quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

SEGUNDO ACTO - continuação IV


Ao descobrir estes estranhos caminhos, abriram-se as portas de todas as dúvidas. Depois dos primeiros meses de surpresa foi ainda maior o espantamento quando percebi que, em momentos muito particulares, os sonhos permitiam algumas alterações. Ligeiras e muito insignificantes, no início. Quase a medo e através de muitas tentativas frustradas, logo a seguir. Até que comecei a ganhar o jeito e comecei a participar nos sonhos de outra forma. Deixei de me sentir como uma mera espectadora deslocada e coloquei-me no centro de todas as acções.

De quando em vez as portas das histórias cinzentas permaneciam entreabertas de um sonho para outro permitindo-me jogar com a realidade de tal forma que cedo se tornou em enorme vício. Não consigo descrever o imenso prazer obtido pela antecipação programada, planeada, de muitas das coisas que ainda estão por acontecer. O que inicialmente foi assustador, fisicamente inquietante e profundamente estranho, passou a ser verdadeiramente empolgante e poderoso. Subitamente era possuidora da chave de um domínio misterioso que ia aprendendo a dominar, que tanta utilidade me proporcionou desde o seu início. A pouco e pouco ia manipulando o futuro, moldando-lhe as formas a meu bel-prazer, subjugando-lhe as vontades e alterando-lhe as agruras e as sombras.

Primeiro vieram os momentos em que através dos mais disparatados pormenores comecei a mudar os ritmos dos acontecimentos. Os tombos e as quedas que provoquei a meu pai, alterando-lhe as vontades com as dores e com o mal-estar dos ossos partidos, proporcionaram-nos largas semanas de tranquilidade. Os momentos de fome e de embaraço foram desaparecendo desde que o hospital Real "sentiu” necessidade de mais mãos trabalhadoras para colocar ao seu serviço. Aos pais foi oferecida ocupação, os irmãos ficaram mais aliviados e eu pude partir em pequenas viagens pela cidade, por vezes vagueando sem sentido, procurando o cais, permanecendo muitas vezes junto às muralhas do castelo olhando o rio, outras vezes assistindo aos actos públicos de punição que, mais vezes que as desejadas, vão mantendo a populaça em sentido numa amedrontada reverência. Comecei a sentir vontade de matar, uma tão grande vontade de matar, só para tentar perceber se também no desejo de maldade os sonhos se transformavam numa maléfica premonição.

Igual! Exactamente como nos outros. Também no desejo de maldade a realidade acaba da mesma forma do sonho, como antecipado mas perversamente moldado. Acabo de ter a realidade sob o jugo das minhas mais estranhas vontades! Descubro, com receio, que parece não existir limite para esta força que cresceu dentro de mim. Desejei um sonho onde termine esta estranha dádiva, só por momentos, só num muito pequeno instante. Começaram a ser assustadores os poderes tremendos deste abominável companheiro. De sonho em sonho, de onda em onda, de maré em maré, as janelas das tormentas ficaram escancaradas de par em par e todas as loucuras parecem ser possíveis. Nada fica de fora do contributo das várias artes dos desejos sonhados. Somente a continuada palidez dos cinzentos diferencia estas acções das suas futuras andanças reais.

O medo cresceu na mesma proporção da vontade em lhe dar cobro. Um quadro muito escuro, desfocado e mal iluminado começou a fazer parte dos meus sonhos como um fantasma que não deseja dar-se a conhecer. Um rosto pálido, sem olhos, sem expressão. Uma figura de padre, um busto fantasmagórico que pisca intermitentemente como os relâmpagos que antecipam com estrondo as lutas dos seus gigantes.

As pétalas saem-me dos olhos fechados com maior frequência. Desejei trazer esses monstros do céu até às profundezas da terra, misturá-los com o poder de todos os mortos, de todos os que já se despediram desde o início dos tempos, desde que o primeiro dos homens se apagou. Olhei para eles, para aqueles senhores da escuridão cujo poder imenso faz abanar os céus e transforma a mais escura das noites no mais luminoso dos dias, olhei para eles sem nunca os ver. Sabia que estavam ali porque os sonhei com fazia quando desejava transformar os sonhos nas asas do meu desejo.

Senti no sonho o seu hálito, o seu poder, as poderosas línguas de luz escondidas nas entranhas dos seus corpos gigantescos. Por breves instantes fui também um daqueles monstros com entranhas de luz e voz de trovão. Na madrugada seguinte à deste sonho vi-me colocada nos céus em forma de nuvem negra e pela primeira vez a cor da minha realidade foi igual à do sonho que me antecipou esta estranha verdade.

No momento em que me fundi com os monstros negros daquela tempestade desejei ser capaz de fazer mexer as entranhas da terra, desejei ser como esses gigantes invisíveis, ser um trovão ou a própria tempestade. Representei o que de mais profundo e escondido guardava em mim. Substitui o que de mais agitado e turbulento as trevas ocultavam. Alinhavei a estranheza, reformulei o medo, a tristeza, as dores e os horrores passados e saíram-me desorientadas estranhas vontades juntamente com ordens negras e cruéis. Mandei desalinhar as raízes do mundo, castigar os homens, fustigá-los com o mais cruel dos desígnios.

Foi assim, desta forma, que derramei os meus interesses, como se estes fossem o fel da minha sentida vontade em destruir.

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