terça-feira, 29 de setembro de 2009

PRIMEIRO ACTO - continuação IX


São os libertadores das profundezas que delas se escapam para vir salvar o mundo. Invisíveis e poderosos destroem tudo ao sair das entranhas da terra. Onde se esconderam todos estes anos? Vieram-me visitar tantas e tantas vezes à cela durante a noite, durante as madrugadas em que gemia desesperado por um auxílio. Uma voz me ia avisando, depois duas e três e depois milhares, que todos iríamos ser julgados e abandonados, lançados como pequenos grãos de nada soprados pelo vento gelado que vagueia solitário no dia do juízo final. Não dormi, não dormi, não durmo agora, não sinto frio apesar de tudo. Tudo pega fogo. É como já foi, como já foi. E depois ninguém consegue apagar as línguas amarelas e vermelhas que querem chegar aos céus, que querem voltar para junto de quem as enviou, que lhes envia as almas de todos aqueles que já matou. E os senhores médicos empurraram-me e a todos os outros também. Empurraram-nos e indicaram o caminho da luz, do dia em liberdade, em liberdade, e como prova de que não minto, de que não minto, os libertadores das profundezas arrancam as caras às casas e às igrejas, atiram os telhados, as janelas e as portas ao chão, arrancam todas as pessoas lá de dentro para lhes lançarem os restos das paredes para cima. E nós fazemos o que os bons senhores médicos nos disseram. Ficamos sossegados no centro da praça a assistir ao trabalho dos libertadores. E este ruído estranho que continuo a escutar, este ruído acaba com o resto das minhas forças. Este martelar que ouço e que se repete mil vezes sem nunca parar, que se repete como se as obras nunca terminassem dentro das minhas ideias. Agora ficamos aqui à espera dos senhores invisíveis que nos vêem buscar. Até alguns dos senhores médicos já aqui se encontram à espera deles. E que dia de festa, e são tantos os que nos vieram visitar! A praça tem tanta gente como no dia em que o hospital pegou fogo. As caras das pessoas que vieram ver a cor alaranjada da noite eram bonitas. As caras que estão aqui deitadas ao pé de nós são diferentes, são caras que temem os libertadores, que temem os libertadores, e como não os conseguem ver, como só lhes sentem a força que tudo destrói, que tudo limpa e desmancha, não mostram a alegria dos que nos visitaram na noite do incêndio. Nas noites em que estes senhores invisíveis me fizeram companhia, ensinaram-me tudo o que de mais importante havia para ensinar, sabem mais sobre todas as coisas do que todos os reis ou rainhas deste mundo. Contaram-me tudo acerca deste dia em que juntos iriam sair das profundezas da terra para nos vir libertar. Só vai ser possível perceber a nossa verdadeira dimensão pelas forças que serão libertadas ao sairmos das nossas habitações escondidas, disse um dos libertadores numa das muitas visitas que recebi. Avisei o Paulino e raspei na parede com as minhas unhas as histórias todas que me foram segredadas, e quantas mais unhas gastava, mais noites e dias me deixavam fechado na solidão gelada dessas únicas companhias. Arranquei os pedacinhos todos na procura das palavras, na procura das palavras, até que no escuro, com os olhos quase cegos, uma dessas noites, os libertadores se tornaram perfeitamente visíveis. Foi assim que os comecei a conhecer melhor, foi assim que me contaram todas as peripécias deste dia, e quanto mais as explicava aos senhores médicos, quantas mais noites e tormentosos castigos me eram servidos em resposta, até que me deixei disso e cortei a língua para não mais ter vontades de contar. Mas deixar de escrever com as unhas e com o sangue dos meus dedos, isso não consegui evitar. E eis que o dia chegou, e que sinto um pouco de acalmia nas marteladas, nas vozes e nos castigos. São numerosos os que hoje se reuniram para nos vir salvar. A qualidade do seu trabalho e da sua caminhada fica marcada pelo céu que perde a cor, pelo rio que fica seco e por uma cidade totalmente desmoronada. É só desta forma que o trabalho dos libertadores pode ser correctamente realizado, só desta forma. Apagar, tudo apagar, destroçar, despedaçar, destruir, aniquilar, para que se pense a desgraça, se equacione a miséria e a infinita insignificância daquilo que somos, daquilo de que somos construídos, de qual o nosso verdadeiro lugar neste mundo, nesta cidade e nesta praça. E se as águas do rio lhe tinham sido roubadas, também a vontade em lhe voltar a encher as entranhas foi rápida. Tão aniquiladora como todas as outras forças acordadas na saída dos libertadores das suas casas escondidas, também a forma como encheram o leito do rio com as suas águas provocou mais uma intensa demonstração do seu imenso poder. Saíssem sons decentes pela minha boca mutilada, que daria graças e muitos vivas pela glória deste dia. Sempre louco, sempre louco, o Ramiro velho não tem como ser tratado, é deixarem-no apodrecer para ali escondido, não fossem os seus ricos e poderosos patronos, e já teria aparecido morto na cela uma dessas noites de ataques violentos e de constantes massacres e marteladas na cabeça do enfermo. E sempre as visitas repetidas dos libertadores a contarem-me baixinho e no meio da maior das barafundas, como é que tudo acontece, como tudo se passa, e como tudo é, afinal, bem diferente daquilo que os mais doutos e instruídos consideram. Vão agora poder explicar tudo muito bem uns aos outros. Mas como, se não sabem nem imaginam que tudo se deve a estes gigantescos e poderosos libertadores que a todos nós, afinal, vieram salvar!

