domingo, 17 de janeiro de 2010

SEGUNDO ACTO - continuação II


Os homens da frente resolveram ficar a assegurar a protecção aos navios que nos vão fazendo chegar todo o tipo de ajuda. Os militares, que desde o dia seguinte ao dos maiores abalos se apresentaram em todos os pontos da cidade com ordens expressas e pragmáticas por detrás de todas as suas acções, conduziram as primeiras fases do seu trabalho com bastante rudeza, muita brutalidade e total desorganização. As coisas acalmaram com o passar das horas e com a participação fundamental das gentes ordeiras que, na sua esmagadora maioria, tudo perderam, os seus familiares, as suas habitações, os seus parcos haveres e todo o tipo de recursos. Ter-se-á obtido uma estranha sensação de quase sobre-humana virtude ao termos sobrevivido a todo este calamitoso sofrimento. As cicatrizes que os acontecimentos abriram foram iguais para todos os que se conseguiram arrastar para fora dos escombros.

- As cautelas foram tantas que os nervos conseguiram dar conta do recado. Finalmente está de volta e agora só o tempo poderá fazê-la sair dessa escuridão. Acredito que já faltará pouco para que se recuperem na totalidade todas as suas funções. Os joelhos acabaram por ser a maior das minhas preocupações, mais ainda que a pancada na cabeça. O Felício conseguiu evitar um mal maior mas o sofrimento pelos quais as pequenas pernas e os músculos fracos dos joelhos já tinham passado mostraram-se bem mais difíceis de sarar.

Todos os cuidados serão poucos com as velas e lanternas. Os desastres causados pelos incêndios do dia do Inferno recuperaram as nossas recordações.

- Posso entrar Bernardo? Pareceu-me sentir a sua voz. Fala consigo mesmo, seguramente.

O Mestre estava sentado ao lado da rapariga, numa pequena cadeira que resgatou nos destroços e que não mais desejou largar.

- Não lhe disse que apenas dormia? O seu pequeno rosto nunca deixou de ter cor nem demonstrou qualquer vontade em desistir. Os pequenos sinais deram lugar a outros cada vez mais fortes, as pálpebras, depois da língua, acabaram por se levantar, e já com alguma ajuda da parte da rapariga, consegui sentá-la e aqui estamos a defender as maleitas com este caldo.

A importância que Bernardo dava à vitória desta vida sonhou-a todos os dias desde que a desgraça nos caiu em sorte. Continua a preocupar-se com um pretenso estranho poder que a jovem guarda e que ele, supostamente, sente crescer em si desde Pompeia, aos vinte anos de idade. Este encontro, ainda para mais nesse dia tremendo e nas circunstâncias bizarras em que acabou por acontecer, não o trazem bem dormido, não lhe têm dado descanso. Pode ser que esta incompreensível recuperação lhe devolva maior tranquilidade. As colinas continuam com surpresas terríveis que se vão descobrindo ao final de tantos dias de resgates e de miséria. Os corpos que ainda vão sendo descobertos dão conta da gigantesca dimensão desta tragédia. Esta vida, uma única vida salva que seja, dá um alento e uma força que ultrapassa a compreensão que tentamos fazer a um fenómeno desta natureza. Deus afastou-se, ficou de longe a assistir distraído à acção dos seus monstros inimigos abandonando os fracos homens ao seu triste destino, ou então, pura e simplesmente, não existe, não há espaço para ele nesta imensa sepultura que deixou abrir a céu aberto.

.

Sem comentários:

Enviar um comentário