terça-feira, 2 de novembro de 2010

QUARTO ACTO - continuação VIII



Dar sentido ao que ainda resta. Temos de ser capazes de nos lembrar, temos de ser capazes de interpretar e também de nos esquecer de tantas coisas, para podermos viver.

- Sabes que nada é impossível, apenas porque os outros nos dizem que não é possível. Isso não chega, não é suficiente. Tudo o que disseste não foi mais do que a razão, a tua razão. É ela que te dá força e mantém o equilíbrio. Tens a noção de que pertences a estas casas, a este espaço que o Vesúvio destruiu. Algo muito forte em ti te acrescentou memórias, frases, companhias e receios desses dias longínquos e perturbados pela hecatombe provocada pela montanha. É uma viagem que não parece ter terminado, que se perpetua nestes dias, ao longo de toda a tua existência, que passou para mim desde que senti a tua aflição, desde que essa sensação te começou a inquietar e te tem trazido em sobressalto. Precisavas deste dia aqui comigo. Precisavas de saber se aquele Bernardo inocente não teria imaginado tudo aquilo que já sabias. Talvez tivesse sido arrebatado pela dimensão e pela história de Pompeia. Talvez gostasse de criar aventuras por gosto, por uma qualquer necessidade inexplicável à qual ia dando resposta. Agora tens a certeza de que o jovem que foste tinha mesmo visto, escutado e sentido o peso esmagador deste passado.

Não é apenas deste passado que as memórias me trazem paladares, odores ou conexões. São agora mais as vezes em que as palavras de outrora se revelam do que as certezas de que, no futuro, tudo acabará por se compor, por se unificar. Este é o receio que eu não desejava. Esta tortuosa impressão de que os caminhos nos podem ser adversos.

- Devo pura e simplesmente aceitar esta evidência? É isso que tens para me dizer? Vá lá Constança. Isto não é muito normal. Temo que me possa acontecer alguma coisa de ruim. Começo a acreditar que a minha cabeça me anda a pregar partidas a mais.

Não era bem isto que eu desejava dizer. O meu receio vai para lá desta certeza, desta confirmação. Os rapazes continuam a olhar para nós, do lado de lá da rua, atentos à conversa, como estátuas a aguardar o que possa vir a acontecer. Os corpos estão da cor da cinza, os cabelos são da cor da poeira, daquela que chovia antecipando a desgraça maior que se abateu sobre a cidade. Os olhos negros continuam fixos nas nossas palavras e nos nossos gestos, numa incómoda expectativa. Um deles volta a olhar o céu, roda a cabeça em várias direcções esperando que um qualquer aviso surja repentino e lhes forneça a pista desejada. Volta a olhar para mim. Segreda qualquer coisa aos outros que se viram na sua direcção, atentos. Aponta para o céu, aponta para uma pequena nuvem que lá em cima teima em não desaparecer, que teima em ser a única a calar o dia azul de hoje. Inconscientemente levanto a minha cabeça na direcção da nuvem, acompanhando o sinal feito com o braço pelo rapaz cinzento. A nuvem tinha a forma do vulcão, um imenso triângulo branco colado na abóbada celeste.

- Olha Constança, já viste ali? Repara como é curiosa a forma daquela nuvem lá no alto. Repara como é parecida com o Vesúvio lá atrás.

Mais uma curiosidade ou haverá nela um qualquer sinal que o rapaz me deseja transmitir. Mas, para onde foram eles? Já não os vejo! Desapareceram assim que os larguei de vista por breves instantes, pelos instantes em que me detive a observar a nuvem.

- É tão engraçada! Vou fotografá-la! Que me lembre, nunca reparei em nuvens que tivessem uma forma assim tão definida, uma tão clara associação ao formato do vulcão. É apenas uma coincidência mas não deixa de ser insólito.

Olho e volto a olhar à procura dos rapazes enquanto Constança vai tirando fotografias à nuvem triangular. Nada! Desapareceram tão misteriosamente como tinham aparecido. Avanço na direcção de um cruzamento que existe entre duas ruas mais largas. Tento dar conta dos meus companheiros de viagem, quero voltar a olhar para os seus rostos familiares, quero despedir-me de vez dos meus amigos. Não os vejo. Apenas turistas, muitos turistas e muito calor, um calor que foi aumentando ao longo da manhã e que agora começa a causar algum incómodo. Está na hora de ir, de procurar um restaurante para refrescarmos as ideias e acalmar o estômago e as emoções fortes deste dia.

- Bernardo! Bernardo, mas afinal de contas para onde é que tu foste?

Constança gesticula com o braço esquerdo levantado enquanto segura a máquina fotográfica na outra mão. Chama por mim com o rosto tão alegre e tão jovem como sempre. O meu amor por si é tanto que não me vai deixar cair no absurdo. Sem que ela os sinta tem consigo, à sua volta, todos os habitantes de Pompeia, todos, sem excepção. Os meus queridos amigos colocaram-se ligeiramente à sua frente. Acenam-me um adeus sentido de sorriso nos lábios, os mesmos lábios cinzentos que me acordaram para me arrastar numa louca e desenfreada corrida para fugir do nosso destino cruel.

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