Berrarei já a toda a multidão aqui reunida uma centena de vivas aos libertadores!

terça-feira, 22 de setembro de 2009

PRIMEIRO ACTO - continuação VIII

Desconhecia esta minha necessidade de vestir a pele de soldado e aventurar-me sem pensar nesta perigosa missão de resgate. As paredes do hospital ameaçam ruir a qualquer instante. Nos tectos as vigas continuam a ser agitadas e pode-se olhar o céu pelos enormes buracos causados na estrutura danificada do telhado. Vê-se muito fumo, o ar está pesado e respiro com grande dificuldade. Parte da ala norte para lá do corredor principal que dá acesso ao grande claustro está a ser consumida pelas chamas. Avanço como um louco destemido, meio cego meio incrédulo, como se não fizesse parte desta triste situação. Empurro, puxo e gesticulo, vou bradando e ordenando a todos os que se conseguem movimentar por entre esta desgraça, numa voz já rouca mas ainda poderosa, que saiam, que corram na direcção das janelas e não das alas ou dos corredores, pois tudo ameaça tombar ou ser consumido pelas chamas. As janelas dão acesso imediato ao exterior do edifício. A altura a que se encontram do chão não é exagerada e vou avisando os mais capazes que devem auxiliar os debilitados, os enfermos, mesmo à custa de pernas ou braços partidos, isso é maleita menor numa vida que sai poupada. Apenas se encontram aqui os mais incapazes. Os doentes e todo o pessoal que se encontrava no piso superior desta ala hospitalar deixaram de poder descer pela escadaria principal que lhe dava acesso. Os últimos degraus transformaram-se em completa ruína durante o violentíssimo segundo estremeção. De lá de cima até onde me encontro vão mais de dez ou doze metros de um espaço vazio e decadente. Mais de uma vintena de olhos aflitos suplicam-me sem palavras por uma qualquer ajuda que os possa vir a retirar daquela situação. Desapareceram todos subitamente na direcção oposta à do enorme vazio arquitectónico, pois o tecto sobre eles começou a produzir um violento ruído dando aviso sério da sua breve derrocada. Nunca mais os vi. Por instantes fiquei com a sensação que aquelas almas me vão perseguir e povoar os sonhos para toda a minha existência caso venha a sair com vida deste tormento. Nada se pode fazer. Se saltarem lá de cima a queda seguramente os matará. Tento imaginar estratagemas para tentar salvar mais alguns destes pobres desgraçados mas só consigo carregar um corpo de cada vez. Não sinto nenhuma dor, nem sequer sinto o meu corpo. Estas memórias são apenas imagens, é tudo consumido de rajada pelo sentido da visão. São apagados os toques, os cheiros, os sons e os sabores, apesar de, por instantes, sentir na língua um travo amargo muito intenso que desaparece tão rapidamente como por lá foi semeado. Tudo se passa com a duração da eternidade. A rapidez com que tudo acontece é filtrada pela mente e parece que o tempo é transportado nas costas de um jumento velho e preguiçoso. E estas palavras não as consigo controlar. Nascem por via de uma necessidade incontrolada que tenho de ir falando comigo mesmo mentalmente. Assim mantenho-me atento, observo todos os detalhes e todos os espaços perdidos onde algum sobrevivente possa estar refugiado a necessitar de ajuda. Servem também para me iludir, para me fazer sentir capaz e forte nestas tarefas, para que não venha a sucumbir por debaixo de uma viga em chamas ou de uma parede arruinada. O que mais posso fazer? Queria ser como um tigre poderoso, poder saltar ligeiro por cima destas fogueiras, trepar pelas vigas em chamas já tombadas e saltar ligeiro até ao topo do edifício