dar seguimento a esta missão, fazer brotar injustiças e muitas dores ao avançarmos com a causa das coisas, ao fazermos acontecer o que não pode deixar de existir e de nascer. Causam menos ansiedade se forem dores repartidas, se alternarmos as misérias com actos mais sublimes e menos monstruosos. A dificuldade em resistir ao pecado é maior se não nos dermos ao trabalho de definir as fronteiras de razão e da decência. Sabe bem àquilo que me estou a referir. Passarei a dormir um pouco mais tranquila sabendo que o que aconteceu não se deveu apenas às minhas vontades. Somos capazes de adivinhar, de antecipar, de formar ideias que depois se transformam em realidade. A nossa força acaba por se diluir ao verificarmos que não estamos sós neste propósito.

- As decisões corajosas não são as mais fáceis de tomar. Certo dia o rei mostrou uma colecção de obras de arte composta por duas estatuetas e quatro pinturas de mestres do norte a três nobres ingleses durante uma recepção realizada na corte. Nenhum dos notáveis se mostrou muito interessado ou até surpreendido pelas imagens representadas nas diferentes pinturas. Estavam aliviados na sua razão por força da notória embriaguez que os arrastava pelo salão, possuídos por uma total ausência de perspicácia e de discernimento ou talvez por uma combinação de todas essas características. O certo é que uma das obras de arte, que era na verdade composta por três retábulos, sobressaia de forma ímpar do conjunto. Era verdadeiramente extraordinária. A pintura mais inacreditável que alguma vez me fora dada a contemplar. Esse dia ficou para sempre marcado na minha vida. As imagens representadas nas três partes da pintura pareciam falar comigo. As estranhíssimas personagens desse quadro já antes tinham passeado nos meus sonhos, iguais até ao mais ínfimo detalhe, desde a estranheza dos seus corpos até á bizarra combinação de paisagens. Navios voadores com corpos de peixes ou aves decapitadas passeavam junto às nuvens com a maior das naturalidades. O imenso incêndio que se encontra representado no painel central da obra tinha-me visitado antes de a ter visto essa primeira vez e voltou a vaguear em muitos dos meus sonhos e em alguns obscuros pesadelos. Todas as semanas me avisou que forças tormentosas provocariam a queda de Lisboa, que a iriam visitar, como vieram, em Novembro passado. O tempo que estava para chegar preparou-me para muitas derrotas. Tive de saber serenar as vontades e interesses, reservar muitas palavras que ficaram por dizer, tudo para que hoje possam ser as que mais se escutam. A obra tinha de passar a ser minha! As muitas necessidades do rei passaram a ser da minha inteira responsabilidade. Foram muitos os dedicados e leais serviços que prestei ao país e ao reino. Este acabou por ceder naturalmente ao meu pedido e incluiu a pintura num oferecimento que me fez. Desde então que aqui venho muitas vezes para contemplar tão rara e misteriosa obra de arte. As descrições das visões de Fernanda que mestre Bernardo escreveu com erudição nas suas sábias escrituras, relatam com tamanha minúcia as misteriosas cenas da pintura, descrevem com assombroso detalhe as muitas peripécias e as devastadoras alucinações representadas ao longo dos seus três painéis, que o meu cepticismo inicial rapidamente se dissipou. Deixei de ter a mais pequena dúvida! Existe uma grandeza e um caminho comum que nos une, algo bem mais importante e superior que o valor das nossas próprias vidas. O extraordinário autor desta pintura era, provavelmente, como nós, um visionário. As imagens desciam da sua vontade e transformavam-se à luz de seus dotes bem na frente dos seus olhos com nefasta alegria. Teve a capacidade artística e a valentia sublime de transformar os seus sonhos e pesadelos em obras de arte. Já entenderam que o motivo da vossa vinda até este meu refúgio tem como objectivo principal preparar-vos para aquilo que vos vou mostrar. Esta pintura é muito mais do que um simples quadro. Há séculos atrás este pintor recebeu o que apenas alguns de nós hoje antecipamos. Imagens que repetem futuros sombrios, austeros e diabólicos, imagens premonitórias de almas perdidas abandonadas sem clemência, de medos e receios de todos os tipos adornados numa mensagem obscura que dá conta de um terrível acontecimento com consequências nefastas e apocalípticas. Preparai-vos para sentir algo como nunca até hoje imaginaram. Ao passearem os olhos pelo quadro, passará pelos vossos corpos uma energia única que carregará os corações com uma energia alucinante. O cérebro encarregar-se-á de recuperar essas imagens do lugar abrigado onde se escondem, voltando a colocar esses amigos cruéis no centro de todas as atenções. Descobrir novamente a doce beleza encerrada nesses lugares sombrios e reservados.

