terça-feira, 23 de novembro de 2010

QUARTO ACTO - continuação X


As palavras de Fernanda obrigaram-me a dar-lhes um caminho. Resgatá-las do perpétuo esquecimento passou a ser a tarefa deste zeloso soldado. Antes de mais tive de dar ordens para me fazerem chegar todas as necessárias ferramentas de trabalho. Continuo adepto deste instrumento da escrita, estas penas de ganso que tratadas de maneira tão especial deslizam nas folhas como nenhum outro. A decisão está tomada e as descrições de espantosos locais continuam a sair ritmadas e sem travão, continuam a espantar pelo pormenor, pela dimensão e por tudo o que de tão fantástico vai dando conta.

( livro de Bernardo )

A navegação é feita sem paralelo ao que hoje conhecemos. Enormes espaços flutuantes do tamanho de cidades dão abrigo em torres e mais torres iluminadas a milhares de pessoas que neles navegam, que neles habitam. Os seus senhores são desconhecidos, e muitas são as estranhas músicas que se escutam ao redor das gigantescas construções. Não entendo como podem ser tão ordeiros, como conseguem saber ao certo o que fazer, para onde avançar, a que propósito e a que vontades obedecer. Os diferentes sons misturam-se ululantes, inebriantes, e todos estes seres aparentam obedecer cegamente às melodias que os guiam como se fossem apenas pequenos desenhos rabiscados de forma rápida no horizonte. De quando em fez fazem-se ouvir palmas. Sem nenhum sentido saem das nuvens escuras como chuva para os abraçar, para os acarinhar, principalmente àqueles que parecem marchar mais abandonados e sem direcção. As palmas transformam-se em mais música, repetitiva, desordenada, descompassada. Uma amálgama de instrumentos a dar vida a um conjunto bizarro de sons desconexos e desorganizados que afectam a vida de todos os habitantes desses galeões gigantescos, dessas montanhas de vida que se mantêm estranhamente à tona de água. Sobem de ritmo e de intensidade, cada vez mais desorientados e desorganizados, repetitivos, agudos. Começam a incomodar de tal maneira todos os seres vivos que por ali se cruzam que estes começam a desesperar, levando as mãos aos ouvidos, tapando-os e colocando-se de joelhos e de olhos fechados à espera que o monstro ensurdecedor que cresceu no céu possa finalmente desaparecer. Nada disso acontece. A montanha acelera o seu compasso, o ruído é cada vez mais intenso, mais agudo e mais repetitivo, tornando-se agora verdadeiramente insuportável. Alguns começam a sangrar dos ouvidos e os gritos de dor são completamente abafados pela ruidosa montanha. Caem derrotados pelo chão, espalhados, uns por sobre os outros, como frágeis castelos de cartas levados pelo vento. São milhares os corpos que se contorcem de dor nestas caravelas ruidosas a quem o destino cobriu de ruído desejando acabar com a vida de todos. As ordens que estavam acostumados a seguir e que lhes eram transmitidas através da música suave que se escutava por toda a parte, foi assim violenta e cruelmente arruinada.

Navego sozinha no meio dos corpos dos habitantes. A água por onde me faço transportar é a carne e os ossos dos habitantes massacrados destas ilhas. Neste terramoto formado no estranho futuro, um único sobrevivente vai-me acenando com os braços. Assim que me viu, ergueu-se, e avança a correr com incrível agilidade. É alto, traja uma indumentária muito diferente daquela a que estamos acostumados. O seu corpo parece estar desnudado mas as mãos, a cabeça e os pés saem perfeitos na sua tonalidade rosada pelas mangas, colarinho e junto aos tornozelos onde o azul acaba. Todo o restante corpo está vestido com um apertado e fino traje azul-escuro. A cabeça totalmente desprovida de cabelo tem à volta da testa uma tira com letras estranhas e uma barra pintada num vermelho vivo e cativante. Salta por cima dos muitos corpos que ficaram deitados após a tragédia, salta como se precisasse de provar nesses seus pulos que está vivo e que o consegue fazer. Mantenho-me quieta e em silêncio à sua espera, mantenho uma calma e uma tranquilidade que não seria normal numa situação destas, mas que estranhamente me invadiu. O atleta nunca mais chega. Quanto mais corre, quanto mais salta e quanto mais rápidos são os seus movimentos, mais pequeno e mais afastado de mim parece ficar. Estou assustada com o seu possível desaparecimento. A calma abandonou-me por este motivo. Corro na sua direcção, corro para tentar fazer-me chegar até si, para provar que estou viva e que o consigo fazer. Salto como ele por cima dos habitantes caídos deste imenso lago de corpos, corro para me dar a conhecer a este estranho que ainda agora corria na minha direcção. O que me teria para dizer? O que tenho eu para lhe contar? Tropeço mais de uma dezena de vezes antes de o conseguir alcançar. Reparei que parou de correr e de saltar assim que me viu arriscar esta corrida. Uma nuvem triangular transformou-se em cavalo branco e desceu dos céus para junto de nós. O atleta deu-me a mão, colocou-me na garupa do cavalo e também ele o montou de seguida. Apertei-me contra ele com todas as forças que me restavam e cavalgámos horas perdidas pela trágica paisagem atapetada com os milhares de corpos que cobriam o chão até ao local onde todos os horizontes visíveis se encontram.

Quero que me leve para bem longe pois as minhas pernas já não são suficientemente rápidas para me transportar. Um ponto branco mantém-se forte no centro da minha visão e a cabeça lateja e dói-me ligeiramente. Ao voltar de vez desta viagem e refeita da surpresa, reparo com toda a atenção para as feições do cavaleiro. Olhos muito verdes e intensos, na cabeça cresceram misteriosamente uns cabelos longos muito sujos e pintados com as tonalidades cinzentas da destruição. Os olhos continuam a olhar para dentro da minha alma, como se já me tivesse visto anteriormente. Terá também ele tido a mesma estranhíssima visão premonitória? Terei eu aparecido na sua realidade? A mais recente memória guardada do seu rosto no meu pesadelo é igual, exactamente igual ao rosto que fita novamente o meu como se soubesse exactamente tudo aquilo que nos irá acontecer.


*


Não consigo evitar um arrepio. As palavras de Fernanda são assustadoramente familiares, são como as que me surgiram ao transportá-la para lá do Rossio após o calamitoso acontecimento cavalgando o bravo Felício. Parecem retiradas da minha alma e essa pensava eu fechada a alheia intromissão.


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