para poder resgatar tantos quantos o meu poderoso corpo de felino conseguir aguentar. A pele listrada serviria de escudo protector e a cor laranja lembraria às labaredas altivas que por elas estaria a passar o rei das chamas. Nada me poderia travar nessa demanda. Ganho uma inusitada esperança ao pensar em mim com um enorme gato selvagem. Ao contrário de tudo o que seria razoável, ao contrário daquilo que o meu pesado corpo me vai avisando, só me consigo imaginar como esse rei asiático e sinto uma vontade incontrolável em avançar por estas vigas em chamas até alcançar o primeiro piso do edifício, custe lá o que custar. Não é normal, mas tal como há instantes, não sinto o peso do meu corpo. O espírito vai-me avisando dos perigos mas simultaneamente alimenta-me as acções como se o Lefebvre que sou tivesse agora uma pele alaranjada mesclada com os matizes negros das suas listras. Subo pelas vigas em chamas, as que ainda são capazes de suportar o peso de um homem adulto. Ignoro o fumo e as manchas avermelhadas que consomem o negrume de algumas madeiras mais frágeis já transformadas em carvão. Com grande frieza e calculismo, grito do topo de uma das vigas para o piso superior de onde há instantes tantos olhos me miravam. Trinta segundos de berros numa gritaria descomposta que se deve ter escutado no próprio inferno. Dois senhores aparecem, olham-me com as mesmas expressões desalentadas e sem pingo de esperança. Grito-lhes para que recolham o mais rápido possível todas as camas, colchões e móveis que consigam encontrar. Que os atirem aqui para baixo uns por sobre os outros até que fique uma pirâmide de detritos e de objectos capaz de aligeirar a dimensão cruel desta abertura. Se por cima dos móveis lançarem vestuário e alguns colchões podem aliviar a queda e promover assim a salvação para alguns deles. O tempo está agora, como sempre esteve desde o início do incêndio, contra todas estas tentativas de resgate. Nos seus olhos percebi a força que as minhas palavras lhes transmitiram. Os barulhos que se escutaram passados breves instantes, vindos do topo do patamar onde a escadaria deixou de existir, davam a entender que estavam já a arrastar material para a função. A minha ajuda de tigre acabou por ser apenas esta. Mais seria humanamente impossível. Não posso manter-me neste lugar por muito mais tempo. Desço novamente em direcção ao chão onde já se começam a amontoar toda a espécie de móveis e tralhas, camas e demais mobílias, móveis que chovem no meio do chão atirados esperançosamente por um grupo de doentes e dois auxiliares que estão encurralados lá em cima à mercê das chamas que alastram a quase todo o edifício. Arrisco-me a ficar por debaixo dos telhados que tombam e do mobiliário voador. Essa sorte apareceu-me agora nas ideias como sendo uma coisa doce e verdadeiramente sublime. É com felicidade que vejo alguns destes doentes do piso superior atirarem-se para cima da pequena montanha de mobiliário, lençóis, colchões e até muitas trouxas de roupa suja que conseguiram amontoar naquele espaço. Alguns escapam maltratados dessa queda. Ainda assim foram mais de quatro ou cinco os metros que ficaram por preencher. Mas se cambaleiam, se gritam de dor e gemem com os braços e as pernas que acabaram partidos nesses voos, é porque estão vivos e dão sinais bem claros e audíveis do seu sofrimento. Uma lágrima e mais outra, agora de contentamento, correm-me pelas faces sujas ao ver este grupo de seres humanos escapar a um trágico fim por via da violência do incêndio que consome agora o espaço de onde acabaram todos de saltar.

