domingo, 9 de janeiro de 2011

QUINTO ACTO - continuação I

Lisboa apoia-se novamente no seu amigo Tejo. Quando o mar o ergueu, atirando-o contra as paredes destruídas das suas habitações, ao encontro das ruelas e das azinhagas por onde os habitantes se tentavam proteger, o rio chorou lágrimas desesperadas pelas vítimas que causou sem intenção. As marés inimigas cresceram como montanhas de água salgada, invadiram e empurraram as mais doces águas do Tejo sem que este lhes pudesse fazer frente. Deixo a palma de minha mão refrescar-se nas águas transparentes deste amigo, sem o qual a cidade não seria a mesma. Lefébvre adivinhou a minha tristeza e não falou desde que o cheiro da cidade grande se fez sentir. É impossível voltar atrás, fazer parar o tempo ou pensar que os dias de Santarém se voltarão a repetir. O que mais custa é saber isso, muito mais do que voltar de novo a olhar para esta cidade massacrada pela maldade. O que aqui aconteceu não foi deste Mundo, e não foi assim que escreveram a nossa morte. Naqueles momentos de tristeza indescritível, uma incrível fortuna estava escondida nos seus muros destruídos sem que eu alguma vez pudesse suspeitar. As palavras de Lefébvre salvaram-nos e fizeram-nos acreditar em coisas muito estranhas. Os dias e os meses juntam-se e limpam memórias menos boas, mas também tentam roubar-nos os dias deliciosos e doces de Santarém, esses dias em que acreditei tudo ser possível. Nos rostos das pessoas continuam vincadas as rugas do medo e frustração. Algumas igrejas da cidade foram os primeiros edifícios a ser escolhidos para se dar início à reconstrução, antes mesmo do palácio real. Ouve-se dizer, e disso já se faz humor, que o rei ficou com tanto receio de paredes feitas de pedra, de telhados e de varandas que pudessem ceder e enterrá-lo vivo como fez com milhares de Lisboetas apanhados de surpresa, que apenas deseja habitar em palácios construídos em tecido. Lefébvre volta à cidade, às suas responsabilidades, ao que será do novo hospital, aos horrores das horas, dos dias e das semanas inteiras dedicadas na nobre tarefa de curar. Conseguiram-se manter em estado razoável as mais importantes paredes da casa, isto se pensarmos na calamitosa paisagem que avistamos do que ficou da cidade. Apesar de tudo estar limpo, anormalmente calmo para o que aqui se passou há tão pouco tempo, o tempo parece não passar do mesmo jeito. Piso o chão de uma maneira diferente. Cada passo é pensado, cada olhar é lançado para o interior das salas e dos quartos com um receio de que tudo possa voltar a acontecer a qualquer instante. Não irei conseguir dormir nas primeiras noites. Se ao menos tudo pudesse voltar a ser como depois da chegada de Lefébvre a Santarém depois da desgraça, se ao menos tudo pudesse voltar a ser como aí aconteceu. A cidade, a dada altura da sua existência, deixou-se abater como um castelo de cartas, deixou-se cair, quis viver por mais uns séculos mas de uma outra forma. De alguma maneira desejou a sua ruína, desejou que lhe ficasse para sempre colada a lembrança da tragédia. As novas perspectivas descobrem-se mas já sem histórias de fantasmas, sem estátuas destruídas, sem mulheres, homens ou crianças a derramar as suas mágoas, acreditando que ficariam mais inteligentes se a morte não os visitasse tão cedo, pedindo desculpas a todos os que ficaram para os chorar. A cidade enganou-os. Abraça um império que aqui começa e que sente crescer, continua a passear-se ao longo deste rio famoso que lhe faz companhia e que lhe pertence. Diz-nos que nos deseja como a mais nenhum ser humano. A luz é a mesma e desenha as sombras das colinas que não cederam aos abalos e que continuam a embelezar a paisagem circundante. Chegámos e já sinto Santarém como se tivesse apenas sido um sonho seguido deste atabalhoado despertar. Decido fechar os olhos, decido fazê-lo para ver se as coisas não serão ao contrário. A minha desesperada vontade, a viagem de volta à cidade semi-destruída, a solidão e a revolta amargurada que me espera, os receios, o pavor que sinto só de imaginar que tudo pode voltar a acontecer, tudo isto é “o” pesadelo. Quando acordar estarei de novo abraçada a ti, meu doce Lefébvre, com o doce mel do prazer a envolver-nos, a colar os nossos corpos que se deixaram embalar pelos aromas delicados da Primavera que nos chegam lentamente das lezírias mais a Oeste. Daqui também se vê o Tejo a espreguiçar-se na paisagem com a mesma ternura com que os teus beijos me acordam de vez para tanta Felicidade.

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