quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

SEGUNDO ACTO - continuação IV


Ao descobrir estes estranhos caminhos, abriram-se as portas de todas as dúvidas. Depois dos primeiros meses de surpresa foi ainda maior o espantamento quando percebi que, em momentos muito particulares, os sonhos permitiam algumas alterações. Ligeiras e muito insignificantes, no início. Quase a medo e através de muitas tentativas frustradas, logo a seguir. Até que comecei a ganhar o jeito e comecei a participar nos sonhos de outra forma. Deixei de me sentir como uma mera espectadora deslocada e coloquei-me no centro de todas as acções.

De quando em vez as portas das histórias cinzentas permaneciam entreabertas de um sonho para outro permitindo-me jogar com a realidade de tal forma que cedo se tornou em enorme vício. Não consigo descrever o imenso prazer obtido pela antecipação programada, planeada, de muitas das coisas que ainda estão por acontecer. O que inicialmente foi assustador, fisicamente inquietante e profundamente estranho, passou a ser verdadeiramente empolgante e poderoso. Subitamente era possuidora da chave de um domínio misterioso que ia aprendendo a dominar, que tanta utilidade me proporcionou desde o seu início. A pouco e pouco ia manipulando o futuro, moldando-lhe as formas a meu bel-prazer, subjugando-lhe as vontades e alterando-lhe as agruras e as sombras.

Primeiro vieram os momentos em que através dos mais disparatados pormenores comecei a mudar os ritmos dos acontecimentos. Os tombos e as quedas que provoquei a meu pai, alterando-lhe as vontades com as dores e com o mal-estar dos ossos partidos, proporcionaram-nos largas semanas de tranquilidade. Os momentos de fome e de embaraço foram desaparecendo desde que o hospital Real "sentiu” necessidade de mais mãos trabalhadoras para colocar ao seu serviço. Aos pais foi oferecida ocupação, os irmãos ficaram mais aliviados e eu pude partir em pequenas viagens pela cidade, por vezes vagueando sem sentido, procurando o cais, permanecendo muitas vezes junto às muralhas do castelo olhando o rio, outras vezes assistindo aos actos públicos de punição que, mais vezes que as desejadas, vão mantendo a populaça em sentido numa amedrontada reverência. Comecei a sentir vontade de matar, uma tão grande vontade de matar, só para tentar perceber se também no desejo de maldade os sonhos se transformavam numa maléfica premonição.

Igual! Exactamente como nos outros. Também no desejo de maldade a realidade acaba da mesma forma do sonho, como antecipado mas perversamente moldado. Acabo de ter a realidade sob o jugo das minhas mais estranhas vontades! Descubro, com receio, que parece não existir limite para esta força que cresceu dentro de mim. Desejei um sonho onde termine esta estranha dádiva, só por momentos, só num muito pequeno instante. Começaram a ser assustadores os poderes tremendos deste abominável companheiro. De sonho em sonho, de onda em onda, de maré em maré, as janelas das tormentas ficaram escancaradas de par em par e todas as loucuras parecem ser possíveis. Nada fica de fora do contributo das várias artes dos desejos sonhados. Somente a continuada palidez dos cinzentos diferencia estas acções das suas futuras andanças reais.

O medo cresceu na mesma proporção da vontade em lhe dar cobro. Um quadro muito escuro, desfocado e mal iluminado começou a fazer parte dos meus sonhos como um fantasma que não deseja dar-se a conhecer. Um rosto pálido, sem olhos, sem expressão. Uma figura de padre, um busto fantasmagórico que pisca intermitentemente como os relâmpagos que antecipam com estrondo as lutas dos seus gigantes.

As pétalas saem-me dos olhos fechados com maior frequência. Desejei trazer esses monstros do céu até às profundezas da terra, misturá-los com o poder de todos os mortos, de todos os que já se despediram desde o início dos tempos, desde que o primeiro dos homens se apagou. Olhei para eles, para aqueles senhores da escuridão cujo poder imenso faz abanar os céus e transforma a mais escura das noites no mais luminoso dos dias, olhei para eles sem nunca os ver. Sabia que estavam ali porque os sonhei com fazia quando desejava transformar os sonhos nas asas do meu desejo.

