domingo, 28 de novembro de 2010

QUARTO ACTO - continuação XII


- Fomos enviados com ordens precisas do senhor Ministro para transportar vossas senhorias. Façam o favor de subir e desfrutar da curta viagem que vos aguarda até Oeiras.

O guarda era imponente e a sua voz, apesar de polida e serviçal, continha um travo militar suficientemente rude e austero ao qual obedecemos sem revelar qualquer estranheza. Fernanda trocou comigo um olhar cúmplice e a sua mão, mais uma vez vestida com a impecável luva de linho, pede-me auxílio. Ajudo-a a chegar mais facilmente ao pequeno degrau que permite o acesso à sege amarela de quatro rodas que nos transportará até à presença do Ministro Sebastião. Pela pequena janela da portada despedimo-nos em silêncio da nossa aliada. A sua mão bordada deixa cair a cortina e ficamos os dois a admirar a diferença deste silêncio. O cocheiro dá sinal e o chicote estala fazendo saltar para a frente a viatura. Sem dificuldade ganha velocidade avançando paralela ao rio e muito perto do lugar onde o oceano recebe o Tejo de braços abertos nesta memorável manhã. Fernanda gere os silêncios com notável mestria. Os seus olhos guardam os segredos desta noite. Olha-me com um sorriso cúmplice ao mesmo tempo que com a mão esquerda despe a direita e me semeia um afago na face. Ao longo dos minutos, não horas, que a viagem durou, entretivemos a existência com beijos quentes, apaixonados, deixando mais uma vez que o tempo se derretesse no curto espaço da viagem.

- Não digas uma única palavra Bernardo, não me obrigues a contar-te o que está para acontecer. Aproveitemos este milagre pois a única certeza que temos é a doçura dos nossos beijos, é este aqui e agora, é o sermos príncipes deste nada, é voltar a amar-te assim perdidamente. Os sinais são por demais evidentes, encontram-se por toda a parte e em parte alguma. A separação é um momento, um instante e não a desejo por nada deste Mundo mas os meus desejos apagaram-se, desapareceram com o meu suposto dom.

Voamos outra vez na perdição de um abraço, deixamos que os receios se derretam no calor de nossos beijos, no calor desta paixão resgatada ao passado, resgatada aos nossos sonhos e alimentada pela maior de todas as tragédias.

- Não temos grande escolha Bernardo. O Ministro irá dar-nos a conhecer os seus propósitos. Tem tirado o máximo partido das dificuldades sentidas por todos após a catástrofe, transformando esse triste presente através das suas organizadas visões, valorizando-se e valorizando o seu próprio futuro excepcionalmente. Se não colocasses as minhas visões atormentadas no papel pela força da tua pena, não estaríamos agora aqui, mesmo que tais palavras sirvam os estranhos interesses do Ministro e este se sinta tentado a ir mais além do que aquilo que é humanamente projectável. A doença da vaidade vem montada na cegueira do poder absoluto. Juntos, são o mais forte e traiçoeiro de todos os venenos.

As suas mãos estão frias, ficaram assim após estas palavras.

- Que se passa? A palidez e as mãos subitamente tão geladas não são sinais animadores. O teu olhar parece também querer acompanhar a súbita neblina que cobriu sem aviso o sol desta manhã.

Apertou com mais força as minhas mãos nas suas.

- É a sensação de voltar a ter receio do que nos possa acontecer. Apesar da vitória obtida ao conseguir deixar de antecipar todos os momentos, o passado mais recente instaurou de tal forma esse gosto, essa segurança negra e nefasta, que o corpo acabou por reagir. Não é razão para preocupação. As decisões deverão estar a ser todas tomadas neste exacto momento.

