segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

QUINTO ACTO - continuação II



Os pensamentos afligem pela simples razão que muitos, a esmagadora maioria, se atreve a acontecer. A liberdade de escolher o futuro voltará a aparecer como dantes. Não acredito que seja sobre isso que o ministro nos deseje falar, que algum fundo de verdade saia das suas palavras quando nos parece ler as ideias a toda a hora e a todo o instante. O que será que está a guardar para nos mostrar? É um alívio já não antever as ocasiões para não ter de me atormentar com elas. Cumprir as tarefas rotineiras do simples acontecer, a vergonha de viver o momento como se fosse uma tortura, a tortura do segredo que todos esses momentos encerram. Vão passar dias sem que se saiba, dias que passarão como anos, correndo como dias de sorte que ao mesmo tempo que se invejam se odeiam, como mentiras venenosas. O ministro está aqui para nos mostrar um início, uma mudança ou um destino que, segundo ele, pensava ser um dom que só nele crescera. A decência da novidade partilhada pareceu-lhe menos pesada, menos difícil de suportar. Quem no seu perfeito juízo pode transportar consigo a responsabilidade total do que aconteceu à capital da nação? Não o diz, mas vê-se que é assim que pensa, e custa-lhe assumir e aceitar essa situação como guerreiro obstinado que é. Não viemos aqui apenas para descobrir o que em comum nos escreveram nas ideias. Seguramente que padecemos de uma qualquer estranhíssima doença que nos afecta a alma. Estamos ausentes e depois presentes, disponíveis para as tarefas que nos aguardam, que desejamos que aconteçam e que depois, pela misteriosa força deste desígnio, nos aparecem à frente para nosso deleite ou frustração. Volto a ligar este lugar, aqueço-o, reponho as suas pistas como se fosse a última réstia de normalidade que me resta. Ajuda-me imenso permitir que outro tipo de justiça possa fazer renascer esta cidade. As vidas ceifadas assaltam permanentemente e sem calma muitos dos nossos pesadelos, julgam-nos todos os dias, preocupam-se com os seus e deixam-nos num estado verdadeiramente calamitoso. Localizar destinos, deixar que eles nos arrastem e observem, dizer-lhes que contem connosco para não voltarmos a descer aos infernos por onde passeámos. A mão desliza pelas recordações da noite de ontem como se tivessem todas sido passadas da mesma maravilhosa maneira.

- Caros amigos, estamos a viver a primeira e talvez a mais importante de todas as vitórias. Interpreto a nossa sobrevivência às terríveis consequências do terramoto como um acontecimento da maior relevância. Quem foi capaz de nos unir após o desastre? Eu, que mais não tenho feito que criar sonhos onde me entretive a desenhar os traços apaziguadores da nova capital do reino, transfigurando-a majestosamente, transformando-a rumo ao futuro luminoso que a aguarda? Terá sido o caríssimo mestre Bernardo a quem as estranhas entrelinhas do futuro sombrio visitaram na véspera da calamitosa manhã, nascida bem carregada com as forças da destruição? Ou terá sido a bela Fernanda, que bem cedo aprendeu a cozinhar as forças negras da vontade, as sublimes mas pesadíssimas forças negras da vontade? Lisboa caiu por terra, desfeita primeira em pó e poeira, depois engolida nas lamas caudalosas da maré que a engoliu, e depois atiçada pelas chamas infernais que a consumiram quase até à exaustão. Lisboa caiu por vontade de quem? Por todas as nossas vontades, pela minha vontade particular em desejar construir uma Lisboa à minha imagem e ambição ou pelo apelo fervoroso a uma ruinosa vingança que germinou implacável na gentil e frágil Fernanda? Um sinal inesperado desceu de um qualquer passado tenebroso e resguardou-se no sonho tormentoso do mestre. Resolveu acordar e dar-se a conhecer como se um pedaço do próprio Inferno tivesse sido reclamado pelas miseráveis ruelas da cidade. O mais estranho de tudo isto é que nenhum de nós consegue ver estranheza em tanta injustificada coincidência. A nossa franqueza é única, cresceu e fortaleceu-se através destes acontecimentos inacreditáveis que passaram a vestir a realidade dos nossos dias. Estamos acima de todos os outros membros da Nação. Ninguém pode imaginar aquilo em que acreditamos. Possuímos e partilhamos partes distintas de um poder ímpar que temos obrigação de usar de forma coordenada e muito, muito sensata.