Senti no sonho o seu hálito, o seu poder, as poderosas línguas de luz escondidas nas entranhas dos seus corpos gigantescos. Por breves instantes fui também um daqueles monstros com entranhas de luz e voz de trovão. Na madrugada seguinte à deste sonho vi-me colocada nos céus em forma de nuvem negra e pela primeira vez a cor da minha realidade foi igual à do sonho que me antecipou esta estranha verdade.

No momento em que me fundi com os monstros negros daquela tempestade desejei ser capaz de fazer mexer as entranhas da terra, desejei ser como esses gigantes invisíveis, ser um trovão ou a própria tempestade. Representei o que de mais profundo e escondido guardava em mim. Substitui o que de mais agitado e turbulento as trevas ocultavam. Alinhavei a estranheza, reformulei o medo, a tristeza, as dores e os horrores passados e saíram-me desorientadas estranhas vontades juntamente com ordens negras e cruéis. Mandei desalinhar as raízes do mundo, castigar os homens, fustigá-los com o mais cruel dos desígnios.

Foi assim, desta forma, que derramei os meus interesses, como se estes fossem o fel da minha sentida vontade em destruir.

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quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

SEGUNDO ACTO - continuação III


Nas ameaças provocadas por mais tremores desta terra nervosa, travam-se guerras e combatem-se os medos por todos os que se aguentam e permaneceram na cidade ferida. As invejas e os desejos também foram destruídos. As sortes transformaram os vivos em desesperados, em estropiados, em reproduções pouco fiéis de tudo aquilo que já foram. Diferentes argumentos andam por todos a ser discutidos. As teorias acerca do que terá provocado esta destruição discutem-se nas altas individualidades do clero mas cedo se confrontam com um povo descrente e atemorizado pela eventual e catastrófica possibilidade de vivermos todos num mundo destituído de providência divina. Caem todos por terra pois os olhares facilmente se deixam abater ao repousar na devastação que tão cedo não nos abandonará.

Descobrir as ameaças constantes à minha sanidade. Evitar as emoções e os sentimentos sempre que as imagens surgem fortes dando recados, fazendo desaparecer os sinais da verdade, trazendo outras que ainda estão por acontecer. Esta penumbra sedutora faz-me feliz pela simples razão que não me tinha sido antecipada. Talvez o acidente me tenha desligado estas infernais regras vindas do futuro, quem sabe, talvez…

Os silêncios, neste momento, são um bem precioso. Não chegou ainda o tempo de dar conta desta minha solidão, da minha imensa colecção de imagens. Durante todo o tempo em que estive ausente desde a queda descontrolada da montada até este instante, não me foram comunicadas as antecipações do costume. O descanso forçado pelo tombo é bem-vindo. Não me recordo de um tão grande período em que as imagens do que está para acontecer permaneceram assim afastadas de mim. Por agora fico satisfeita. Gostaria de ficar assim nesta ilusão de normalidade todo o restante período da minha existência. Aquilo que alguns poderiam considerar uma riqueza, um dom talhado e banhado com os dourados brilhos dos altares, é somente um atroz e cansativo suplício.

Perdi a conta às noites passadas sem dormir. Foi terrível e tão aflitivo o instante em que tudo o que me foi comunicado no sonho nascido naquela primeira madrugada de antecipação acabou mesmo por acontecer. Tal não podia ser verdade. Em plena luz do dia, sem nenhuma diferença nos gestos, nos cenários, nos tempos, nos odores, nas palavras usadas, na temperatura sentida e nas consequências das acções por parte de todos os actores envolvidos, os acontecimentos passaram-se como uma cópia exacta do sonho dessa noite. Transformei-me numa estátua gelada. O sangue deixou de correr nas veias e juro ter sentido o coração parar no peito.

Tudo estava igual no mais ínfimo detalhe ao sonho cinzento que tive nessa noite. A única diferença a marcar a confusa realidade daquelas sequências exactas era a tonalidade com que se vestiam as acções. No sonho tudo apareceu em tons de cinza. Nas que aconteceram estando eu bem acordada, havia azul no céu, cremes e ocres nos trajes e nas roupagens, os verdes e castanhos dos arvoredos, tonalidades de peles sujas e queimadas dos rostos dos seus donos. Esta foi a única diferença neste primeiro encontro com o dom. Depois de este se ter tornado banal, esta diferença inicial deixou de acontecer. Os sonhos e a realidade tornam-se muitas vezes numa sucessão de factos que já muito dificilmente vou conseguindo distinguir.