Não consigo entender que decisões serão essas. O rosa volta a colorir a sua bela figura parecendo aumentar o tamanho dos seus olhos amendoados. O cabelo audaz fala por ela, reage em função de cada pequeno movimento, a cada sinal de fragilidade revolta-se, celebra essa rebeldia como a coroa viva da sua princesa. Fernanda é belíssima, justa, misteriosa e apaixonada, elegante, livre, angelical e madura, frágil e tão natural como as estranhas mensagens que lhe saem sem licença dando conta de um estranho futuro. Deslumbra tamanha intensidade, tamanha vontade em encontrar respostas para todas as dúvidas que a perturbam.

- Não procures encontrar um sentido para as coisas a partir de hoje. Acredita apenas que tudo o que nos acontece tem um estranho desígnio agarrado a esta luz.

Acalma novamente os meus lábios com os seus, alcança outra vez este coração viajando por ele como antes ninguém conseguiu. Continuadamente provocamos o tempo da viagem e apesar de muito curto, conquistou-me para sempre pelas emoções que acaba de me causar. Dou por mim a desejar que nunca mais acabe.

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sábado, 27 de novembro de 2010

QUARTO ACTO - continuação XI


Sei como funcionam estas coisas. As sirenes ouvem-se ao longe, um gato listrado passa apressado num silêncio felino. Posso ainda tentar salvá-la, devo ligar imediatamente a meu pai e responder-lhe à mensagem de terça-feira passada. Constança não responde. As pessoas continuam a correr apressadas tentando apanhar os restos de esperança que já ninguém sabe onde se esconderam. Não responde, não me responde desde o dia da sua mensagem. Vivem-se breves instantes de acalmia e tudo de novo se agita. Oscilamos para todos os lados. Várias são as explosões que sem tréguas removem dos lugares de descanso as construções dos homens, algumas com séculos de resistência e que agora finalmente tombam derrotadas. Assistimos à destruição dos diversos cenários da cidade, incêndios às centenas vão consumindo os prédios e impedindo qualquer tentativa de fuga às pessoas encurraladas. Os desastres sucedem-se, as ruas e avenidas estão cheias com as multidões que por elas tentam avançar procurando auxílio e salvação. Estive adormecido por uns instantes. Atravesso a rua saltando pelos vários carros abandonados que ninguém se preocupa em conduzir. Nalguns deles ainda se ouvem gemidos e gritos. Foram muitos os que ficaram encurralados dentro das chapas retorcidas. O trânsito é tão caótico a esta hora da manhã que a tragédia parece ter propositadamente escolhido a pior hora do dia para se manifestar. As viaturas queimadas são agora bombas relógios que se encontram aleatoriamente espalhadas por toda a cidade. O terramoto de Lisboa acordou do seu sono, veio novamente visitar os seus habitantes e causar uma devastação inimaginável. O número de vítimas que hoje se contarão pelas artérias da capital será seguramente superior a meio milhão de almas. Todos estes sobreviventes receiam as consequências terríveis do mais que provável maremoto que nos irá arrasar dentro de alguns minutos, tal como nesse distante primeiro de Novembro de 1755. Ninguém sabe o que fazer. O caos instalou-se de tal forma que é indescritível o que por aqui se está a passar. É impossível explicar todas as cambiantes do pesadelo. Para onde quer que eu olhe a destruição e a morte pintam a história deste dia. Repito vezes e vezes sem conta as tentativas de ligação sempre com o mesmo resultado. O telemóvel acabou mesmo por ficar num silêncio total. Ninguém fala com ninguém, as palavras como as conhecíamos deixaram de se fazer entender. O tempo devia de ser desligado neste exacto momento, devia ser transmutado para um qualquer segundo do dia de ontem para que todos pudessem ter tido a oportunidade de abandonar esta cidade destruída. O céu é agora negro e vermelho. Onde antes reinava um sol esplendoroso, vestiu-se um céu escuro e carregado com as cores da cinza. Podíamos ter chegado a este futuro mas num diferente lugar, num outro qualquer lugar onde a destruição pudesse ter sido evitada, onde todos pudéssemos ter mostrado a língua à morte com orgulho infantil.

