segunda-feira, 21 de junho de 2010

TERCEIRO ACTO - continuação XI



A descoberta da identidade da obra não foi o mais importante. As imagens apresentadas reúnem as antecâmaras dos infernos. Hoje sei que o sistema é injusto. Perante o peso dos segredos agora revelados pela pequena Fernanda, não tenho dúvidas de que as suas palavras representaram com exactidão as estranhas imagens desse quadro. Perante a surpresa que me foi apresentada, só me restava esta via. Provar que tudo está em conformidade com as declarações invisíveis invocadas pelo conselho supremo que rege, através de insondáveis propósitos, todos os caminhos e todas as histórias. Não existem explicações para estes insondáveis favores. As contestações misteriosas a tantos enigmas, a tantas dinâmicas e sistemas desalinhados, agravadas nessas interrogações com as interpretações que lhe desejam dar figuras negras e mesquinhas que assumem opções miseráveis perante a real simplicidade que está por detrás da concepção do sistema, perspectiva negros dias e embrulha o presente e o futuro numa neblina densa mascarada com a assinatura dos infernos. É importante aproveitar este desarrumo, este desalinho bárbaro e selvagem sentido por nós mortais, decidido no sistema e preparado com objectivos injustos mas muito claros. Tudo é possível de agora em diante. Levantar estas ruínas purificadoras, alterar a ordem dos factores, daquilo que ontem era primário e agora secundário, ser obrigado a entender que esta anormalidade aconteceu porque era aqui, neste momento, que tudo tinha de acontecer. Bernardo anda confuso e muito perturbado com a tarefa que lhe ordenei. As suas palavras são de um rigor extremo que segue paralelo a uma inesperada sensibilidade na escolha da forma e no alinho com que as vai enobrecendo. Perante o que me tem apresentado o mestre, decidi ser a hora de lhes anunciar este segredo, de lhes revelar porque tudo o que vai acontecendo está isento de surpresas, saibamos nós interpretar correctamente os diferentes sinais e as notas invisíveis que respiram levemente e se revelam de quando em vez. Não me surpreende que Fernanda tenha saltado da carruagem e desaparecido assustada com tantas guerras perdidas por não saber onde, afinal, se encontra escondido o inimigo. Ainda é muito jovem para transportar tanto peso, tanta responsabilidade acorrentada sem que a tenha pedido, apesar de ter sido por ela invocada. Os processos de entendimento das visões futuras, destas antecipações em imagens cinzentas, por vezes baças, que nos toldam as noites e tantos dias, podem ser terríveis, podem ser verdadeiramente aterradores. São poucos os que são servidos com as imagens do que ainda não aconteceu, do que, mais cedo ou mais tarde, se revelará como sombras desses sonhos, como pedaços perdidos e depois encontrados dessas peças antecipadas. Menos ainda são aqueles que conseguem resistir a esta faculdade sem que a razão e o juízo se alterem, sem que as verdades do seu passado consigam avançar seguras pelos novos caminhos que lhes foram apresentados. Agora não há nada mais a fazer. Será incapaz de sustentar as suas dores e as suas sementes se não for apoiada neste momento mais sensível. Julgará que o mundo funciona tendo como base o seu querer e ele têm sido muito parco em esperança e tem sido usado com propósitos bem claros. Apontava para drásticas mudanças nos caminhos que percorríamos, antecipava uma inédita loucura dos elementos e a limpeza que se proporcionaria com essa poderosa ferramenta de devastação.

- Homens andem, avancem por ali. A rapariga e o mestre entraram pelo bosque naquela pequena clareira lá em baixo. Chamem por mestre Bernardo porque a rapariga, mesmo que vos ouça, não irá responder. Tentem encontrá-lo primeiro, quem sabe se já não estará na companhia da jovem senhora. Vamos, despachem-se.