Revesti-vos (irmãos) da armadura de Deus, para que possais resistir às ciladas do demónio.

Pois não é contra homens de carne e sangue que temos de lutar, mas contra os príncipes deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal (espalhadas) nos ares”- (Efésios,VI,10).

Fecho os olhos, fecho-os por súbita vontade. Sento-me numa das cadeiras que se encontra encostada à parede mais próxima da porta e agarro-me às mãos de Bernardo. Ainda não estou completamente sentada quando começo a ver com clareza uma floresta.

- “Vejo um céu tranquilo que se torna negro por acção de um violento incêndio que devasta uma povoação próxima da sua orla. Vejo um Santo Homem que tem diante de si um homem “cabeça-com-pernas” e uma velha mulher com véu de freira que lhe estende a mão direita. Vejo uma torre semi-destruída e no seu interior uma abside. Sobre a sua porta um telhado fino e ovalado. Dentro dela há um altar encimado por um crucifixo. Vejo ao lado do altar um homem que me olha de frente como se me conhecesse desde sempre. Ao lado esquerdo do Santo Homem encontra-se uma mulher de cabelos loiros com um vestido que termina numa comprida cauda de réptil. Vejo animais debruçados numa mesa, criaturas híbridas com bico de corneta, monstros nobremente vestidos, bichos escuros e estranhos, um tocador de alaúde de corpo disforme e cabeça porcina, dois cães vestidos e símbolos estranhos desenhados no chão entre duas linhas ovaladas. Vejo uma grande plataforma e uma bruxa com um tronco de árvore na cabeça, armada com arco e flecha a liderar um grupo que se movimenta em direcção ao centro onde se encontra o Santo Homem. Arrasta um dragão bípede de grandes orelhas por uma lança que este tem espetada no crânio. Olha directamente para mim como se me conhecesse desde sempre. Um monstro de focinho delgado segue logo atrás de si. Nas margens de um lago um gnomo balança-se numa cesta de palha pendurada. Empunha uma espada. A seu lado, uma ave de bico longo tem um escudo no pescoço. Vejo um monstro deitado sob uma “tenda-fruta” com as pernas abertas para o lado de fora. Dentro de um lago de águas putrefactas nadam repugnantes animais e navegam peixes embarcações com formas bizarras. Vejo um importante grupo onde um grande rato é montado por uma criatura cuja cabeça se encontra envolta num tronco de árvore com galhos. Esta criatura possui garras de compridos ramos de árvore, afiadas e entrelaçadas. A parte inferior de seu corpo é um longo prolongamento como um rabo de peixe. Senta-se numa sela sobre um manto vermelho comprido que cobre o rato. Debruça-se sobre um pequeno bebé. Vejo que a seus pés emerge uma criança encapuzada que quase se confunde com a borda do manto. Olha directamente para mim como se me conhecesse desde sempre. Vejo no céu limpo um movimento aéreo com barcos voadores que se dirigem à esquerda onde há fogo. Na margem do rio localiza-se uma povoação totalmente em chamas. Vejo imagens que parecem retiradas do dia em que Lisboa foi despedaçada em mil pedaços. Vejo imagens da loucura que devastou os primeiros minutos após a queda da cidade, vejo os monstros-homem que tomaram conta dos mortos, dos moribundos, das crianças e dos que ainda vivos lhes iam pediam auxílio e a quem, sem piedade, faziam desistir desse instante de suplício. Vejo no céu a nossa fuga numa viagem para longe daqui, cavalgando um peixe voador que irá sobrevoar toda a desgraça, que acabará por nos transportar para um outro tempo, para uma outra era, para dias de sonhos feitos de azul e sensatez”.