quarta-feira, 3 de março de 2010

SEGUNDO ACTO - continuação IX




- Na altura em que estranhas ideias pareciam ter desaparecido das mentes, deixando de as pintar com as cores das dúvidas, deram-me as notícias de uma senhora, desta precisa senhora que, enquanto adormecida, falou de coisas muito secretas. Foram essas palavras, suficientemente particulares, que aqui me fizeram deslocar. Meu caro Bernardo, é agora o tempo de colocarmos as verdades em cima da mesa. As palavras da senhorita provocaram muita estranheza e espanto a quem mas comunicou. Sei que tem passado com ela todo o tempo da sua recuperação e agora, que já acordou, embora ainda aparente muita fragilidade, temos de encontrar maneira de dar entendimento a tudo o que dela se ouviu, a tudo o que dela se foi escutando. Disso não poderei abdicar ou abrir mão. Acredito que muitas locuções da senhorita estão apetrechadas com aquilo a que os mais cépticos poderão apelidar como “inspiração de forças pouco dignas”, capazes de fazer brilhar de contentamento os olhos aos senhores inquisidores. Desse assunto aqui vos venho dar sossego. Desta conversa ou do que aqui for tratado, tudo ficará salvaguardado no secretismo das nossas convicções, isto vos digo para que não restem quaisquer dúvidas.

Mas como? Percebo que muito falei enquanto adormecida? Foi isso que aconteceu, logo quando permaneci com a tentação suprema de não falar por um período suficientemente largo, até assentarem as poeiras dos receios e as de todos os destroços. Fui traída pela voz dos pesadelos e dos sonhos. Falaram por mim e modificaram-me as vontades para o exacto oposto daquilo que eu tinha estipulado.

Dos dias mais terríveis de todos os tempos, sem dúvida. Todas as pequenas e grandes continuações dos abalos foram antecipadas nas palavras da rapariga. Manuel Constâncio e Lefébvre testemunharam essas premonições, e sei que da boca do amigo nada seguiu em direcção à corte. Foi Constâncio que deu notícias destas palavras e do peso inquietante das suas repercussões. Descer dos infernos à Terra, procurar as inquietantes respostas a questões que não gostamos, dúvidas que nos são colocadas de formas quase alienadas, quase secretas, pelas misteriosas vozes que transportamos dentro de nós. São capazes de nos induzir a loucura, de nos fazer pensar em coisas sobre as quais não conseguimos obter quaisquer respostas. Sonhos, vozes surdas e misteriosas, acontecimentos que assim nos são dados a conhecer e que nos fazem sentir estranhos, tão estranhos quando depois surgem realizados, como a mais bizarra das criaturas do Mundo. Temos de nos cuidar que estes tempos não são sensatos.

- Senhor Ministro, caro amigo. De certeza que não desejará ouvir palavras sem sentido ou comunicações desgarradas de quem, como muito bem sabe, estava com a sua mente ausente da realidade enquanto falava. A senhora fazia perguntas e mais perguntas às quais ia dando respostas com a rapidez de um ágil pardal. Das incertezas constantes às grandes dúvidas que nos afligem nestes dias desordenados, as palavras da enferma começaram a sair-lhe na segunda das noites após a termos transportado até aqui, dois dias depois do trágico dia. O senhor ministro imaginará qual o espanto causado na escuridão do final da tarde, quando a senhora começou a falar, com os olhos sempre cerrados, sem que um único dos seus músculos desse sinais de vida, apenas os que lhe iam permitindo o dom para tantas palavras.

Falei, utilizando processos desconhecidos, enunciados de forma clara, calculados por forças distantes e que cresceram da minha boca para fora. Não resta disso a mais pequena das dúvidas. Qual terá sido a utilidade dessas minhas palavras? Que rumo lhes terá sido destinado e que estranho impacto terão provocado em quem as escutou? Estamos reunidos para conseguir trazer alguma luz sobre esse assunto e o senhor ministro tem sido bem claro nas suas intenções. Eu delas nada me recordo e os meus receios amansam ao escutar a conversa destes dois homens. As suas vozes possuem esse estranho condão, como se um feitiço clarinho ou uma bênção infinita as vestisse.

