segunda-feira, 2 de novembro de 2009

PRIMEIRO ACTO - continuação XIV


Cedo neste dia comecei a duvidar de minha sensatez. Ameaçaram os meus sonhos com as tonalidades de tudo o que estava para acontecer. Pintaram-se com as imagens terríveis do futuro, e não foi a primeira vez que tal me aconteceu. Durante os momentos em que tudo se passou antes de ocorrer, em que o susto, as mortes, as desgraças e a loucura passaram a cores cinzentas pela minha noite inquieta, uma luz paciente emergiu serena no meio da inquietude. Um rosto de uma rapariga olhava para o pavoroso cenário sem que este lhe provocasse qualquer dor. O chão rodava por debaixo de si. Ela, contudo, permanecia imóvel, tranquilamente imóvel a observar a dimensão caótica do acontecimento. Consegui ver o chão e o corpo da rapariga a rodarem na minha direcção, a rodarem até que ficou virada para mim, cara a cara, permitindo-me gravar na perfeição todas as particularidades da sua expressão, a forma da sua cara, a cor e a dimensão dos seus olhos, as características particulares das suas sobrancelhas carregadas e bem desenhadas que as tornavam marcos quase artísticos nesse olhar, o seu cabelo, as suas orelhas, o nariz, a boca larga de lábios rosados. E foi a força, a intensidade e a luz que emanava dos seus olhos poderosos que não me foi possível esquecer. E agora que se torna quase inútil deixar antecipar maiores tragédias, agora que o pesadelo está transfigurado em cruel realidade, eis que nesta transfigurada ilusão, nesta apocalíptica alteração dos tempos, a rapariga do sonho me aparece por aqui, como se estivesse a aguardar a minha presença. Colocou-se estrategicamente perante a morte para provocar a minha instintiva reacção. Anjo, demónio ou apenas uma coincidência de dimensões despropositadas. Nada me leva a crer que estes acontecimentos possam estar relacionados, a minha racionalidade impede todas as tentativas que o cérebro faz na procura desse caminho. Quem poderá aparecer a alguém, após tão curto intervalo de tempo, em duas realidades tão desconexas e distantes? Estará o mundo dos sonhos assim tão apartado da realidade do que agora nos cerca, ou da consistência daquilo que nos cercava? As extravagâncias e a loucura de uma ópera orquestrada pelas forças mais brutais e desconhecidas abateu-se sobre a capital do reino, e nada me consegue afastar das ideias de que tudo se encontra interligado, de que uma estranha e misteriosa ordem cola estes acontecimentos, fazendo-nos simultaneamente acreditar na nossa capacidade de jogar com eles, de os conseguirmos alterar através das nossas acções, de todas as nossas inconstantes alterações de humor e de vontade. Nada mais falso e mais perfeito. De quando em vez são minados os sonhos e alguns momentos particulares da nossa razão com as apropriadas doses de dúvida e de inconstância. Ficamos com as certezas abaladas, desconcentram-se as nossas capacidades e a razão e a loucura colam-se por instantes à nossa orgulhosa lucidez. Ficamos a observar tudo o que se passa em redor como pequenas marionetas amedrontadas. As palavras e os actos dos outros soam distantes e perturbadores, tornam-se subitamente óbvios, tão pouco singulares, como se tudo já tivesse acontecido ou, sem ter acontecido, como se soubéssemos exactamente todos os passos, todos os gestos e todas as palavras do que está a acontecer. E tu rapariga, a tua presença foi-me antecipada mas nunca imaginei que pudéssemos respirar o mesmo ar ao fim de pouco mais do que umas horas.

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Sair do centro do susto, continuar a correr até ao lado mais afastado desta doença, fugir sem rumo para acalmar os meus pavores. Este senhor médico parece trazer consigo uma das chaves da porta que antecipa o lado de lá dos nossos caminhos. Parece ser capaz de me dar algum sossego e evitar que as minhas pernas e os meus pés desapareçam transformados no sangue e nas bolhas que não sinto. Salvou-me ao afastar-me daquela morte certa, daquele instante em que, sem perceber, parei após a louca fuga em direcção ao centro da partida, ao centro do lugar onde a minha vontade se transformou em visão real. Este senhor olhou para mim e agora seguimos juntos montados neste cavalo imenso e bem bonito. A julgar pelo galope apressado com que vai assustando a montada, também ele parece desejar fugir de qualquer coisa que o perturba. Nisso sinto que somos iguais. Começo aos poucos a voltar a sentir as minhas pernas, os meus pés. É uma dor aguda, húmida e intensa, que toma agora conta de mim. Se não apertasse os meus braços com força ao redor do cavaleiro, já teria caído do cavalo para o meio do chão. Olho para baixo e agradeço a velocidade com que avançamos para longe de tudo, para longe daquela destruição, para longe do cheiro a morte, para longe de tudo aquilo que eu ajudei a acontecer. Se alguém me descobrir os pensamentos morrerei pela força das cordas, se alguém me decifrar os códigos que trago escondidos no centro do meu coração, morrerei pela força das cordas. Melhor será esconder a linguagem por uns tempos. Ao calar a voz não tropeçarei na armadilha das palavras, não irei trair a minha própria confiança, adiarei a morte que me espera pela força das cordas. E sabe tão bem sentir o calor deste abraço, juntá-lo às imagens desfocadas do chão que vai traçando linhas velozes, escutar o compassado ritmo do galope a adocicar os meus receios. Gostava de ter o poder para guardar este momento para toda a eternidade. Nada me resta, nada ficou, nada me pertence, apenas os sentidos, apenas o meu corpo e o que ele me dá a perceber. Este calor, as desfocadas linhas velozes e coloridas, a música ritmada tocada pelas fortes patas do cavalo, são as únicas coisas que me pertencem. Sobram-me as manchas que vão salpicando o branco imaculado da montada, desenhando-lhe na pele estrelas vermelhas de várias formas e tamanhos, como se o corcel fosse um imenso céu em movimento, um céu a cavalgar veloz para nos dizer que nada disto, afinal, está verdadeiramente a acontecer…

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