As complicações e os problemas surgem vindos do nada. Deixam de estar ausentes, aparecem desaforados a convocar tudo e todos para satisfizerem a sua fome. Fernanda arriscou e os segredos deixaram de lhe pertencer mesmo que possa ainda sentir o contrário. As linhas de interesse deixaram de se vestir com as cores de esperança e tenho os dedos tão cansados que já não os sinto.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

TERCEIRO ACTO – continuação X


Soltarei todas as formas de silêncio. Aqui escondida neste local abrigado tratarei de apagar as mais escuras vontades. No fundo deste trilho encontrei esta casa perdida. No lugar mais impróprio, mais clandestino, onde a natureza seduz os caminhantes assustados, encontrarei alguma calma. Preciso deste momento, preciso de me afastar por algum tempo do mundo dos homens para entender melhor esta dor que me consome. As raízes serão o meu abrigo, serão as minhas camaradas e conselheiras. Nenhum monstro me sairá da alma durante este recolhimento. Os lobos ferozes conceder-me-ão a protecção necessária e a escuridão proporcionada pelas copas e as ramagens mais densas ocultarão as informações acerca da minha viagem até aqui. Não era esta a resposta que me tinha sido anunciada. Ao longo destes últimos dias a esperança vinha manchada com alterações profundas à ordem dos sonhos. As pernas seguiam rumos distintos aos que me tinham sido anunciados e tudo parecia caminhar contra o que tinha sido comunicado. Mentia com muito maior frequência, bem mais vezes alterava o perfil dos meus relatos ao senhor Ministro e a mestre Bernardo do que lhes falava com certeza. Os lábios ficarão quietos e tranquilos.

Dos carinhos e dos abraços já ninguém se recorda. Os pássaros invadem a entrada do pequeno abrigo promovendo uma camuflagem natural. Foram mais que breves os instantes que levaram Fernanda até ao seu esconderijo. Queria fugir de tudo e de todos, deixar para trás todas as lembranças, sons, descobertas e grilhetas que lhe atormentaram a alma nestes últimos meses. A clareza com que, supostamente, ia entendendo o fio da meada dos dias tinha-se esgotado. Não mais se permitia ao delírio e à visão das coisas futuras, não mais se lhe apresentavam os odores ao faro nem as imagens do que está para acontecer, aos seus olhos. Abrigara-se no jogo perigoso das mentiras e da ilusão onde fora apanhada mais do que uma vez pelo senhor Ministro e o medo saltou do escuro para a sua frente rápido e sem aviso. Neste lugar encontrou frio, escuridão e uma ténue sensação de segurança. As janelas estão fechadas, os ventos descansam, as nuvens negras desaparecem e as gotas de humidade que se acumulam nos tectos do abrigo promovem os únicos sons deste lugar perdido ao caírem com irregularidade no imenso chão da sala. Fecha os olhos, junta os joelhos ao corpo e aí deixa escondido o rosto. Aperta bem as pernas encolhidas com um abraço promovido pelos seus braços esguios. Assim permanece por longos momentos à espera que algo aconteça, à espera que um qualquer sinal lhe devolva uma esperança, um sentido, um caminho ou um destino a seguir. O seu terramoto começa agora, depois de todo o tempo que duraram os ecos do verdadeiro. Fernanda tinha conseguido manter uma fornalha de esperança até hoje, mas a lenha que ia colocando para lhe dar sustento acabou, deixando-a desabrigada e tremendamente receosa. Queria acordar noutro local, num outro tempo, num daqueles dias onde os pássaros gigantes carregam pessoas nos seus interiores vomitando fumo pelas asas. Queria sentir um carinho por uma só vez que fosse, uma mão amiga ou uma palavra de amor, uma pétala verdadeira de uma flor verdadeira. Queria sentir-se segura por um minuto, por cinco ou dez, por uma hora, por um dia inteiro, para toda a eternidade.

- Bernardo, o que estás tu aí a fazer especado a olhar para mim?

Os meus olhos ainda mal conseguem captar os primeiros sinais da manhã, a cabeça dói-me pela intensidade do realismo com que este sonho me visitou e temperou o início da madrugada, e o tolo do Bernardo de toalha à cintura com este ar tranquilo de rapaz maroto a observar o meu despertar.

- Sabes como és bonita e o quanto eu te amo, não é verdade? Hoje acordaste especialmente luminosa.

Arrasto-me com alguma preguiça para fora dos lençóis e não resisto a atirar-lhe a almofada molhada à cara lavada e já pronta para receber o dia que acordou.

