quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

SEGUNDO ACTO - continuação III


Nas ameaças provocadas por mais tremores desta terra nervosa, travam-se guerras e combatem-se os medos por todos os que se aguentam e permaneceram na cidade ferida. As invejas e os desejos também foram destruídos. As sortes transformaram os vivos em desesperados, em estropiados, em reproduções pouco fiéis de tudo aquilo que já foram. Diferentes argumentos andam por todos a ser discutidos. As teorias acerca do que terá provocado esta destruição discutem-se nas altas individualidades do clero mas cedo se confrontam com um povo descrente e atemorizado pela eventual e catastrófica possibilidade de vivermos todos num mundo destituído de providência divina. Caem todos por terra pois os olhares facilmente se deixam abater ao repousar na devastação que tão cedo não nos abandonará.

Descobrir as ameaças constantes à minha sanidade. Evitar as emoções e os sentimentos sempre que as imagens surgem fortes dando recados, fazendo desaparecer os sinais da verdade, trazendo outras que ainda estão por acontecer. Esta penumbra sedutora faz-me feliz pela simples razão que não me tinha sido antecipada. Talvez o acidente me tenha desligado estas infernais regras vindas do futuro, quem sabe, talvez…

Os silêncios, neste momento, são um bem precioso. Não chegou ainda o tempo de dar conta desta minha solidão, da minha imensa colecção de imagens. Durante todo o tempo em que estive ausente desde a queda descontrolada da montada até este instante, não me foram comunicadas as antecipações do costume. O descanso forçado pelo tombo é bem-vindo. Não me recordo de um tão grande período em que as imagens do que está para acontecer permaneceram assim afastadas de mim. Por agora fico satisfeita. Gostaria de ficar assim nesta ilusão de normalidade todo o restante período da minha existência. Aquilo que alguns poderiam considerar uma riqueza, um dom talhado e banhado com os dourados brilhos dos altares, é somente um atroz e cansativo suplício.

Perdi a conta às noites passadas sem dormir. Foi terrível e tão aflitivo o instante em que tudo o que me foi comunicado no sonho nascido naquela primeira madrugada de antecipação acabou mesmo por acontecer. Tal não podia ser verdade. Em plena luz do dia, sem nenhuma diferença nos gestos, nos cenários, nos tempos, nos odores, nas palavras usadas, na temperatura sentida e nas consequências das acções por parte de todos os actores envolvidos, os acontecimentos passaram-se como uma cópia exacta do sonho dessa noite. Transformei-me numa estátua gelada. O sangue deixou de correr nas veias e juro ter sentido o coração parar no peito.

Tudo estava igual no mais ínfimo detalhe ao sonho cinzento que tive nessa noite. A única diferença a marcar a confusa realidade daquelas sequências exactas era a tonalidade com que se vestiam as acções. No sonho tudo apareceu em tons de cinza. Nas que aconteceram estando eu bem acordada, havia azul no céu, cremes e ocres nos trajes e nas roupagens, os verdes e castanhos dos arvoredos, tonalidades de peles sujas e queimadas dos rostos dos seus donos. Esta foi a única diferença neste primeiro encontro com o dom. Depois de este se ter tornado banal, esta diferença inicial deixou de acontecer. Os sonhos e a realidade tornam-se muitas vezes numa sucessão de factos que já muito dificilmente vou conseguindo distinguir.

- Bernardo, bom amigo. Estou farto de magoar as mãos. Não temos condições para dar conta de tantos trabalhos. São às centenas os que por aqui se espalham nas alas e nos corredores semi-destroçados. Não se podem dar recados sem que a grave situação pela qual todos passámos não interfira na rapidez da sua entrega. As nossas práticas respondem com lentidão quando os casos mais graves que nos encheram as entranhas destruídas do hospital carecem de rapidez de tratamento. Por aqui parece que as novidades são de monta. Vejo uma extraordinária recuperação da sua protegida depois de tantos dias de ausência.

O senhor médico admira-se com o meu apetite. Parece que aqui se preocupam com o meu sono forçado. Ainda não me apercebi do tempo em que estive afastada desta crueldade, transportada para aquele imenso nada onde morei num sossego que julguei não existir. Com vontade vou sorvendo esta sopa que me serve o médico escritor. Compreendo agora que foram os sons da sua pena nervosa que lentamente me trouxeram de volta, me acordaram deste torpor que me roubou as horas ou até os dias.