- Bernardo, bom amigo. Estou farto de magoar as mãos. Não temos condições para dar conta de tantos trabalhos. São às centenas os que por aqui se espalham nas alas e nos corredores semi-destroçados. Não se podem dar recados sem que a grave situação pela qual todos passámos não interfira na rapidez da sua entrega. As nossas práticas respondem com lentidão quando os casos mais graves que nos encheram as entranhas destruídas do hospital carecem de rapidez de tratamento. Por aqui parece que as novidades são de monta. Vejo uma extraordinária recuperação da sua protegida depois de tantos dias de ausência.

O senhor médico admira-se com o meu apetite. Parece que aqui se preocupam com o meu sono forçado. Ainda não me apercebi do tempo em que estive afastada desta crueldade, transportada para aquele imenso nada onde morei num sossego que julguei não existir. Com vontade vou sorvendo esta sopa que me serve o médico escritor. Compreendo agora que foram os sons da sua pena nervosa que lentamente me trouxeram de volta, me acordaram deste torpor que me roubou as horas ou até os dias.

- Assim é caríssimo Lefebvre, assim é. Começou por um simples e quase imperceptível movimento da cabeça. A rapariga rodou-a na minha direcção e percebi a ponta da sua língua a humedecer os lábios dando conta de actividade. Pouco a pouco foi restabelecendo todos os sentidos, activando lentamente mas com segurança grande parte dos seus movimentos. Os olhos pareciam mais demorados por debaixo da protecção de umas pálpebras zelosas. Apenas as suas palavras permanecem preguiçosas e demoram a fazer-nos companhia. Mesmo antes da queda julgo que a rapariga não tinha lançado uma única frase que tivesse sido suficientemente audível, talvez dominada por um natural estado de pavor dadas as circunstâncias daquele dia.

Servem-se os dois da sua mútua companhia. O rosto deste médico que me vai alimentando com este caldo já não me era estranho. As situações são tão extraordinárias, tão esmagadoras na dimensão da catástrofe, tal e qual me apareceram vezes e vezes sem conta naquelas misturas agrestes de gritos, de choros, de almas abandonadas às suas sortes em sonhos cobertos de pó e de lama, imagens tão exageradas na dimensão do horror que apesar da naturalidade com que tudo, de repente, resolve acontecer, não consegui evitar as muitas dúvidas que me proporcionaram esses avisos. Em grupos de pequenos sonhos renovados, as imagens da tragédia eram tão brutais, tão intensas e avassaladoras, que dei por mim a desejar adormecer no próprio sonho que me estava a ser servido. Não controlo os movimentos nestes momentos agitados que me são servidos no centro das ideias. Sou apenas mais um dos muitos figurantes que por ali se passeiam. Muitas vezes não são os meus olhos brilhantes a dar conta de tudo o que estará para acontecer. Os meus olhos nestes sonhos percebem a minha própria figura como uma personagem distinta, como se eu, afinal, fosse apenas mais um dos muitos actores que por ali se cruzam e vagueiam. Foi assim nessa condição que me vi a contactar com este senhor médico junto à escadaria semi-destruída que dava acesso à entrada da capela do hospital. Tudo o resto ficou por acontecer. No momento em que nos olhávamos, o meu sonho transformou-se mais uma vez não me deixando qualquer pedaço de descanso. O chão baloiçava e agitava-se como uma montanha que desejava partir-se ao meio de alto a baixo num só instante. Era o aviso que os dias do fim do Mundo tinham vindo para ficar.

- Estou tão surpreendido quanto tu. Tinha esperanças numa recuperação da senhorita mas não desta maneira tão rápida. Incomoda-me um pouco o facto de não articular qualquer palavra. Não que isso seja mais importante do que o apetite que demonstra ou do que as rosadas cores que sempre apresentou. As pernas tinham feridas muito profundas anteriores às provocadas pela queda. Os joelhos e os pés estavam tão mal tratados que receio mesmo pela sua capacidade de locomoção. Mas está de regresso e agora já se pode alimentar com maior facilidade.