- Cala-te seu tonto! Toma, é bem feito por me teres assustado. Que ideia a tua estares para aí especado como uma sentinela a tomar conta da prisioneira.

A outra almofada serve-me de escudo à tentativa de resposta de Bernardo que mesmo assim resolve atacar-me com a única arma disponível e que carregava enrolado à cintura; a toalha húmida do hotel Napolitano.

- Pára, está quieto, sabes lá o sonho estranho que tive esta noite. Se te passasse assim uma coisa destas pela cabeça não tinhas tanta vontade de começar a manhã com brincadeiras.

Sonho estranho? Também a Constança? Coincidências assim só podem ter como causa os dias agitados que temos vivido antes destas mini-férias que já merecíamos há anos.

- Como assim Constança? Que espécie de pesadelo é que tu tiveste que te roubou a vontade de brincar?

Os seus olhos grandes e sorridentes depressa descreveram o que lhe passava pelos sentidos.

- Pesadelo?! Mas quem é que falou em pesadelo? Eu disse sonho estranho, só isso. Já não me acontecia uma coisa assim há uma eternidade. Por vezes é tão forte, tão intensa a sensação de realidade que nos é trazida embrulhada nestas viagens nocturnas que fico assustada. Pelo menos comigo é o que acontece. Estes sonhos assim tão fortes e intensos, tão reais, assustam-me e provocam-me calafrios. Foi só isso que se passou comigo esta noite. Um sonho intenso e profundamente sentido, tão real como esta conversa que agora aqui estamos a ter. E depois acordo com uma dor de cabeça tão incómoda quanto irritante, e o pior que já sei que vai durar o dia todo.

Será que tem coragem para me contar o que sonhou? Será que é mais corajosa do que eu? Será que se me disser o que tem escondido por detrás dos seus grandes olhos novamente sorridentes eu ganharei a coragem para lhe contar os meus?

- E que foi esse sonho assim tão real? Conta-me, vá lá, ou já não te lembras?

- É claro que me lembro, mas a última coisa que desejo fazer agora é ficar a falar de sonhos com um homem despido sentado à beira de uma cama de hotel desfeita. Vou arranjar-me! Dá-me dez minutinhos que estaremos prontos para ir tomar o pequeno-almoço lá abaixo e seguirmos para Pompeia conforme combinado! Se começar a falar e a contar-te a história do sonho, que nem é nada de extraordinário, ficamos para aqui como dois tontos e perdemos o sol desta bonita manhã.

Constança seguiu assim, depois de um beijo rápido e destas palavras, para o quarto de banho. Passaram poucos segundos até que o típico barulho provocado pelo duche inundou o 812 do hotel Napolitano como uma tarantela desafinada.

Ao mesmo tempo senti-me aliviado por ela ter escolhido esta opção.

*

Os caminhos parecem todos ir dar ao mesmo lugar e o pior é esta sensação de que estou a andar aos círculos. Certamente já terei vindo por aqui. Mas que raio de ideia terá passado pela cabeça de Fernanda para fugir assim tão inesperadamente de tudo e de todos? O Mundo sofreu um abalo que não julgámos ser possível. O Novembro passado alterou tudo. Alucinados julgam ter tido visões e antecipado esta catástrofe, os religiosos acreditam que o instrumento de castigo divino surgiu pelas faltas graves de fé de um povo perdido e pouco interessado em cumprir com as suas obrigações, caindo invariavelmente no abismo do pecado, da luxúria, do deboche, da depravação moral e de costumes, um povo mal agradecido e que acabou por ver cair por sobre si a espada insuspeita do castigo divino. Vigiar os vigilantes, vigiar os pecadores e os criminosos, vigiar os loucos e os despojados, os estropiados, os feridos e os criminosos, vigiar os loucos e os despojados, os estropiados, os feridos e os excomungados. Pendurar pela corda todos os que se aproveitam destes tempos insanos, todos aqueles que se refugiam ou refugiaram na miséria dos outros para aplacar a sua própria miserável condição. O número e as sombras dos que assim permaneceram como sinal no meio da neblina que se levantou naquele dia de terror, continuam a pairar como aves de rapina na memória de todos nós, na memória dos fortes e dos fracos, e perdurarão por séculos e séculos cravadas na espinha dorsal desta nação ferida. Aos poucos tentamos erguê-la do meio destes terríveis dias de desespero.