Ligo a luz e volto de novo a limpar a testa suada. Constança dorme profundamente e nem deu conta do meu desassossego. As peças não se encaixam, perdem-se algures entre os enviados misteriosos do passado e este alucinante e monstruoso retrato do futuro.

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terça-feira, 23 de novembro de 2010

QUARTO ACTO - continuação X


As palavras de Fernanda obrigaram-me a dar-lhes um caminho. Resgatá-las do perpétuo esquecimento passou a ser a tarefa deste zeloso soldado. Antes de mais tive de dar ordens para me fazerem chegar todas as necessárias ferramentas de trabalho. Continuo adepto deste instrumento da escrita, estas penas de ganso que tratadas de maneira tão especial deslizam nas folhas como nenhum outro. A decisão está tomada e as descrições de espantosos locais continuam a sair ritmadas e sem travão, continuam a espantar pelo pormenor, pela dimensão e por tudo o que de tão fantástico vai dando conta.

( livro de Bernardo )

A navegação é feita sem paralelo ao que hoje conhecemos. Enormes espaços flutuantes do tamanho de cidades dão abrigo em torres e mais torres iluminadas a milhares de pessoas que neles navegam, que neles habitam. Os seus senhores são desconhecidos, e muitas são as estranhas músicas que se escutam ao redor das gigantescas construções. Não entendo como podem ser tão ordeiros, como conseguem saber ao certo o que fazer, para onde avançar, a que propósito e a que vontades obedecer. Os diferentes sons misturam-se ululantes, inebriantes, e todos estes seres aparentam obedecer cegamente às melodias que os guiam como se fossem apenas pequenos desenhos rabiscados de forma rápida no horizonte. De quando em fez fazem-se ouvir palmas. Sem nenhum sentido saem das nuvens escuras como chuva para os abraçar, para os acarinhar, principalmente àqueles que parecem marchar mais abandonados e sem direcção. As palmas transformam-se em mais música, repetitiva, desordenada, descompassada. Uma amálgama de instrumentos a dar vida a um conjunto bizarro de sons desconexos e desorganizados que afectam a vida de todos os habitantes desses galeões gigantescos, dessas montanhas de vida que se mantêm estranhamente à tona de água. Sobem de ritmo e de intensidade, cada vez mais desorientados e desorganizados, repetitivos, agudos. Começam a incomodar de tal maneira todos os seres vivos que por ali se cruzam que estes começam a desesperar, levando as mãos aos ouvidos, tapando-os e colocando-se de joelhos e de olhos fechados à espera que o monstro ensurdecedor que cresceu no céu possa finalmente desaparecer. Nada disso acontece. A montanha acelera o seu compasso, o ruído é cada vez mais intenso, mais agudo e mais repetitivo, tornando-se agora verdadeiramente insuportável. Alguns começam a sangrar dos ouvidos e os gritos de dor são completamente abafados pela ruidosa montanha. Caem derrotados pelo chão, espalhados, uns por sobre os outros, como frágeis castelos de cartas levados pelo vento. São milhares os corpos que se contorcem de dor nestas caravelas ruidosas a quem o destino cobriu de ruído desejando acabar com a vida de todos. As ordens que estavam acostumados a seguir e que lhes eram transmitidas através da música suave que se escutava por toda a parte, foi assim violenta e cruelmente arruinada.