Nasceu um novo dia, um dia em que os ódios deixaram de fazer sentido. Passámos para o outro lado do palacete onde ainda não foram praticadas quaisquer reparações de relevo. Os efeitos da tragédia encontram-se bem marcados nos altos muros e na fachada da grande casa que se encontra no topo norte da propriedade, nas vidraças e nas janelas que aqui se encontram todas abertas. As chaminés rogam por auxílio. É com alguma surpresa que o ministro nos faz entrar pela porta principal do edifício que se encontra bastante danificada. Maior é a surpresa quando nos deparamos com o interior da habitação que não está tão deteriorado nem com o ar de quase abandono que as paredes exteriores nos comunicam. O ministro avança pela casa adentro, passa por dois salões, por quartos, por salas e por pequenas salinhas até que numa delas desce por uma escadaria que serpenteia ao redor de uma imensa estrutura granítica que parece não ter fim. Depois de algumas vertigens e de descer dezenas de degraus rodopiantes que nos transportam muitos metros para baixo da construção, atingimos um corredor frio, sombrio e claustrofóbico. As paredes parecem encolher à medida que avançamos mais vagarosamente e sempre com o ministro a liderar o cortejo. A iluminação é muito fraca e os olhos demoraram algum tempo a habituarem-se à penumbra. Descobri algumas pinturas que decoram as paredes apertadas deste lugar. Bernardo segue atrás de mim. Parou para poder observar melhor as estranhas pinturas.

- Vamos, já falta muito pouco até chegarmos ao local onde tenho guardado aquilo que vos desejo mostrar.

O ministro deu mais uma vintena de passos e mexeu num chaveiro que retirou da sua jaqueta aveludada. Rapidamente se escutou o barulho metálico da fechadura da porta onde termina este estranho corredor. Os candelabros de muitas velas foram sendo acesos com gestos prudentes e muito minuciosos numa espécie de ritual claramente ensaiado tamanha era a eficácia no método utilizado pelo ministro que vai dotando a sala com uma agradável claridade.

- Aqui estamos! Chegámos ao meu pequeno refúgio. Trouxe-vos até aqui com uma intenção, com um propósito muito claro que foi ponderado e estudado durante muitos dias. Alturas houve em que pensei manter apenas para mim este segredo que vos venho hoje revelar. Decidi partilhar a minha interpretação deste fenómeno convosco pois são mais as evidências daquilo que nos une do que daquilo que nos divide. Sentai-vos por favor caríssimos companheiros de viagem. O significado de tudo aquilo que nos rodeia tem-me trazido ocupado desde que me recordo de ser capaz de memorizar. Lembro-me claramente do dia em que consegui ser capaz de usar as cores do tempo e do dia em que transformei o peso das verdades com extraordinária facilidade, habilidades essas que em nada se podiam explicar. Muito receio foi por mim carregado ao dar uso desses milagrosos poderes. Atacaram os primeiros anos da minha existência e a tristeza que moldava o meu rosto não reflectia a felicidade suprema e o gozo divino que iluminava a minha alma. Cresci transportando este segredo, esta arma poderosa que foi fazendo toda a diferença ao longo de todos os dias da minha vida. Conheci alguns como vós, mas longe, muito longe de serem capaz de relatar o futuro ou de antecipar com tamanha exactidão e tanta minúcia os mais ínfimos detalhes daquilo que está para acontecer. A genial Fernanda foi a única pessoa, tão única e tão verdadeira que eu tinha de tomar esta decisão. Não consegui destruir as vossas pessoas, ia ser demasiado fácil e resultaria numa tragédia quase tão grande como aquela que sabíamos estar para acontecer. Vós mesmos já pensastes em oferecer-me a morte de presente. Não há um único dia que passe que não se iluminem por este país fora, na cabeça de muitos dos nossos inimigos, desejos para que tal aconteça. Não existe pensamento algum que eu não acabe por decifrar. Nos primeiros anos da minha juventude julguei enlouquecer pois muitos eram aqueles que me odiavam e que acabei por destruir. Cresci numa espécie de manicómio incandescente em que as palavras invisíveis dos outros faziam luz na minha alma e acalmavam as minhas sombras. Construi monstros e deles acabei por me alimentar. Foram eles os meus amigos e apesar de não terem física existência, fiz questão de os transformar em realidade para todos aqueles que maiores ódios me foram revelando. Os extraordinários relatórios que mestre Bernardo me foi fazendo chegar clarificaram de vez uma dúvida que me atormentava. Já não era único! Depois de tantos anos à procura, de quase já ter deixado de acreditar ser possível encontrar no espaço desta vida essa ímpar figura, reconheci tudo o que a Fernanda falou enquanto se manteve inconsciente. Deixei cair essa vaidade e decidi fazer de vós uma aliada para aquilo que ainda nos está reservado. Dias loucos e outros mais sensatos crescerão por nossas vontades. Nada mais simples e mais complexo do que isto. É de um pacto infinito que aqui vos falo e que aqui vos proponho.

