sábado, 27 de novembro de 2010

QUARTO ACTO - continuação XI


Sei como funcionam estas coisas. As sirenes ouvem-se ao longe, um gato listrado passa apressado num silêncio felino. Posso ainda tentar salvá-la, devo ligar imediatamente a meu pai e responder-lhe à mensagem de terça-feira passada. Constança não responde. As pessoas continuam a correr apressadas tentando apanhar os restos de esperança que já ninguém sabe onde se esconderam. Não responde, não me responde desde o dia da sua mensagem. Vivem-se breves instantes de acalmia e tudo de novo se agita. Oscilamos para todos os lados. Várias são as explosões que sem tréguas removem dos lugares de descanso as construções dos homens, algumas com séculos de resistência e que agora finalmente tombam derrotadas. Assistimos à destruição dos diversos cenários da cidade, incêndios às centenas vão consumindo os prédios e impedindo qualquer tentativa de fuga às pessoas encurraladas. Os desastres sucedem-se, as ruas e avenidas estão cheias com as multidões que por elas tentam avançar procurando auxílio e salvação. Estive adormecido por uns instantes. Atravesso a rua saltando pelos vários carros abandonados que ninguém se preocupa em conduzir. Nalguns deles ainda se ouvem gemidos e gritos. Foram muitos os que ficaram encurralados dentro das chapas retorcidas. O trânsito é tão caótico a esta hora da manhã que a tragédia parece ter propositadamente escolhido a pior hora do dia para se manifestar. As viaturas queimadas são agora bombas relógios que se encontram aleatoriamente espalhadas por toda a cidade. O terramoto de Lisboa acordou do seu sono, veio novamente visitar os seus habitantes e causar uma devastação inimaginável. O número de vítimas que hoje se contarão pelas artérias da capital será seguramente superior a meio milhão de almas. Todos estes sobreviventes receiam as consequências terríveis do mais que provável maremoto que nos irá arrasar dentro de alguns minutos, tal como nesse distante primeiro de Novembro de 1755. Ninguém sabe o que fazer. O caos instalou-se de tal forma que é indescritível o que por aqui se está a passar. É impossível explicar todas as cambiantes do pesadelo. Para onde quer que eu olhe a destruição e a morte pintam a história deste dia. Repito vezes e vezes sem conta as tentativas de ligação sempre com o mesmo resultado. O telemóvel acabou mesmo por ficar num silêncio total. Ninguém fala com ninguém, as palavras como as conhecíamos deixaram de se fazer entender. O tempo devia de ser desligado neste exacto momento, devia ser transmutado para um qualquer segundo do dia de ontem para que todos pudessem ter tido a oportunidade de abandonar esta cidade destruída. O céu é agora negro e vermelho. Onde antes reinava um sol esplendoroso, vestiu-se um céu escuro e carregado com as cores da cinza. Podíamos ter chegado a este futuro mas num diferente lugar, num outro qualquer lugar onde a destruição pudesse ter sido evitada, onde todos pudéssemos ter mostrado a língua à morte com orgulho infantil.

Ligo a luz e volto de novo a limpar a testa suada. Constança dorme profundamente e nem deu conta do meu desassossego. As peças não se encaixam, perdem-se algures entre os enviados misteriosos do passado e este alucinante e monstruoso retrato do futuro.

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