Navego sozinha no meio dos corpos dos habitantes. A água por onde me faço transportar é a carne e os ossos dos habitantes massacrados destas ilhas. Neste terramoto formado no estranho futuro, um único sobrevivente vai-me acenando com os braços. Assim que me viu, ergueu-se, e avança a correr com incrível agilidade. É alto, traja uma indumentária muito diferente daquela a que estamos acostumados. O seu corpo parece estar desnudado mas as mãos, a cabeça e os pés saem perfeitos na sua tonalidade rosada pelas mangas, colarinho e junto aos tornozelos onde o azul acaba. Todo o restante corpo está vestido com um apertado e fino traje azul-escuro. A cabeça totalmente desprovida de cabelo tem à volta da testa uma tira com letras estranhas e uma barra pintada num vermelho vivo e cativante. Salta por cima dos muitos corpos que ficaram deitados após a tragédia, salta como se precisasse de provar nesses seus pulos que está vivo e que o consegue fazer. Mantenho-me quieta e em silêncio à sua espera, mantenho uma calma e uma tranquilidade que não seria normal numa situação destas, mas que estranhamente me invadiu. O atleta nunca mais chega. Quanto mais corre, quanto mais salta e quanto mais rápidos são os seus movimentos, mais pequeno e mais afastado de mim parece ficar. Estou assustada com o seu possível desaparecimento. A calma abandonou-me por este motivo. Corro na sua direcção, corro para tentar fazer-me chegar até si, para provar que estou viva e que o consigo fazer. Salto como ele por cima dos habitantes caídos deste imenso lago de corpos, corro para me dar a conhecer a este estranho que ainda agora corria na minha direcção. O que me teria para dizer? O que tenho eu para lhe contar? Tropeço mais de uma dezena de vezes antes de o conseguir alcançar. Reparei que parou de correr e de saltar assim que me viu arriscar esta corrida. Uma nuvem triangular transformou-se em cavalo branco e desceu dos céus para junto de nós. O atleta deu-me a mão, colocou-me na garupa do cavalo e também ele o montou de seguida. Apertei-me contra ele com todas as forças que me restavam e cavalgámos horas perdidas pela trágica paisagem atapetada com os milhares de corpos que cobriam o chão até ao local onde todos os horizontes visíveis se encontram.

Quero que me leve para bem longe pois as minhas pernas já não são suficientemente rápidas para me transportar. Um ponto branco mantém-se forte no centro da minha visão e a cabeça lateja e dói-me ligeiramente. Ao voltar de vez desta viagem e refeita da surpresa, reparo com toda a atenção para as feições do cavaleiro. Olhos muito verdes e intensos, na cabeça cresceram misteriosamente uns cabelos longos muito sujos e pintados com as tonalidades cinzentas da destruição. Os olhos continuam a olhar para dentro da minha alma, como se já me tivesse visto anteriormente. Terá também ele tido a mesma estranhíssima visão premonitória? Terei eu aparecido na sua realidade? A mais recente memória guardada do seu rosto no meu pesadelo é igual, exactamente igual ao rosto que fita novamente o meu como se soubesse exactamente tudo aquilo que nos irá acontecer.


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Não consigo evitar um arrepio. As palavras de Fernanda são assustadoramente familiares, são como as que me surgiram ao transportá-la para lá do Rossio após o calamitoso acontecimento cavalgando o bravo Felício. Parecem retiradas da minha alma e essa pensava eu fechada a alheia intromissão.


segunda-feira, 8 de novembro de 2010

QUARTO ACTO - continuação IX


Se pudéssemos vislumbrar uma outra sociedade? Estas ondas que arrastaram a cidade para o desalento, para um desalento que não podia ser imaginado, que não era desejado deste lado das coisas, deveriam ter-nos engolido a todos. Padeceríamos agora de uma doença bem menos bolorenta. As provocações e os excessos transformaram-se neste castigo, um castigo que se aguardava brutal, tão brutal como improvável. Somos os joguetes destes Libertadores, destes falsos que se sucedem uns atrás de outros para atacar e corroer, para fazer crescer injustiças, para transformar o inexplicável em doença e perversão, alterando os grandes momentos com as suas palavras douradas, amadurecidas no meio do veneno que lhes tolda o espírito, que lhes tolda as mentes perversas e mesquinhas. Desejei aceitar juízos diferentes destes nossos.