Sente-se bem forte um outro abalo. O suficiente para trazer de volta todos os medos e histerismos. A duração não se compara ao do dia da tragédia mas já ninguém consegue evitar as ansiedades. As vidas pulsam ao ritmo dos nossos receios. Até el-rei mandou levantar acampamento com paredes de pano receando o peso das paredes, dos telhados e das vidraças, receando o peso da morte, receando que esta lhe surja de cima ou possa vir a marcar encontros secretos com as altas figuras da nossa corte. A “nobreza” deste seu gesto contrasta com a energia e a lucidez de raciocínio do seu Ministro Sebastião. Pela forma como conseguiu preparar todas as acções que responderam, no imediato, às necessidades exigidas por uma catástrofe destas proporções, dir-se-ia que parecia estar preparado, que parecia aguardar por uma fatalidade deste teor e dimensão.

- Já terá passado? Sentiu-se forte a agitação a nossos pés, e este ruído surdo que nos esconde as entranhas cavernosas do centro do mundo. É verdadeiramente inquietante. Despe-nos a alma, põe a descoberto a real dimensão da nossa pequenez.


domingo, 17 de janeiro de 2010

SEGUNDO ACTO - continuação II


Os homens da frente resolveram ficar a assegurar a protecção aos navios que nos vão fazendo chegar todo o tipo de ajuda. Os militares, que desde o dia seguinte ao dos maiores abalos se apresentaram em todos os pontos da cidade com ordens expressas e pragmáticas por detrás de todas as suas acções, conduziram as primeiras fases do seu trabalho com bastante rudeza, muita brutalidade e total desorganização. As coisas acalmaram com o passar das horas e com a participação fundamental das gentes ordeiras que, na sua esmagadora maioria, tudo perderam, os seus familiares, as suas habitações, os seus parcos haveres e todo o tipo de recursos. Ter-se-á obtido uma estranha sensação de quase sobre-humana virtude ao termos sobrevivido a todo este calamitoso sofrimento. As cicatrizes que os acontecimentos abriram foram iguais para todos os que se conseguiram arrastar para fora dos escombros.

- As cautelas foram tantas que os nervos conseguiram dar conta do recado. Finalmente está de volta e agora só o tempo poderá fazê-la sair dessa escuridão. Acredito que já faltará pouco para que se recuperem na totalidade todas as suas funções. Os joelhos acabaram por ser a maior das minhas preocupações, mais ainda que a pancada na cabeça. O Felício conseguiu evitar um mal maior mas o sofrimento pelos quais as pequenas pernas e os músculos fracos dos joelhos já tinham passado mostraram-se bem mais difíceis de sarar.

Todos os cuidados serão poucos com as velas e lanternas. Os desastres causados pelos incêndios do dia do Inferno recuperaram as nossas recordações.

- Posso entrar Bernardo? Pareceu-me sentir a sua voz. Fala consigo mesmo, seguramente.

O Mestre estava sentado ao lado da rapariga, numa pequena cadeira que resgatou nos destroços e que não mais desejou largar.

- Não lhe disse que apenas dormia? O seu pequeno rosto nunca deixou de ter cor nem demonstrou qualquer vontade em desistir. Os pequenos sinais deram lugar a outros cada vez mais fortes, as pálpebras, depois da língua, acabaram por se levantar, e já com alguma ajuda da parte da rapariga, consegui sentá-la e aqui estamos a defender as maleitas com este caldo.

A importância que Bernardo dava à vitória desta vida sonhou-a todos os dias desde que a desgraça nos caiu em sorte. Continua a preocupar-se com um pretenso estranho poder que a jovem guarda e que ele, supostamente, sente crescer em si desde Pompeia, aos vinte anos de idade. Este encontro, ainda para mais nesse dia tremendo e nas circunstâncias bizarras em que acabou por acontecer, não o trazem bem dormido, não lhe têm dado descanso. Pode ser que esta incompreensível recuperação lhe devolva maior tranquilidade. As colinas continuam com surpresas terríveis que se vão descobrindo ao final de tantos dias de resgates e de miséria. Os corpos que ainda vão sendo descobertos dão conta da gigantesca dimensão desta tragédia. Esta vida, uma única vida salva que seja, dá um alento e uma força que ultrapassa a compreensão que tentamos fazer a um fenómeno desta natureza. Deus afastou-se, ficou de longe a assistir distraído à acção dos seus monstros inimigos abandonando os fracos homens ao seu triste destino, ou então, pura e simplesmente, não existe, não há espaço para ele nesta imensa sepultura que deixou abrir a céu aberto.