É difícil acompanhar com clareza tanta informação. O ministro fala rapidamente e as palavras ecoam estranhas antes de começarem a fazer algum sentido. Bernardo está branco. Mantém-se calado. Sinto que se debate ao tentar decifrar tudo o que se está a passar.

- Senhor ministro. Antes de mais nada, deixe que lhe diga que as suas palavras me trazem algum conforto. É muito difícil dar seguimento a esta missão, fazer brotar injustiças e muitas dores ao avançarmos com a causa das coisas, ao fazermos acontecer o que não pode deixar de existir e de nascer. Causam menos ansiedade se forem dores repartidas, se alternarmos as misérias com actos mais sublimes e menos monstruosos. A dificuldade em resistir ao pecado é maior se não nos dermos ao trabalho de definir as fronteiras de razão e da decência. Sabe bem àquilo que me estou a referir. Passarei a dormir um pouco mais tranquila sabendo que o que aconteceu não se deveu apenas às minhas vontades. Somos capazes de adivinhar, de antecipar, de formar ideias que depois se transformam em realidade. A nossa força acaba por se diluir ao verificarmos que não estamos sós neste propósito.

- As decisões corajosas não são as mais fáceis de tomar. Certo dia o rei mostrou uma colecção de obras de arte composta por duas estatuetas e quatro pinturas de mestres do norte a três nobres ingleses durante uma recepção realizada na corte. Nenhum dos notáveis se mostrou muito interessado ou até surpreendido pelas imagens representadas nas diferentes pinturas. Estavam aliviados na sua razão por força da notória embriaguez que os arrastava pelo salão, possuídos por uma total ausência de perspicácia e de discernimento ou talvez por uma combinação de todas essas características. O certo é que uma das obras de arte, que era na verdade composta por três retábulos, sobressaia de forma ímpar do conjunto. Era verdadeiramente extraordinária. A pintura mais inacreditável que alguma vez me fora dada a contemplar. Esse dia ficou para sempre marcado na minha vida. As imagens representadas nas três partes da pintura pareciam falar comigo. As estranhíssimas personagens desse quadro já antes tinham passeado nos meus sonhos, iguais até ao mais ínfimo detalhe, desde a estranheza dos seus corpos até á bizarra combinação de paisagens. Navios voadores com corpos de peixes ou aves decapitadas passeavam junto às nuvens com a maior das naturalidades. O imenso incêndio que se encontra representado no painel central da obra tinha-me visitado antes de a ter visto essa primeira vez e voltou a vaguear em muitos dos meus sonhos e em alguns obscuros pesadelos. Todas as semanas me avisou que forças tormentosas provocariam a queda de Lisboa, que a iriam visitar, como vieram, em Novembro passado. O tempo que estava para chegar preparou-me para muitas derrotas. Tive de saber serenar as vontades e interesses, reservar muitas palavras que ficaram por dizer, tudo para que hoje possam ser as que mais se escutam. A obra tinha de passar a ser minha! As muitas necessidades do rei passaram a ser da minha inteira responsabilidade. Foram muitos os dedicados e leais serviços que prestei ao país e ao reino. Este acabou por ceder naturalmente ao meu pedido e incluiu a pintura num oferecimento que me fez. Desde então que aqui venho muitas vezes para contemplar tão rara e misteriosa obra de arte. As descrições das visões de Fernanda que mestre Bernardo escreveu com erudição nas suas sábias escrituras, relatam com tamanha minúcia as misteriosas cenas da pintura, descrevem com assombroso detalhe as muitas peripécias e as devastadoras alucinações representadas ao longo dos seus três painéis, que o meu cepticismo inicial rapidamente se dissipou. Deixei de ter a mais pequena dúvida! Existe uma grandeza e um caminho comum que nos une, algo bem mais importante e superior que o valor das nossas próprias vidas. O extraordinário autor desta pintura era, provavelmente, como nós, um visionário. As imagens desciam da sua vontade e transformavam-se à luz de seus dotes bem na frente dos seus olhos com nefasta alegria. Teve a capacidade artística e a valentia sublime de transformar os seus sonhos e pesadelos em obras de arte. Já entenderam que o motivo da vossa vinda até este meu refúgio tem como objectivo principal preparar-vos para aquilo que vos vou mostrar. Esta pintura é muito mais do que um simples quadro. Há séculos atrás este pintor recebeu o que apenas alguns de nós hoje antecipamos. Imagens que repetem futuros sombrios, austeros e diabólicos, imagens premonitórias de almas perdidas abandonadas sem clemência, de medos e receios de todos os tipos adornados numa mensagem obscura que dá conta de um terrível acontecimento com consequências nefastas e apocalípticas. Preparai-vos para sentir algo como nunca até hoje imaginaram. Ao passearem os olhos pelo quadro, passará pelos vossos corpos uma energia única que carregará os corações com uma energia alucinante. O cérebro encarregar-se-á de recuperar essas imagens do lugar abrigado onde se escondem, voltando a colocar esses amigos cruéis no centro de todas as atenções. Descobrir novamente a doce beleza encerrada nesses lugares sombrios e reservados.