- Assim é caríssimo Lefebvre, assim é. Começou por um simples e quase imperceptível movimento da cabeça. A rapariga rodou-a na minha direcção e percebi a ponta da sua língua a humedecer os lábios dando conta de actividade. Pouco a pouco foi restabelecendo todos os sentidos, activando lentamente mas com segurança grande parte dos seus movimentos. Os olhos pareciam mais demorados por debaixo da protecção de umas pálpebras zelosas. Apenas as suas palavras permanecem preguiçosas e demoram a fazer-nos companhia. Mesmo antes da queda julgo que a rapariga não tinha lançado uma única frase que tivesse sido suficientemente audível, talvez dominada por um natural estado de pavor dadas as circunstâncias daquele dia.

Servem-se os dois da sua mútua companhia. O rosto deste médico que me vai alimentando com este caldo já não me era estranho. As situações são tão extraordinárias, tão esmagadoras na dimensão da catástrofe, tal e qual me apareceram vezes e vezes sem conta naquelas misturas agrestes de gritos, de choros, de almas abandonadas às suas sortes em sonhos cobertos de pó e de lama, imagens tão exageradas na dimensão do horror que apesar da naturalidade com que tudo, de repente, resolve acontecer, não consegui evitar as muitas dúvidas que me proporcionaram esses avisos. Em grupos de pequenos sonhos renovados, as imagens da tragédia eram tão brutais, tão intensas e avassaladoras, que dei por mim a desejar adormecer no próprio sonho que me estava a ser servido. Não controlo os movimentos nestes momentos agitados que me são servidos no centro das ideias. Sou apenas mais um dos muitos figurantes que por ali se passeiam. Muitas vezes não são os meus olhos brilhantes a dar conta de tudo o que estará para acontecer. Os meus olhos nestes sonhos percebem a minha própria figura como uma personagem distinta, como se eu, afinal, fosse apenas mais um dos muitos actores que por ali se cruzam e vagueiam. Foi assim nessa condição que me vi a contactar com este senhor médico junto à escadaria semi-destruída que dava acesso à entrada da capela do hospital. Tudo o resto ficou por acontecer. No momento em que nos olhávamos, o meu sonho transformou-se mais uma vez não me deixando qualquer pedaço de descanso. O chão baloiçava e agitava-se como uma montanha que desejava partir-se ao meio de alto a baixo num só instante. Era o aviso que os dias do fim do Mundo tinham vindo para ficar.

- Estou tão surpreendido quanto tu. Tinha esperanças numa recuperação da senhorita mas não desta maneira tão rápida. Incomoda-me um pouco o facto de não articular qualquer palavra. Não que isso seja mais importante do que o apetite que demonstra ou do que as rosadas cores que sempre apresentou. As pernas tinham feridas muito profundas anteriores às provocadas pela queda. Os joelhos e os pés estavam tão mal tratados que receio mesmo pela sua capacidade de locomoção. Mas está de regresso e agora já se pode alimentar com maior facilidade.

Sente-se bem forte um outro abalo. O suficiente para trazer de volta todos os medos e histerismos. A duração não se compara ao do dia da tragédia mas já ninguém consegue evitar as ansiedades. As vidas pulsam ao ritmo dos nossos receios. Até el-rei mandou levantar acampamento com paredes de pano receando o peso das paredes, dos telhados e das vidraças, receando o peso da morte, receando que esta lhe surja de cima ou possa vir a marcar encontros secretos com as altas figuras da nossa corte. A “nobreza” deste seu gesto contrasta com a energia e a lucidez de raciocínio do seu Ministro Sebastião. Pela forma como conseguiu preparar todas as acções que responderam, no imediato, às necessidades exigidas por uma catástrofe destas proporções, dir-se-ia que parecia estar preparado, que parecia aguardar por uma fatalidade deste teor e dimensão.

- Já terá passado? Sentiu-se forte a agitação a nossos pés, e este ruído surdo que nos esconde as entranhas cavernosas do centro do mundo. É verdadeiramente inquietante. Despe-nos a alma, põe a descoberto a real dimensão da nossa pequenez.


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