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sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

SEGUNDO ACTO - continuação I


Nas ruas pairam por toda a parte os vivos e a memória de todos os mortos. São aos milhares os que teimam em permanecer dia e noite junto das habitações destruídas. Juntaram-se os corpos e tombaram as vontades juntamente com as pedras e os telhados. As ordens do Ministro foram eficazes e surtiram o seu efeito. Tantos foram os dedos apontados aos que roubaram e pilharam no meio da desgraça, que a vida lhes foi arrancada com firmeza à volta do pescoço. Aos restantes servia de lição, mas ainda assim alguns continuam a tentar a sua sorte pelas ruelas destroçadas. Vive-se na rua, no meio dos destroços. Muitos foram também os que ao longo dos primeiros dias após o horror se afastaram de Lisboa marchando desorientados com medo da chegada derradeira do Inferno. Dezembro chega agora para assistir ao início de um longo processo de reconstrução. Se uma espécie de prodígio conseguiu manter de pé partes significativas de alguns bairros, outros tombaram desgraçadamente não restando deles senão memórias. A casa conseguiu resistir cicatrizada por dezenas de rachas e muitos pedaços de cobertura e de tectos partidos. De forma tão rápida quanto possível vão sendo colocados no respectivo lugar. Algumas peças de mobília e porcelanas encontraram o seu fim, mas as vidas de todos os que serviam nesta casa Lefebvre foram miraculosamente poupadas pelas palavras do grande amigo Mestre Bernardo. Foi graças a uma grande dose de coragem que resolveu não guardar para si aquelas visões silenciosas, seria agora um atormentado se tivesse deixado fenecer todas as vidas que se salvaram no Hospital pelo seu apelo, pela sua transmissão.

Carregaram-nos as sortes com o duro trabalho dos registos, como se não nos bastassem todas as demais tarefas. Prestar o devido auxílio e apoio aos vivos e o importantíssimo serviço de inumar os mortos, dando cumprimento às palavras do Ministro que de maneira tão obstinada tem tomado conta da situação. Temos de apresentar relatórios pormenorizados, identificar e contabilizar as baixas por bairros, rua a rua, casa a casa, sempre que tal se mostre possível. Um verdadeiro exército vai tomando conta da cidade como uma estranha criatura cujo hálito se pressente e adivinha nas nossas costas. Algumas reconstruções vão já acontecendo e é normal, ao contrário do Rei, ver o senhor Ministro deambular com um séquito de soldados, nunca menos de vinte, pelas entranhas da cidade destroçada.

- Senhor Lefebvre, desculpe interromper. O senhor Mestre Bernardo pediu-me que lhe transmitisse que dentro de alguns instantes aqui virá falar consigo. Encontrava-se ocupado com importantes afazeres que desejava terminar. Pareceu-me um pouco nervoso, diria mesmo que se assustou com a minha entrada na enfermaria.

Pois não será isso de estranhar em todos nós. Não será isso nada estranho, bem pelo contrário.

- Sabe que por estes dias é difícil afastarmos das ideias pensamentos mais sombrios e perturbantes!

Pobre amigo. Podemos apenas tentar imaginar com que género de fantasmas tem de lidar Mestre Bernardo. Se não deu conta da sua entrada foi devido ao cansaço provocado por estes negros dias. Estou quase a terminar a ronda e vou eu mesmo ter com ele, assim não vai interromper os seus afazeres.

- Arrume o que ainda ficou por arrumar e trate de fazer chegar as restantes mantas e demais panejamentos a quem mais deles tiver urgência. Tem de ordenar às mulheres que lavem tudo com muito maior rapidez. Não podemos ficar novamente a aguardar um dia inteiro para que tudo se apresente nas devidas condições. Isso não pode voltar a acontecer, não enquanto esta tremenda confusão ainda estiver instalada. Se não dermos a atenção devida aos pequenos detalhes, à correcta implementação das rotinas de trabalho, a tentativa em dar ordem a todo este caos desabará mais rapidamente do que a nossa bela cidade.