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Os ventos passaram a ser mais favoráveis. Os olhares começam a ser diferentes. O povo carrega as mesmas dúvidas de ontem com humilde descrição, mas são já diferentes as causas das suas incertezas. Deixei acontecer o inevitável. Escolhi os corações de Fernanda e de Mestre Bernardo para deles expulsar as nuvens mais sombrias. As suas visões estão demasiado próximas de tudo aquilo que eu próprio vinha antecipando, do que motivou estes últimos meses de utopia. Esta era uma teoria que ameaçava desaparecer de vez no meio dos sonhos onde tinha sido arquitectada. As personagens que os habitavam não tinham rostos claramente definidos. Esse problema deixou de existir quando Mestre Bernardo fez crescer nos seus cadernos as misturas que Fernanda lhe ia descrevendo ainda adormecida na cama do hospital. A primeira sensação foi de surpresa. Ficou apagada por completo depois de me terem feito relato da situação. À estranheza dos objectos e cenários que a senhora ia descrevendo, Mestre Bernardo ia acrescentando as cores perfumadas das suas palavras rendilhadas valorizando as soluções dessa requintada parceria. Agora pertencem um ao outro, novamente, como sempre, sem terem dado conta. Mais uma vez unidos, mais uma vez reunidos para avançarem em conjunto em busca daquilo que de nós se espera. Os anos passam, são condimentados com estes temperos apimentados que nos devolvem a chama da vida, que nos devolvem à razão com inesperada comoção.

- Guardas, ide até à entrada do bosque onde ontem deixámos os nossos “convidados”. Chegou a hora de os resgatar. Não necessitarão de se embrenhar na floresta. Eles irão ter convosco. Levai aconchegos, mantas e alguma fruta e tragam-nos de novo até aqui. Não desejo ter de repetir o mesmo mais que uma vez. Despachem-se, tratem de cumprir as ordens que vos acabámos de transmitir.

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Se pudéssemos vislumbrar uma outra sociedade, uma sociedade em que os irmãos não fossem inimigos, não se tratassem como um incómodo viscoso e inútil, estas paredes não estariam carregadas com estas palavras avivadas a sangue, o sangue que escorre pelo chão, pelo chão que arde fervente com as desgraças que as palavras lhe relatam. Neste momento já me abandonou a vontade de morrer, a vontade de morrer não é mais a mesma, não é mais a mesma que fazia pender esta minha força para o lado menos visível da certeza. A minha estratégia passa por derrotar estes falsos Libertadores até que o sol não mais lhes projecte as silhuetas pelas calçadas destruídas desta nossa cidade, deste nosso Mundo. As vítimas derrotadas, essas nada dizem pois as forças foram-lhes retiradas. Perderam tudo neste sistema por eles arquitectado, por eles redesenhado vezes e vezes sem conta. Repovoaram esta rede para depois a rasgarem, para depois voltarem a manter todos os que até ela se deslocaram na malha apertada das suas tentações.

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terça-feira, 2 de novembro de 2010

QUARTO ACTO - continuação VIII



Dar sentido ao que ainda resta. Temos de ser capazes de nos lembrar, temos de ser capazes de interpretar e também de nos esquecer de tantas coisas, para podermos viver.

- Sabes que nada é impossível, apenas porque os outros nos dizem que não é possível. Isso não chega, não é suficiente. Tudo o que disseste não foi mais do que a razão, a tua razão. É ela que te dá força e mantém o equilíbrio. Tens a noção de que pertences a estas casas, a este espaço que o Vesúvio destruiu. Algo muito forte em ti te acrescentou memórias, frases, companhias e receios desses dias longínquos e perturbados pela hecatombe provocada pela montanha. É uma viagem que não parece ter terminado, que se perpetua nestes dias, ao longo de toda a tua existência, que passou para mim desde que senti a tua aflição, desde que essa sensação te começou a inquietar e te tem trazido em sobressalto. Precisavas deste dia aqui comigo. Precisavas de saber se aquele Bernardo inocente não teria imaginado tudo aquilo que já sabias. Talvez tivesse sido arrebatado pela dimensão e pela história de Pompeia. Talvez gostasse de criar aventuras por gosto, por uma qualquer necessidade inexplicável à qual ia dando resposta. Agora tens a certeza de que o jovem que foste tinha mesmo visto, escutado e sentido o peso esmagador deste passado.