Revesti-vos (irmãos) da armadura de Deus, para que possais resistir às ciladas do demónio.

Pois não é contra homens de carne e sangue que temos de lutar, mas contra os príncipes deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal (espalhadas) nos ares”- (Efésios,VI,10).

Fecho os olhos, fecho-os por súbita vontade. Sento-me numa das cadeiras que se encontra encostada à parede mais próxima da porta e agarro-me às mãos de Bernardo. Ainda não estou completamente sentada quando começo a ver com clareza uma floresta.

- “Vejo um céu tranquilo que se torna negro por acção de um violento incêndio que devasta uma povoação próxima da sua orla. Vejo um Santo Homem que tem diante de si um homem “cabeça-com-pernas” e uma velha mulher com véu de freira que lhe estende a mão direita. Vejo uma torre semi-destruída e no seu interior uma abside. Sobre a sua porta um telhado fino e ovalado. Dentro dela há um altar encimado por um crucifixo. Vejo ao lado do altar um homem que me olha de frente como se me conhecesse desde sempre. Ao lado esquerdo do Santo Homem encontra-se uma mulher de cabelos loiros com um vestido que termina numa comprida cauda de réptil. Vejo animais debruçados numa mesa, criaturas híbridas com bico de corneta, monstros nobremente vestidos, bichos escuros e estranhos, um tocador de alaúde de corpo disforme e cabeça porcina, dois cães vestidos e símbolos estranhos desenhados no chão entre duas linhas ovaladas. Vejo uma grande plataforma e uma bruxa com um tronco de árvore na cabeça, armada com arco e flecha a liderar um grupo que se movimenta em direcção ao centro onde se encontra o Santo Homem. Arrasta um dragão bípede de grandes orelhas por uma lança que este tem espetada no crânio. Olha directamente para mim como se me conhecesse desde sempre. Um monstro de focinho delgado segue logo atrás de si. Nas margens de um lago um gnomo balança-se numa cesta de palha pendurada. Empunha uma espada. A seu lado, uma ave de bico longo tem um escudo no pescoço. Vejo um monstro deitado sob uma “tenda-fruta” com as pernas abertas para o lado de fora. Dentro de um lago de águas putrefactas nadam repugnantes animais e navegam peixes embarcações com formas bizarras. Vejo um importante grupo onde um grande rato é montado por uma criatura cuja cabeça se encontra envolta num tronco de árvore com galhos. Esta criatura possui garras de compridos ramos de árvore, afiadas e entrelaçadas. A parte inferior de seu corpo é um longo prolongamento como um rabo de peixe. Senta-se numa sela sobre um manto vermelho comprido que cobre o rato. Debruça-se sobre um pequeno bebé. Vejo que a seus pés emerge uma criança encapuzada que quase se confunde com a borda do manto. Olha directamente para mim como se me conhecesse desde sempre. Vejo no céu limpo um movimento aéreo com barcos voadores que se dirigem à esquerda onde há fogo. Na margem do rio localiza-se uma povoação totalmente em chamas. Vejo imagens que parecem retiradas do dia em que Lisboa foi despedaçada em mil pedaços. Vejo imagens da loucura que devastou os primeiros minutos após a queda da cidade, vejo os monstros-homem que tomaram conta dos mortos, dos moribundos, das crianças e dos que ainda vivos lhes iam pediam auxílio e a quem, sem piedade, faziam desistir desse instante de suplício. Vejo no céu a nossa fuga numa viagem para longe daqui, cavalgando um peixe voador que irá sobrevoar toda a desgraça, que acabará por nos transportar para um outro tempo, para uma outra era, para dias de sonhos feitos de azul e sensatez”.