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quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

SEGUNDO ACTO


Depois da queda, o espaço deixou de se fazer acompanhar pelos sons e pelos cheiros de morte. Nada se passou de verdadeiramente notável desde que aquelas manchas avermelhadas desapareceram momentos antes do meu corpo se encontrar com as pedras do caminho. Visitaram-me uns ruídos repetidos vezes e vezes sem conta. Um rabiscar permanente e compassado misturado com sons de rasgões violentos demoravam tempos aos quais não consegui dar medida. Os meus olhos nunca se abriram nesta dormência. Outras pequenas memórias foram-me oferecidas nesta escuridão forçada, mas nenhuma tão forte como a daqueles rumores. Um ambiente morno e aconchegado como uma pequena nuvem rodeava a minha alma, sempre com aquela repetida musicalidade a acompanhar a escuridão da minha ausência.

Não sei o que isto é, nem por que caminhos me transportaram até este lugar que desconheço. Só agora a minha cabeça resolveu dar sinal de si, só agora compreendo alguma das coisas pelas quais passei. Surgem novamente as imagens de correrias desesperadas pelo meio de uma cidade inteira a desabar, por cima de cadáveres despedaçados e de gente pintada com as estranhas cores do cinza e do escarlate. Tento abrir os olhos, não consigo. Onde estou? Quem me socorreu, por onde e para onde me carregaram?

Dou ordens a um corpo desobediente. Não se move, não consigo sequer mexer um único dedo de minhas mãos. Não consigo fazer nada. Sinto apenas os odores e os sons que me chegam, sinto de novo as palavras a chegar. Sinto agora a passar por mim um frio incrível que sussurra como uma velha louca, como um pensamento sombrio e escuro que não se consegue ler. Eu vivo das leituras que faço aos meus próprios pensamentos e este frio congelou-lhes as palavras, transformou-as em rochas incompreensíveis e enigmáticas. Tento rodar a cabeça para a minha esquerda na direcção do local de onde me chegam os ritmados ruídos de quem tanto escrevinha. O peso da minha vontade começa a dar frutos e o pescoço ganha tanta coragem que consegue um ligeiro movimento da cabeça, apenas o suficiente para acordar a minha sensação de estar viva. Nada se altera substancialmente. O frio parece cortar a minha capacidade de reacção em duas perfeitas metades. Desconheço de todo o que se passa comigo. Mora em mim esta espécie de penumbra. O peso das pálpebras continua a vencer a vontade que tenho em as abrir e não consigo evitar um medo, um nervoso miudinho que se começa a instalar na razão e ousa semear pequenas raízes de incerteza. E se for para todo o sempre!? E se esta escuridão veio para ficar?

Torna-se cada vez mais real a imagem daquele corcel a avançar como uma flecha para longe da desgraça. Os meus pés bebiam o quente do seu corpo. Eu ia-o pintando com a tinta que me saía do corpo, dos pés e das pernas feridas, das minhas mãos confusas. A cabeça descansava nas costas temperadas com o calor do cavaleiro, a mesma cabeça que se deixou deslizar com o resto do corpo montada abaixo, a mesma cabeça que viu num instante minúsculo do tamanho de uma vida a pata traseira do animal a caminhar na sua direcção. O tempo que passou daí até agora é um total mistério. Não vejo, não consigo dar movimento a nada daquilo que sou, apenas promovi esta pequena e muito leve inclinação à cabeça desde que as palavras me acordaram para esta nova e estranha condição.

Correria de bom grado novamente no meio da pior hecatombe, como me instruíram as vontades naquela Lisboa arruinada, para sentir novamente as dores agudas que me estalaram as pernas e os braços, que me rasgaram a pele e a carne ao passar veloz por cima das madeiras partidas e das pedras aguçadas, nas muitas despedaçadas vidas que atapetavam o chão da cidade. Assim me foi ordenado por saberem que iria cair nesta ingrata dormência. Consigo mexer a língua, consigo colocar a ponta da língua fora dos lábios para sentir o sabor deste ar frio que me corta ao meio. Os olhos movem-se, agitam-se muito debaixo das pálpebras pesadas e nada mais.