Não é apenas deste passado que as memórias me trazem paladares, odores ou conexões. São agora mais as vezes em que as palavras de outrora se revelam do que as certezas de que, no futuro, tudo acabará por se compor, por se unificar. Este é o receio que eu não desejava. Esta tortuosa impressão de que os caminhos nos podem ser adversos.

- Devo pura e simplesmente aceitar esta evidência? É isso que tens para me dizer? Vá lá Constança. Isto não é muito normal. Temo que me possa acontecer alguma coisa de ruim. Começo a acreditar que a minha cabeça me anda a pregar partidas a mais.

Não era bem isto que eu desejava dizer. O meu receio vai para lá desta certeza, desta confirmação. Os rapazes continuam a olhar para nós, do lado de lá da rua, atentos à conversa, como estátuas a aguardar o que possa vir a acontecer. Os corpos estão da cor da cinza, os cabelos são da cor da poeira, daquela que chovia antecipando a desgraça maior que se abateu sobre a cidade. Os olhos negros continuam fixos nas nossas palavras e nos nossos gestos, numa incómoda expectativa. Um deles volta a olhar o céu, roda a cabeça em várias direcções esperando que um qualquer aviso surja repentino e lhes forneça a pista desejada. Volta a olhar para mim. Segreda qualquer coisa aos outros que se viram na sua direcção, atentos. Aponta para o céu, aponta para uma pequena nuvem que lá em cima teima em não desaparecer, que teima em ser a única a calar o dia azul de hoje. Inconscientemente levanto a minha cabeça na direcção da nuvem, acompanhando o sinal feito com o braço pelo rapaz cinzento. A nuvem tinha a forma do vulcão, um imenso triângulo branco colado na abóbada celeste.

- Olha Constança, já viste ali? Repara como é curiosa a forma daquela nuvem lá no alto. Repara como é parecida com o Vesúvio lá atrás.

Mais uma curiosidade ou haverá nela um qualquer sinal que o rapaz me deseja transmitir. Mas, para onde foram eles? Já não os vejo! Desapareceram assim que os larguei de vista por breves instantes, pelos instantes em que me detive a observar a nuvem.

- É tão engraçada! Vou fotografá-la! Que me lembre, nunca reparei em nuvens que tivessem uma forma assim tão definida, uma tão clara associação ao formato do vulcão. É apenas uma coincidência mas não deixa de ser insólito.

Olho e volto a olhar à procura dos rapazes enquanto Constança vai tirando fotografias à nuvem triangular. Nada! Desapareceram tão misteriosamente como tinham aparecido. Avanço na direcção de um cruzamento que existe entre duas ruas mais largas. Tento dar conta dos meus companheiros de viagem, quero voltar a olhar para os seus rostos familiares, quero despedir-me de vez dos meus amigos. Não os vejo. Apenas turistas, muitos turistas e muito calor, um calor que foi aumentando ao longo da manhã e que agora começa a causar algum incómodo. Está na hora de ir, de procurar um restaurante para refrescarmos as ideias e acalmar o estômago e as emoções fortes deste dia.

- Bernardo! Bernardo, mas afinal de contas para onde é que tu foste?

Constança gesticula com o braço esquerdo levantado enquanto segura a máquina fotográfica na outra mão. Chama por mim com o rosto tão alegre e tão jovem como sempre. O meu amor por si é tanto que não me vai deixar cair no absurdo. Sem que ela os sinta tem consigo, à sua volta, todos os habitantes de Pompeia, todos, sem excepção. Os meus queridos amigos colocaram-se ligeiramente à sua frente. Acenam-me um adeus sentido de sorriso nos lábios, os mesmos lábios cinzentos que me acordaram para me arrastar numa louca e desenfreada corrida para fugir do nosso destino cruel.

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