domingo, 9 de janeiro de 2011

QUINTO ACTO - continuação I

Lisboa apoia-se novamente no seu amigo Tejo. Quando o mar o ergueu, atirando-o contra as paredes destruídas das suas habitações, ao encontro das ruelas e das azinhagas por onde os habitantes se tentavam proteger, o rio chorou lágrimas desesperadas pelas vítimas que causou sem intenção. As marés inimigas cresceram como montanhas de água salgada, invadiram e empurraram as mais doces águas do Tejo sem que este lhes pudesse fazer frente. Deixo a palma de minha mão refrescar-se nas águas transparentes deste amigo, sem o qual a cidade não seria a mesma. Lefébvre adivinhou a minha tristeza e não falou desde que o cheiro da cidade grande se fez sentir. É impossível voltar atrás, fazer parar o tempo ou pensar que os dias de Santarém se voltarão a repetir. O que mais custa é saber isso, muito mais do que voltar de novo a olhar para esta cidade massacrada pela maldade. O que aqui aconteceu não foi deste Mundo, e não foi assim que escreveram a nossa morte. Naqueles momentos de tristeza indescritível, uma incrível fortuna estava escondida nos seus muros destruídos sem que eu alguma vez pudesse suspeitar. As palavras de Lefébvre salvaram-nos e fizeram-nos acreditar em coisas muito estranhas. Os dias e os meses juntam-se e limpam memórias menos boas, mas também tentam roubar-nos os dias deliciosos e doces de Santarém, esses dias em que acreditei tudo ser possível. Nos rostos das pessoas continuam vincadas as rugas do medo e frustração. Algumas igrejas da cidade foram os primeiros edifícios a ser escolhidos para se dar início à reconstrução, antes mesmo do palácio real. Ouve-se dizer, e disso já se faz humor, que o rei ficou com tanto receio de paredes feitas de pedra, de telhados e de varandas que pudessem ceder e enterrá-lo vivo como fez com milhares de Lisboetas apanhados de surpresa, que apenas deseja habitar em palácios construídos em tecido. Lefébvre volta à cidade, às suas responsabilidades, ao que será do novo hospital, aos horrores das horas, dos dias e das semanas inteiras dedicadas na nobre tarefa de curar. Conseguiram-se manter em estado razoável as mais importantes paredes da casa, isto se pensarmos na calamitosa paisagem que avistamos do que ficou da cidade. Apesar de tudo estar limpo, anormalmente calmo para o que aqui se passou há tão pouco tempo, o tempo parece não passar do mesmo jeito. Piso o chão de uma maneira diferente. Cada passo é pensado, cada olhar é lançado para o interior das salas e dos quartos com um receio de que tudo possa voltar a acontecer a qualquer instante. Não irei conseguir dormir nas primeiras noites. Se ao menos tudo pudesse voltar a ser como depois da chegada de Lefébvre a Santarém depois da desgraça, se ao menos tudo pudesse voltar a ser como aí aconteceu. A cidade, a dada altura da sua existência, deixou-se abater como um castelo de cartas, deixou-se cair, quis viver por mais uns séculos mas de uma outra forma. De alguma maneira desejou a sua ruína, desejou que lhe ficasse para sempre colada a lembrança da tragédia. As novas perspectivas descobrem-se mas já sem histórias de fantasmas, sem estátuas destruídas, sem mulheres, homens ou crianças a derramar as suas mágoas, acreditando que ficariam mais inteligentes se a morte não os visitasse tão cedo, pedindo desculpas a todos os que ficaram para os chorar. A cidade enganou-os. Abraça um império que aqui começa e que sente crescer, continua a passear-se ao longo deste rio famoso que lhe faz companhia e que lhe pertence. Diz-nos que nos deseja como a mais nenhum ser humano. A luz é a mesma e desenha as sombras das colinas que não cederam aos abalos e que continuam a embelezar a paisagem circundante. Chegámos e já sinto Santarém como se tivesse apenas sido um sonho seguido deste atabalhoado despertar. Decido fechar os olhos, decido fazê-lo para ver se as coisas não serão ao contrário. A minha desesperada vontade, a viagem de volta à cidade semi-destruída, a solidão e a revolta amargurada que me espera, os receios, o pavor que sinto só de imaginar que tudo pode voltar a acontecer, tudo isto é “o” pesadelo. Quando acordar estarei de novo abraçada a ti, meu doce Lefébvre, com o doce mel do prazer a envolver-nos, a colar os nossos corpos que se deixaram embalar pelos aromas delicados da Primavera que nos chegam lentamente das lezírias mais a Oeste. Daqui também se vê o Tejo a espreguiçar-se na paisagem com a mesma ternura com que os teus beijos me acordam de vez para tanta Felicidade.