O Ministro não consegue escapar aos efeitos colaterais desta tormenta. Continua como um obcecado a alimentar-se de todas as migalhas que lhe caíram ao colo com esta improvável situação. É um homem com uma visão e com uma clara intenção, e no seu rosto e nas suas palavras, tudo o que se lê e interpreta, aponta para o mesmo destino. Não se deixa influenciar por ninguém, aproveita-se de todos aqueles que lhe permitem escrever o futuro com as cores e as tonalidades de seu agrado, e tudo, mas mesmo tudo, passa pelo seu zeloso poder de controlo. Trouxe-nos até aqui com uma intenção que ainda não houve tempo de esclarecer.

Não consigo encontrar sinais que me ajudem a encontrar a Fernanda perdida. Não quer ser encontrada, mas os perigos a que fica sujeita se insistir nesta sua tola inquietação são muito grandes. O frio da noite, a falta de alimentação, os animais selvagens que a podem visitar, a falta de tudo por troca com a sua imediata sensação de segurança, a sua sensação de fuga desta triste realidade que nos vai cercando e apertando as gargantas, sufocando-nos quase até à loucura.

- Bernardo, mestre Bernardo! Onde anda? Está a ouvir-nos mestre?

As vozes dos batedores do senhor Ministro aproximam-se. Não faço ideia porque chamam por mim ao invés de gritarem pelo nome de Fernanda. Agora até eu sinto vontade de desaparecer por instantes desta súbita situação, mas tenho de manter os pés e a cabeça bem assentes no chão que os tempos necessitam de razão.

- Aqui, estou aqui! Venham com cuidado por este arvoredo mais denso que está à vossa frente e desçam por esse desnível que se encontra no final dos pinheiros. Sigam atentamente a minha voz. Estou aqui em baixo à vossa espera.

Vou tentar promover com eles uma busca mais eficaz para conseguirmos encontrar Fernanda. Algo me diz que é urgente agir nesse sentido.

*

- Pronto Bernardo, estás a ver! Nem todas as mulheres necessitam de horas para ficarem arranjadas. Anda, vamos tomar o pequeno-almoço e depois arrancamos até Pompeia.

Que sonho terá visitado Constança? Que sentido fará esta sensação de que eles nos comunicam outras verdades, partes desta verdade, ou até a verdade camuflada, embrulhada em códigos semi-indecifráveis que contêm tudo aquilo que somos, que fomos ou o que seremos? Mas que raio estou para aqui a divagar? A minha bela mulher, tão luminosa, e eu em divagações tolas sem sentido.

- Vamos, estou com uma fome daquelas! Espera, ia-me esquecendo das chaves do carro.

Enquanto sorria, enquanto mantinha a porta do 802 semi-aberta com aqueles olhos perfeitos a olharem para mim, corri para Constança e beijei-a como se fosse este o último dia de nossas vidas.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Os libertadores são agora um mero joguete em meu poder. Existem porque nasceu esta minha vontade incontrolável em os espalhar por estas paredes e por este chão. Não posso parar, não consigo parar de lhes semear calamidades pelo caminho. Mais desgraçado do que eu só o verme venenoso que me despedaçou o destino ao esconder-me neste cárcere sem piedade. As palavras saltam inclementes e vão dormir umas por cima das outras, acalmando as primeiras, sobressaltando as seguintes, alterando e emaranhando os acontecimentos, reforçando a minha felicidade. Não me interessam os alicerces nem os pudores. Das escuras profundezas da floresta farei saltar os mais desprezíveis monstros, os mesmos que povoei na cabeça da menina nos anos antes da mortandade. Avançarão tomando conta de tudo, preenchendo todos os espaços do bosque. Acabarão com todo o ar, transformarão a paisagem em cinzas e um terrível medo da morte pairará para sempre no funesto e incinerado horizonte. A esperança ficará para sempre despedaçada e os sonhos deixarão de fazer qualquer sentido. Os anjos deixarão de existir e coisa alguma poderá devolver aquilo que já foi a nenhum local por onde passar um libertador. Escondida que está numa gruta muito afastada de todos os indicadores de passagem, aí permanecerá até que a minha vontade a devolva à história. Farei com que a surpresa deste momento a todos apavore. Sou eu que comando estes destinos e esta viagem. Os libertadores são falsos e perversos. O mais assombrado e temeroso de todos pressagiou a minha desgraça e escreveu com facilidade infantil esta clausura. Cativou os restantes para os adornar e manietar, para lhes falsificar as ideias e os interesses, para lhes envenenar a razão. Isto não sou eu que o digo, isto são meramente as minhas amigas palavras que continuam a brotar sem vergonha e tumultuosamente se aninham pelas paredes desta cela, umas sobre as outras, sobre as outras. Repetem a mesma ideia, sempre constante, de que tudo é apenas ilusão, de que nada do que aqui se passa está verdadeiramente a acontecer, e de que tudo se irá transformar numa imensa nuvem escura tal como previsto pelos monstros que vieram atormentar mestre Bernardo no coração de bosque. Antes de encontrar o lugar reservado para Fernanda, o médico terá de sofrer com a maldição que lhe será imposta por esses miseráveis pesadelos que nunca deixaram de atormentar a senhora.

