sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

QUARTO ACTO - continuação XIII


Não desejo repetir a experiência, pelo menos não tão cedo. Sentir-me-ei mais protegido se partir para longe destas imagens e desta multidão. Tentei perceber esta estranha pertença mas continuo sem conseguir entender a verdadeira dimensão do segredo. A seguir aos sorrisos dos antepassados surgem os arrepios, as dores e uma dificuldade em processar correctamente as informações que os sentidos vão comunicando ao meu cérebro aturdido. Tudo acontece à frente dos nossos olhos, respeitamos o que nos é dito e comunicado, crescemos com os segredos que se deram a entender. Foi com brusquidão gelada que as memórias resgatadas da infância descansaram o meu corpo. Sinto-me agora mais completo. Não temo as conversas, não temo as ligações a este passado que tanto me inquietava e me alimenta, não temo as consequências e as dores das noites mal dormidas, dos desesperados momentos de todos aqueles que me acompanharam nas visitas a estas memórias, não temo o futuro pois este passado aquece a minha vida. Seguro a mão de Constança ainda trémulo. Seguro as passadas na descida destes passeios tão familiares. Vejo o sorriso de tantos turistas transformarem-se no rosto dos antepassados que se despedem de mim uma última vez. O tempo passa muito lentamente e a curta viagem de regresso ao carro parece durar uma pequena eternidade. Descansamos a derreter um doce gelato à sombra do muro da cidade antiga com imenso prazer. As nossas mãos continuam unidas enquanto agarramos este instante para todo o sempre. Lançamos um último olhar para estas paisagens, para estas paredes familiares, para este inseguro local do meu passado. Descansaremos as emoções com o jantar que nos aguarda no belo restaurante do hotel Napolitano.

- Mudei muito. Revivi de novo, com uma dificuldade que não esperava, os mesmos desígnios da minha infância. Faltava esta etapa para conseguir derreter a sensação estranha que escondi dentro de mim desde esse longínquo dia em que por aqui passeei. É impressionante. Foi difícil encontrar o momento, o instante certo para me reencontrar com este passado, com esse meio sonho, meio realidade.

Constança olha para mim ao mesmo tempo que saboreia o delicioso gelato de nocciola e fragola, ri-se com os seus olhos imensos e cristalinos que imediatamente me ajudaram a entender que tudo valeu a pena, tudo, e sinto-me bem melhor agora que o seu sorriso me iluminou a revigorada esperança.

- Conseguimos ganhar bem mais nesta viagem do que aquilo que poderíamos alguma vez imaginar. Como acabámos de ver, mudar de vida é possível se tivermos a coragem de nos reconciliarmos com o passado e os italianos são verdadeiros peritos nessas matérias. E a prova, se necessário fosse, encontra-se aqui na minha mão. Povo que consegue fazer gelados assim tão eternamente perfumados e perfeitos, consegue tudo.

As palavras de Constança tiveram o sortilégio de voltar a desenhar por segundos um sorriso de menino no meu rosto. Aquele primeiro encontro que aqui tive há décadas deixou neste exacto momento de me atormentar.

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