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terça-feira, 4 de janeiro de 2011

QUINTO ACTO



À luz desta manhã cinzenta encontramos finalmente o senhor ministro numa sala inacabada de um palacete propriedade sua. Está eufórico, sem olhar para nós levanta os braços e brada por duas vezes:

- A ruína proporcionou o caminho para a transformação, a ruína proporcionou o caminho que nos levará à transformação.

Mantém esta estranha forma de nos receber e sempre de costas para nós, comunica uma quantidade de ordens a dois serviçais que ali permanecem junto de si. Aguardam que a última das instruções lhes seja comunicada para se afastarem respeitosamente, com as devidas vénias não só ao ilustre ministro mas também depois transmitidas a mim e a Fernanda, que como estranhos permanecemos estáticos no meio do enorme salão.

- A ruína veio proporcionar esta oportunidade de ouro para planearmos tudo aquilo que sempre soubemos ter de realizar. Nada ficará por reestruturar, nada. Conceberemos uma nova ordem, uma nova geometria atravessará este reino e iluminará novamente com orgulho e com uma glória ímpar a execução desta incumbência. O esforço que alguns intentam ou venham a intentar para evitar que esta estrada de mudança seja por nós construída passarão por dissabores insuspeitáveis. Precisamos de novas cabeças, um novo pensamento para que se avance, para que esta energia não se perca, e as ideias têm fervilhado de tal forma que não tenho tido qualquer vontade em descansar. São reformas imensas e o tempo escasseia. Agora chega de tanta conversa, a economia deste País tem de se levantar como as ruínas da cidade que já mandámos limpar e que se planificou nova e rigorosa. Venham comigo para que possam finalmente ficar a par daquilo que escondo de todos e que só convosco desejo partilhar. Mestre Bernardo, menina Fernanda, é tão visível a vossa desconfiança por esta minha simpatia por vós que ameaça propagar-se aos espelhos do salão. Acalmai-vos pois ela não tem razão de existir.

O ministro esboça um largo sorriso e Fernanda responde da mesma moeda apertando-me com força a mão direita. Olha por breves instantes para o rosto iluminado de dom Sebastião, olha depois para mim com o mesmo sorriso rasgado, levanta-me a mão com a sua à altura do ombro e orienta-me com gentileza na direcção do governante. Que misterioso artefacto nos será dado a conhecer?

- Vamos Bernardo, vejamos o que tem para nós reservado o senhor ministro. Verifico que a sua vontade em esconder de todos o que hoje nos vai mostrar foi ao detalhe de até ao meu dom ter conseguido sonegar a informação. As imagens continuam difusas mas as outras sensações que acompanham as comunicações das horas e dos acontecimentos mantém-se presentes. Este momento próximo não vem carregado com o peso insustentável e ácido do sofrimento.


Fernanda terminou estas palavras e os pensamentos voltaram até às noites em que registei todas as outras que me foi comunicando.