- Preciso que me indique o que delas entendeu. Preciso que me dê a conhecer de que maneira as interpretou e que obscuros poderes podem conter. Segundo aquilo que outros me relataram, as palavras da senhora deram conhecimento de acontecimentos, alguns pequenos outros mais complexos, como os pequenos sustos provocados pelo agitar continuado do chão e das terras feridas que pisamos. Muitas das suas conversas foram de tal maneira acertadas que no caso de um desses seus avisos, a terra tremeu no exacto momento em que terminaram as palavras de aviso. Se tais situações se repetiram por mais de duas ou três vezes, consideramos ser improvável que as regras das coincidências tenham aqui qualquer fundamento. E o que dizer, se tal for verdade, das palavras em que descreveu a cidade com casas maiores do que montanhas e desenhando-a maior do que o Mundo, ligada entre as margens através de gigantescas pontes e onde os seus habitantes se deslocavam voando? E quando mencionou a minha futura presença neste quarto, dizendo que as importantes informações de que é proprietária chegariam de maneira tão rápida ao meu conhecimento, que o resultado não poderia ser outro que não este? Aqui se dá novamente a transformação daquilo que não aconteceu numa realidade insofismável, mais uma vez, tal como antecipadas pelas palavras desta senhora! Como vê, meu caro amigo, é mesmo importante falarmos sobre todas estas conversas, e sobre tudo isto de que lhe falei, Mestre Bernardo, o que tem agora para me dizer?

Meus sonhos, minhas secretas vontades perdidas. Quem se atreveu a delas dar conhecimento? Fiquei despida! Os meus pensamentos e ideias dados ao desbarato, colocados à mercê de quem estivesse por perto para os escutar. Esta foi a maneira encontrada para que as redes do destino me dominem os sentidos, me ponham travão aos mais perversos pensamentos e desejos. Das últimas loucuras ainda não disse palavra. Continuo a pensar nelas enquanto medito, enquanto respiro, enquanto sinto. As minhas dores serão atacadas, amarfanhadas, amordaçadas e colocadas numa redoma para exposição. Nada pode ser feito para alterar o estatuto destas vontades. Enquanto dominarem as minhas forças nesta parte da realidade, a minha boca permanecerá cerrada. Preciso de saber tudo o que disse enquanto me mantive apartada daquilo que conheço, enquanto permaneci adormecida após a queda da alva montada. Continuo com esta estranha vontade em transformar o mundo num imenso caos, de lhe revolver as entranhas, fazer com que os seus mais profundos delírios engulam a luz do dia e o transformem numa imensa escuridão. Seria perfeito se estes dotes tivessem desaparecido para todo o sempre. Estes meus sonhos são pequenos pedaços de barro trabalhados pelas mãos serenas e hábeis do mais astuto dos oleiros. Ao serem moldados pelas forças do destino, são intensas as dores e terríveis as implicações que acabam por ter sobre tudo e sobre todos.

Quando as minhas vontades se atravessam loucas no meio dos Libertadores, eles trabalham como os mais esforçados dos escravos do deserto. As pirâmides de intenções crescem com tamanha velocidade que faltará pouco para que dominem as paisagens em todo o seu esplendor, em todo o seu esplendor. Não me interessam nada, nada, os outros lugares, e os outros ruídos, os ruídos das palavras, os ruídos dos outros loucos, os ruídos dos meus dedos, dos meus dedos a gatafunhar nas paredes deste pequeno cubículo, a conversar, a conversar com as paredes deste cubículo, a gatafunhar. Os perfumes são de loucura e os Libertadores continuam a passear, a passear toda a sua força por este reino, por todas as desgraçadas e escuras dimensões do nosso reino, a passear a sua força e o seu perfume, e os seus perfumes, que são de loucura e de desgraça e fazem tudo o que lhes comando, como estes sons que de tão estranhos já nem me perturbam, são como uma nuvem desgarrada e pálida, fria e desconexa, que como o vento ora sopra mais feroz, ora amaina a sua correnteza, a sua correnteza, que continua a trepar pelas paredes, pelas paredes deste sal e desta pedra que vou gatafunhando, riscos de sangue e de podridão uns por sobre os outros, como as mentiras, como todas as mentiras que os Libertadores acabam por descobrir, acabam por decifrar, para transformar em sombras de maior loucura, ou de uma ainda maior sanidade, às minhas ordens, tudo ao meu comando, como uma sombra perpetuada pelas minhas vontades, pelas minhas loucas vontades!

- (gritando) Libertadores! Os Libertadores voltaram! Os Libertadores estão fechados nos quartos conversando acerca dos poderes secretos da escuridão, e são nossos aliados, são os nossos mais falsos aliados!!!!!! Voltaram, voltaram porque necessito deles como das frases, das frases que desenho nas paredes, umas sobre as outras como as poeiras da destruição, como as poeiras das minhas conversas que se transformam em destruição, para renascer das cinzas, para poderem renascer das suas cinzas. Libertadores! Escutem-me, aqui me encontro, preso nesta masmorra de loucura, preso mas mais seguro do que todos, mais seguro que todos e afastado da vossa loucura e desse poder mentiroso que vos secou a razão.

Formalizemos o resto desta procura até lhes conseguir encontrar algum significado para além do que representam. As palavras devem ser medidas sem comentários, interpretadas por momentos de rigor mas com a devida e necessária distância.