domingo, 2 de janeiro de 2011

QUARTO ACTO - continuação XIV


Eternas festas para cobrir os silêncios onde não é necessário fazer nada, apenas estar. Quis escrever acerca de tudo, tudo o que existe no Mundo, tudo, e não sou capaz, falhei sempre que me encontrava à beira de terminar algo com sentido, falho quando o que desejava era aproximar-me da razão. Pego no pouco sangue que me resta, e sinto-me zangado ao pensar na morte com satisfação. Não é, afinal, o que todos fazemos, pensar, de quando em vez, nessa fantástica sobremesa? Voltarei quando os relógios tocarem outra hora que não esta, me surpreenderem com uma outra vida, outra alma, outra função. Os Libertadores, precisamente aqueles que mais poderiam ajudar, decidem o que muito bem entendem esquecendo-se de nós. Encontram-se uns com os outros em segredos, depois das contas e das esperas, depois das estimulantes conversas em que juram tudo destruir. Não é muito difícil para eles, é apenas mais uma das estranhas maneiras com que nos mostram a sua dedicação e amor. Nem as flores dos cemitérios nos permitem acreditar numa outra emoção, e depois perguntamos porque é que tudo corre tão mal. As vidas não correm bem e só a maravilhosa morte faz, de quando em vez, especial companhia. É uma guerra, uma certeza, a única certeza, como os livros que acabei a escrever nestas paredes, neste chão húmido que transformei em folhas. Pedi tanto a estes médicos carcereiros, sempre fiz o que quis com a minha vida, como se fosse mais um orgulhoso Libertador, outro incapaz que não sabe lidar com esta miserável rotina. De que me queixo se, afinal, sempre me senti melhor sozinho, se a ilusão da pertença acabou por me transformar no bárbaro monstro de que todos passaram a falar, até que a insustentável dose de loucura me arruinou a humanidade, até que ao meu irmão e ao rei não restaram mais alternativas que não esta. Julguei que nunca mais o fariam. Tanto atraso desprezível nas forças que pareciam não lhes nascer nas palavras. Salvar o que de mim restava, com essa ordem que acabou tardiamente por ser dada e que me atirou para esta morada peçonhenta e sórdida, como os meus entendimentos. O que acontece quando morremos? Voltamos ao lugar de onde partimos, aquele pequeno local onde tudo é tão pacífico e minúsculo. Acabamos por nos transformar nas histórias que criamos e em todas as outras que poderíamos ter acrescentado à nossa vida e que a terra deixou por acontecer. O infinito e o tempo acabam fundidos como a luz e deixamos de nos importar, de interromper os outros. A vida passa e o tempo engole as décadas como dias. Continuo sem fazer a mínima ideia do que escrevinho neste chão. As palavras sucedem-se no vermelhão confuso, dedicado a uma eternidade sem razão, como a própria vida e isso é simpático. Conto as camadas de palavras, conto as vezes que já passeei com o meu sangue por aqui. Não sei o que se passa comigo. Sinto-me desfazer como se mais um pressentimento se aproximasse, isso e mais esta pavorosa dor no peito que me consome as entranhas e a alma desde há dias. Não me conseguirei aguentar firme por muito mais tempo. Durmo como um insecto. Não me livro desta ideia fixa que os Libertadores são apenas fruto da minha imaginação delirante. A destruição da cidade e os milhares de mortos semeados foram ideia minha. Alimentada pela minha doentia paixão pela morte e o sofrimento, os Libertadores saltaram por cima do meu contentamento e roubaram-me a ideia como fruta. Chorei de raiva e dor pela ousadia desses miseráveis e gritei o mais alto que pude durante uma eternidade. Corri atrás deles sem saber os porquês dessa lição, senti que tinha cometido uma atrocidade de bíblicas proporções. A vontade foi a de, logo ali, terminar com tudo. Olhei mais uma vez para o veneno, para os venenos, pois eram mais de três. Retirei o livro da bolsa e comecei a ler encostado à cama. A morte, é mesmo possível morrer, fazer da inimiga uma aliada. Continuar com a sorte de continuar a viver mais do que uma vida. Os venenos ali na segurança do meu instinto e as minhas desastradas tentativas de pôr fim a tudo a acabarem com as invejas de milhares de Lisboetas, todos os que se sepultaram pela força dos Libertadores nas ruelas e calçadas da cidade. Um dia a verdade será resgatada das profundezas do Inferno. As lágrimas já não me limpam a face, já não deslizam com a mesma abençoada fluidez. Os joelhos doem-me, a porta fecha-se. Daria a minha vida inteira por uma verdadeira folha para escrever. Lembro-me de uma manhã ter sentido o cheiro de uma promessa em que a felicidade vinha agarrada, instante esse que durou o tempo de um abraço. Fugi em busca de uma outra coisa, uma outra qualquer coisa que me proporcionasse um sabor mais amargo. Vi o pensamento desaparecer como o fumo das fogueiras, corri como esse fumo até à cavalariça. Saltei para a primeira das montadas que ali se encontrava preparada e dei ordens ao cavalo para desaparecer. O meu estado já era difícil de entender, já aí tinha tentado fazer da morte minha aliada por uma vez. Não descobri o amor porque destruía tudo com estranhas formas de ingratidão. Luto agora sozinho nesta escuridão. Vivo com o pesadelo dos Libertadores, vivo com esta estranha humanidade que ainda sinto vibrar dentro de mim e escrevinho todas as palavras com o sangue que atapeta o chão e que forra as paredes desta cela. Sobrevivi ao desastre que julgo ter feito acontecer. A porta abre-se mais uma vez, abre-se com um atraso imenso. Demoraram décadas para me vir resgatar. Demorarão outras tantas para decifrar os sonhos que pintei ali dentro. Não sei o que tenho mas este estranho pressentimento voltou para se colar ao peito, ao estômago e ao receio. Tapam-me a cabeça com um imenso gorro escuro feito de uma sarja que quase me sufoca. As lágrimas voltaram a colar-se ao rosto. Parece que, afinal, a amiga morte sempre veio para me fazer companhia mais cedo. Prendem-me as mãos com força atrás das costas. Não consigo decifrar os ruídos. Batem-me por mais de cem vezes em todas as partes do corpo com violência. Ouço apenas as vozes da ira. Os Libertadores vieram finalmente para me abraçar, como o amor. Peço-lhes para me contarem uma história, para me contarem uma das histórias que poderiam ter sido minhas, uma outra que não esta. Sinto finalmente medo. Receio que não possa fazer parte de mais nenhuma festa.

Acenderam-me as asas.

O forte colar com que me embelezaram o pescoço trouxe-me novamente para junto de ti.

Aqui eu sou feliz!

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