LIVRO de BERNARDO

A descida leva-nos até o abrigo, até as pétalas de sal, até ao mar. O passatempo tem estes desesperados desencontros. A lua padece como uma montanha mágica, como o jasmim, como as ruinosas palestras que nunca sairão de minha boca. As ideias começam a surgir difusas e inconstantes, começam a transformar-se. Os lugares por onde agora passeio deixaram de ter soalho fabricado com os corpos dos mártires e deixei de sentir os meus passos. Aqui e ali deixei inclusivamente de ouvir. Fui transportada para outro lugar por uns instantes. As pessoas estão paradas, imóveis como estátuas feitas de carne e de osso, presas para sempre num imaculado instante. Não quero tocar-lhes mas a vontade em fazê-lo é imensa. Assim que cedo à tentação, descubro que se transformam em sal e areia, em poeira fina, em ilusão. Caí com o susto depois de ter provocado a transformação de três estátuas. Três pessoas deixaram de existir por não ter conseguido ceder à vontade que tive de as sentir. Quero voltar para trás no tempo, para antes deste acto irreflectido. Continuo sem conseguir escutar. Todos os que aqui foram perpetuados nestas estranhas posições permanecem estáticos, ausentes de sentido. Não sei mais o que fazer. O senhor azul abandonou este cenário tão rapidamente com aqui tinha chegado. Ao longe já nada se move, os imensos barcos que como gigantescas cidades de luz dominavam o horizonte, desapareceram dando agora lugar a uma desabrigada paisagem acastanhada sem fim. Um deserto imenso feito de vento, de chuva, de muita chuva, e mudo. As imagens deste lugar aparecem-me novamente como um caminho feito de pétalas. Segui-lo-ei como tenho feito com todas as outras instruções. Fizeram-me aqui chegar com sobressaltos, bem ou mal, ajudaram-me até agora. Momentos há em que preferia apagar para sempre a força com que se fazem escutar dentro de mim. Vibram com violência, provocam muitas dores pela frequência inusitada com que me visitam. Deixo para trás o corpo e corro apalermada na vã esperança de as enganar. Mas é em vão que o faço. São poderosas e fazem de mim o que muito bem entendem. Prevejo mais uma destas visitas. A cabeça antecipa-me a sua chegada. A visão ganha manchas esbranquiçadas de luz que surgem acompanhadas de violentas dor de cabeça. Aguardo pela guarda do meu castelo. Volto a escutar as palavras do vento e a força com que a chuva cai do céu acastanhado. Não me consigo decidir. Tenho de continuar o meu caminho mas as pernas tremem-me, o corpo e as vestes ensopadas não promovem auxílio na tarefa de caminhar. Os movimentos surgem lentos, demorados. Cada passo é dado com dificuldade, como se as pernas e os pés lutassem com o chão que vou pisando. Nada aqui se compara a qualquer coisa que já conhecemos e os odores, principalmente os odores, são verdadeiramente insuportáveis e causam vómitos e grande mal-estar. Avanço sem rumo, de olhos fechados, numa direcção desconhecida pois tudo é igual nesta infinita paisagem desértica. O céu resolve falar. Escuto os trovões que parecem ter aumentado a intensidade do dilúvio. Moram neste lugar muitas memórias de coisas que ainda estão por acontecer, memórias de muitas coisas terríveis que ainda estão por acontecer.

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domingo, 2 de janeiro de 2011

