Os libertadores são agora um mero joguete em meu poder. Existem porque nasceu esta minha vontade incontrolável em os espalhar por estas paredes e por este chão. Não posso parar, não consigo parar de lhes semear calamidades pelo caminho. Mais desgraçado do que eu só o verme venenoso que me despedaçou o destino ao esconder-me neste cárcere sem piedade. As palavras saltam inclementes e vão dormir umas por cima das outras, acalmando as primeiras, sobressaltando as seguintes, alterando e emaranhando os acontecimentos, reforçando a minha felicidade. Não me interessam os alicerces nem os pudores. Das escuras profundezas da floresta farei saltar os mais desprezíveis monstros, os mesmos que povoei na cabeça da menina nos anos antes da mortandade. Avançarão tomando conta de tudo, preenchendo todos os espaços do bosque. Acabarão com todo o ar, transformarão a paisagem em cinzas e um terrível medo da morte pairará para sempre no funesto e incinerado horizonte. A esperança ficará para sempre despedaçada e os sonhos deixarão de fazer qualquer sentido. Os anjos deixarão de existir e coisa alguma poderá devolver aquilo que já foi a nenhum local por onde passar um libertador. Escondida que está numa gruta muito afastada de todos os indicadores de passagem, aí permanecerá até que a minha vontade a devolva à história. Farei com que a surpresa deste momento a todos apavore. Sou eu que comando estes destinos e esta viagem. Os libertadores são falsos e perversos. O mais assombrado e temeroso de todos pressagiou a minha desgraça e escreveu com facilidade infantil esta clausura. Cativou os restantes para os adornar e manietar, para lhes falsificar as ideias e os interesses, para lhes envenenar a razão. Isto não sou eu que o digo, isto são meramente as minhas amigas palavras que continuam a brotar sem vergonha e tumultuosamente se aninham pelas paredes desta cela, umas sobre as outras, sobre as outras. Repetem a mesma ideia, sempre constante, de que tudo é apenas ilusão, de que nada do que aqui se passa está verdadeiramente a acontecer, e de que tudo se irá transformar numa imensa nuvem escura tal como previsto pelos monstros que vieram atormentar mestre Bernardo no coração de bosque. Antes de encontrar o lugar reservado para Fernanda, o médico terá de sofrer com a maldição que lhe será imposta por esses miseráveis pesadelos que nunca deixaram de atormentar a senhora.
A cabeça pesada, a vista turva, um veneno impiedoso acaba de te penetrar pelas veias e ataca-te o peito acelerando tanto o coração que este foge em direcção aos negros caminhos da floresta. Corre Bernardo, corre como libertador ferido de morte atrás do teu órgão destruído, atrás do teu órgão despedaçado que não mais te deseja. Os olhos saltam, os pulmões rebentam e o estômago há muito que jurou fazer parte de um outro corpo que não o teu. As tuas narinas fecham-se, o cérebro cansado começa a desligar-se. As têmporas são agora nascentes por onde o teu sangue se esvai, por onde desliza pelo que ainda te resta de pessoa. O mais indigno dos homens tem agora que ser descarnado. Retiram-te os restantes órgãos um a um pois são eles a causa de toda a tua bestialidade. A imperfeição assustadora daquilo que é o corpo de um libertador ficará assim desfeita. Quem tu és ficará assim à vista de todos os que conseguirem decifrar mais esta vitória. Já não consigo entender tanta palavra sobreposta. Os vermelhos e ocres escondem o que de mais espantoso as palavras ditadoras desenharam.
Quando te despiram finalmente esse teu corpo inútil, entendes-te o verdadeiro significado da liberdade. As dores desapareceram, as mágoas deixaram de fazer sentido, as nódoas e as cicatrizes foram-se com ele. Consegues pela primeira vez compreender o significado da perpétua liberdade e de como Deus se equivocou ao construir um homem munido com tantos órgãos.
*
Os caminhos estavam escuros e a partir da derradeira descida não me recordo de muita coisa. Nenhum sonho me deu conta deste lugar, mas as pernas delicadamente fizeram-me vir até aqui. Desci mais e mais ainda por uma vereda arriscada. Não sei porque corro tanto, corro para sentir as pernas até as deixar de perceber. Mestre Bernardo não pode adivinhar esta minha paixão. São inúteis as minhas palavras, são inúteis os meus desejos. Somos tão diferentes e tão impossíveis como o fogo e o gelo, como o vinho e o leite, como o lobo e o cordeiro. Os monstros implacáveis que me fazem companhia continuam a atacar-me a garganta e a mancharem-me a língua com hálito de amargura. Cedo às lágrimas que me turvam uma vez mais a visão. Arrisco um salto sobre um pequeno tronco caído sem perceber o imenso vazio que se esconde atrás de si.
- Fernanda! Fernanda! FERNANDA!
*
Mais palavras a esconderem as anteriores. Os poços de tempo que se estendem diante os libertadores têm tanto de invisível como de insensível. Alinhadas ao longo de uma pequena e fina linha, as vidas destes libertadores são projectadas por estes tecidos fabricados com a misteriosa textura do tempo. Despem-lhes as memórias antes de lhes alinhavarem novos órgãos e de os vestirem com outros corpos, retirando-lhes uma vez mais o sentimento único de perpétua liberdade.
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