A cabeça pesada, a vista turva, um veneno impiedoso acaba de te penetrar pelas veias e ataca-te o peito acelerando tanto o coração que este foge em direcção aos negros caminhos da floresta. Corre Bernardo, corre como libertador ferido de morte atrás do teu órgão destruído, atrás do teu órgão despedaçado que não mais te deseja. Os olhos saltam, os pulmões rebentam e o estômago há muito que jurou fazer parte de um outro corpo que não o teu. As tuas narinas fecham-se, o cérebro cansado começa a desligar-se. As têmporas são agora nascentes por onde o teu sangue se esvai, por onde desliza pelo que ainda te resta de pessoa. O mais indigno dos homens tem agora que ser descarnado. Retiram-te os restantes órgãos um a um pois são eles a causa de toda a tua bestialidade. A imperfeição assustadora daquilo que é o corpo de um libertador ficará assim desfeita. Quem tu és ficará assim à vista de todos os que conseguirem decifrar mais esta vitória. Já não consigo entender tanta palavra sobreposta. Os vermelhos e ocres escondem o que de mais espantoso as palavras ditadoras desenharam.

Quando te despiram finalmente esse teu corpo inútil, entendes-te o verdadeiro significado da liberdade. As dores desapareceram, as mágoas deixaram de fazer sentido, as nódoas e as cicatrizes foram-se com ele. Consegues pela primeira vez compreender o significado da perpétua liberdade e de como Deus se equivocou ao construir um homem munido com tantos órgãos.

*

Os caminhos estavam escuros e a partir da derradeira descida não me recordo de muita coisa. Nenhum sonho me deu conta deste lugar, mas as pernas delicadamente fizeram-me vir até aqui. Desci mais e mais ainda por uma vereda arriscada. Não sei porque corro tanto, corro para sentir as pernas até as deixar de perceber. Mestre Bernardo não pode adivinhar esta minha paixão. São inúteis as minhas palavras, são inúteis os meus desejos. Somos tão diferentes e tão impossíveis como o fogo e o gelo, como o vinho e o leite, como o lobo e o cordeiro. Os monstros implacáveis que me fazem companhia continuam a atacar-me a garganta e a mancharem-me a língua com hálito de amargura. Cedo às lágrimas que me turvam uma vez mais a visão. Arrisco um salto sobre um pequeno tronco caído sem perceber o imenso vazio que se esconde atrás de si.

- Fernanda! Fernanda! FERNANDA!

*

Mais palavras a esconderem as anteriores. Os poços de tempo que se estendem diante os libertadores têm tanto de invisível como de insensível. Alinhadas ao longo de uma pequena e fina linha, as vidas destes libertadores são projectadas por estes tecidos fabricados com a misteriosa textura do tempo. Despem-lhes as memórias antes de lhes alinhavarem novos órgãos e de os vestirem com outros corpos, retirando-lhes uma vez mais o sentimento único de perpétua liberdade.