Desconhecia de todo esta agrura. Os cegos arrastam-se a mendigar junto das igrejas e da Sé onde se juntam, por vezes, às dezenas. Antes de se sentarem, batem com um pau e tacteiam os obstáculos e os espaços até descobrirem aquilo que procuram. Nunca me passou pela ideia ou pelos desgraçados pesadelos semelhante privação. E este constante escrevinhar que não pára, este raspar a pena na folha de forma firme e compassada. Nas mãos deste escritor feiticeiro moram, seguramente, mais certezas que compassos feitos de dúvidas. O que quer que ali vá desenhando, o que quer que ali vá contando, é feito com tamanha firmeza, com tamanha segurança que apenas por duas vezes neste último período ouvi os sons que comunicavam o estrangular desta actuação.

Os odores que perfumam este lugar são ácidos, intensos e penetrantes. Misturam-se cheiros a cinza apagada de uma lareira medrosa, odores de humidade e uma pitada de cheiro a carnes secas que vem de cima, juntam-se com o meu odor cansado e doente, misturam-se ao cheiro a urina e a fezes que paira por cima de todos os outros e um delirante cheiro a aguardente que agora acabou de entrar e que se aproxima rapidamente de mim.

Para ouvir alto, muito alto...

Para deixar os silêncios trabalhar quando estes pedem

Para sentir a alma derreter ao latejar dos compassos

Para fechar os olhos e deixar cada gota, cada nota, cada suspiro, dar a novidade

Para agarrar com força

Para deixar fugir a vontade até amanhã

Para deixar fugir a vontade até esta ficar surda

Para não pensar

Para derreter todos os sumos lentamente

Para provar o sabor dos ramos e das cascas, das sementes

Para não mais voltar

Para não mais partir”

- Devia ter pedido por favor! Sabe que detesto ser incomodado por estas suas entradas impetuosas. Tenho de estar constantemente a chamar-lhe a atenção, caramba? Deixe os líquidos e as compressas juntamente com a água fervida nessa mesa junto à doente e saia imediatamente da minha frente. Da próxima vez não o chamarei mais à razão e falarei sem articular palavra alguma. Desapareça de uma vez daqui para fora!

O homem, meio embriagado de sono e outro tanto de álcool, deverá estar a fazer de conta que não ouviu e toma a mais sensata das atitudes, respondendo com vénias e trejeitos de cortesia, escrevendo no ar sentidas desculpas, marchando para trás a retirada nestes propósitos. Deve estar a ser de tal forma o teatro que o senhor médico já quase se arrependeu da brusquidão com que recebeu o serviçal.

- Sim, sim, saia lá depressa e evite de uma vez por todas estas suas atitudes desorganizadas. Sabe bem o quanto me aborrecem. Lefebvre deverá estar a necessitar dos seus serviços. Vá ter com ele e diga-lhe que dentro de poucos instantes necessitarei de lhe falar. Estou a terminar um assunto importante e irei assim que possa.

A voz mudou, o tom é agora mais tranquilo. Foi a surpresa de ter sido interrompido no seu constante e ritmado percurso de escriba que o alterou com o susto a inspiração. O médico escritor pousou a pena e olha para mim neste momento. O seu olhar atravessa-me as pálpebras e vem ter comigo sabendo que estou acordada com os olhos fechados. A ponta da língua de fora dos lábios e a pequeníssima diferença na colocação da cabeça, que se virou para o local onde a pena se entreteve a rabiscar o papel, encarregam-se de o comunicar. Mais forte do que esses sinais é a sua presença. Sente-se na sala, enche-a por completo, como o seu olhar assim que o vi na praça igual à imagem que me aparecia nos sonhos, os mesmos que me comunicavam às parcelas toda a tragédia acontecida.

- Vou ficar aqui o resto da tarde e toda a noite, e toda a vida. O teu rosto apareceu no meu sonho e não mais posso esquecer o momento em que te vi no centro da praça destruída, igual à estátua que na véspera da concretização da loucura me comunicou envergonhada tudo o que iria acontecer. Sei que me ouves, sei que me adivinhas a vontade em te voltar a dar o que perdeste naquele estúpido acidente com o Felício. Sabes que não irei parar até conseguir trazer-te de volta. Necessito de obter as respostas que acredito estarem guardadas em ti. A intensidade do que li no teu olhar não me deixou dúvida alguma. Esse segredo, esse dom que tão bem guardaste é raro demais para que permaneça assim nesta ténue indeterminação.

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