QUARTO ACTO - continuação XIV


Eternas festas para cobrir os silêncios onde não é necessário fazer nada, apenas estar. Quis escrever acerca de tudo, tudo o que existe no Mundo, tudo, e não sou capaz, falhei sempre que me encontrava à beira de terminar algo com sentido, falho quando o que desejava era aproximar-me da razão. Pego no pouco sangue que me resta, e sinto-me zangado ao pensar na morte com satisfação. Não é, afinal, o que todos fazemos, pensar, de quando em vez, nessa fantástica sobremesa? Voltarei quando os relógios tocarem outra hora que não esta, me surpreenderem com uma outra vida, outra alma, outra função. Os Libertadores, precisamente aqueles que mais poderiam ajudar, decidem o que muito bem entendem esquecendo-se de nós. Encontram-se uns com os outros em segredos, depois das contas e das esperas, depois das estimulantes conversas em que juram tudo destruir. Não é muito difícil para eles, é apenas mais uma das estranhas maneiras com que nos mostram a sua dedicação e amor. Nem as flores dos cemitérios nos permitem acreditar numa outra emoção, e depois perguntamos porque é que tudo corre tão mal. As vidas não correm bem e só a maravilhosa morte faz, de quando em vez, especial companhia. É uma guerra, uma certeza, a única certeza, como os livros que acabei a escrever nestas paredes, neste chão húmido que transformei em folhas. Pedi tanto a estes médicos carcereiros, sempre fiz o que quis com a minha vida, como se fosse mais um orgulhoso Libertador, outro incapaz que não sabe lidar com esta miserável rotina. De que me queixo se, afinal, sempre me senti melhor sozinho, se a ilusão da pertença acabou por me transformar no bárbaro monstro de que todos passaram a falar, até que a insustentável dose de loucura me arruinou a humanidade, até que ao meu irmão e ao rei não restaram mais alternativas que não esta. Julguei que nunca mais o fariam. Tanto atraso desprezível nas forças que pareciam não lhes nascer nas palavras. Salvar o que de mim restava, com essa ordem que acabou tardiamente por ser dada e que me atirou para esta morada peçonhenta e sórdida, como os meus entendimentos. O que acontece quando morremos? Voltamos ao lugar de onde partimos, aquele pequeno local onde tudo é tão pacífico e minúsculo. Acabamos por nos transformar nas histórias que criamos e em todas as outras que poderíamos ter acrescentado à nossa vida e que a terra deixou por acontecer. O infinito e o tempo acabam fundidos como a luz e deixamos de nos importar, de interromper os outros. A vida passa e o tempo engole as décadas como dias. Continuo sem fazer a mínima ideia do que escrevinho neste chão. As palavras sucedem-se no vermelhão confuso, dedicado a uma eternidade sem razão, como a própria vida e isso é simpático. Conto as camadas de palavras, conto as vezes que já passeei com o meu sangue por aqui. Não sei o que se passa comigo. Sinto-me desfazer como se mais um pressentimento se aproximasse, isso e mais esta pavorosa dor no peito que me consome as entranhas e a alma desde há dias. Não me conseguirei aguentar firme por muito mais tempo. Durmo como um insecto. Não me livro desta ideia fixa que os Libertadores são apenas fruto da minha imaginação delirante. A destruição da cidade e os milhares de mortos semeados foram ideia minha. Alimentada pela minha doentia paixão pela morte e o sofrimento, os Libertadores saltaram por cima do meu contentamento e roubaram-me a ideia como fruta. Chorei de raiva e dor pela ousadia desses miseráveis e gritei o mais alto que pude durante uma eternidade. Corri atrás deles sem saber os porquês dessa lição, senti que tinha cometido uma atrocidade de bíblicas proporções. A vontade foi a de, logo ali, terminar com tudo. Olhei mais uma vez para o veneno, para os venenos, pois eram mais de três. Retirei o livro da bolsa e comecei a ler encostado à cama. A morte, é mesmo possível morrer, fazer da inimiga uma aliada. Continuar com a sorte de continuar a viver mais do que uma vida. Os venenos ali na segurança do meu instinto e as minhas desastradas tentativas de pôr fim a tudo a acabarem com as invejas de milhares de Lisboetas, todos os que se sepultaram pela força dos Libertadores nas ruelas e calçadas da cidade. Um dia a verdade será resgatada das profundezas do Inferno. As lágrimas já não me limpam a face, já não deslizam com a mesma abençoada fluidez. Os joelhos doem-me, a porta fecha-se. Daria a minha vida inteira por uma verdadeira folha para escrever. Lembro-me de uma manhã ter sentido o cheiro de uma promessa em que a felicidade vinha agarrada, instante esse que durou o tempo de um abraço. Fugi em busca de uma outra coisa, uma outra qualquer coisa que me proporcionasse um sabor mais amargo. Vi o pensamento desaparecer como o fumo das fogueiras, corri como esse fumo até à cavalariça. Saltei para a primeira das montadas que ali se encontrava preparada e dei ordens ao cavalo para desaparecer. O meu estado já era difícil de entender, já aí tinha tentado fazer da morte minha aliada por uma vez. Não descobri o amor porque destruía tudo com estranhas formas de ingratidão. Luto agora sozinho nesta escuridão. Vivo com o pesadelo dos Libertadores, vivo com esta estranha humanidade que ainda sinto vibrar dentro de mim e escrevinho todas as palavras com o sangue que atapeta o chão e que forra as paredes desta cela. Sobrevivi ao desastre que julgo ter feito acontecer. A porta abre-se mais uma vez, abre-se com um atraso imenso. Demoraram décadas para me vir resgatar. Demorarão outras tantas para decifrar os sonhos que pintei ali dentro. Não sei o que tenho mas este estranho pressentimento voltou para se colar ao peito, ao estômago e ao receio. Tapam-me a cabeça com um imenso gorro escuro feito de uma sarja que quase me sufoca. As lágrimas voltaram a colar-se ao rosto. Parece que, afinal, a amiga morte sempre veio para me fazer companhia mais cedo. Prendem-me as mãos com força atrás das costas. Não consigo decifrar os ruídos. Batem-me por mais de cem vezes em todas as partes do corpo com violência. Ouço apenas as vozes da ira. Os Libertadores vieram finalmente para me abraçar, como o amor. Peço-lhes para me contarem uma história, para me contarem uma das histórias que poderiam ter sido minhas, uma outra que não esta. Sinto finalmente medo. Receio que não possa fazer parte de mais nenhuma festa.

Acenderam-me as asas.

O forte colar com que me embelezaram o pescoço trouxe-me novamente para junto de ti.

Aqui eu sou feliz!

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