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segunda-feira, 21 de setembro de 2009

PRIMEIRO ACTO - continuação VII

É terrível o que se está a passar lá em baixo. As minhas pernas continuam tão fracas. Contrastam com as dores que se fazem sentir intensas no meio da minha alma. São capazes de a destruir. O meu senhor Lefebvre estará vivo? O que será desta nossa vida sem restar de pé uma única parede, sem que as águas engulam de um só trago os restos dos corpos destroçados, alguns ainda cheios de vida mas presos contra as suas vontades no meio das pedras e do entulho que os tapa como uma colcha de morte. Vejo nos rostos das pessoas, destes homens e mulheres enérgicos e corajosos tanto desespero e tanta dor. Cresce em nós a impossibilidade de obter resposta à pergunta que todos lançam aos céus sem mover os lábios, sem libertar um único som que seja nessa função. Porquê Deus Nosso Senhor Todo-poderoso, porquê? Será porventura possível teres abandonado tantos devotos, teres marcado este dia tão especial com a marca mais fatal das forças do Demónio? Deixá-lo tomar conta desta nossa cidade para dela fazer um joguete, para despedaçá-la a seu bel-prazer, para inundá-la lançando pelas suas ruas, vielas, praças e escadarias um mar embrutecido que tudo engole na maior das fúrias e sem qualquer aviso? Afinal és um Deus pouco poderoso, um aliado vil desse outro destrutivo monstro que se entretém a derrubar Lisboa pedra a pedra, fachada por fachada, que mata e semeia pelas ruas da cidade milhares de cadáveres e uma imensidão de ruínas. O povo está derrotado, o Mundo inteiro tem de saber desta Tua traição. Afinal de contas que Deus és Tu que nos abandonaste, que te esqueceste deste povo honrado que tanto te estima e venera? Nada poderá ser como já foi. A dor por Vós aqui derramada fará memória. Ninguém poderá esquecer este dia em que Deus faltou a todo um povo, a toda uma cidade, a todo um País. Ninguém, ninguém! Para qualquer dos locais para onde olhe, desde a ribeira, desde o cais, desde as torres do palácio por onde os barcos passam arrastados e se esmagam contra as paredes do edifício, transportados às costas por uma segunda onda gigantesca que avança pela cidade até quase ao Rossio, até quase ao Hospital de Todos os Santos.

Tenho de ganhar a coragem necessária para descer até aos infernos que ali em baixo se agitam. Lefebvre não pode estar morto, não seria justo. O seu amigo médico por algum motivo nos alertou antes desta catástrofe se abater sobre a cidade. Esse é outro estranho desígnio para o qual nem vale a pena tentar arranjar explicação. Quantas vezes também nos meus sonhos se parecem antecipar acontecimentos com o peso gigantesco e quase cruel do realismo. São tantas as noites passadas em claro após pesadelos dessa espécie. São tão reais que mesmo depois de acordada me parece estranho encontrar-me do lado de cá dessas histórias. Muitas são as vezes que me vejo mais velha do que sou, ou a passear por locais que desconheço mas que de tão familiares não me causam qualquer estranheza. Ou como daquela vez em que, alagada em suor, quase vim para a rua descontrolada por pensar ser eu capaz de voar, tamanha a leveza e a rapidez com que senti o meu corpo levantar voo e passear ligeiro por cima das árvores, ora descendo a pique ora subindo acelerado na direcção das nuvens brancas mais distantes. Ou de uma outra em que fui capaz de descrever todos os movimentos que Lefebvre executou quando tratou dos muitos feridos do grande incêndio que destruiu parte do hospital agora novamente em ruínas. Eu, que nunca me atrevi sequer a colocar um pé que fosse nos degraus que dão acesso à capela do edifício, quanto mais conhecer os procedimentos, as formas ou os gestos necessários para auxiliar moribundos ou enfermos. E nesse estranho sonho, acompanhava o meu Lefebvre na sua missão de auxílio, limpando e preparando os doentes com grande mestria e à vontade, cozendo, sarando e tratando das diferentes fases dos tratamentos e das operações como se em toda a minha vida não tivesse eu feito outra coisa. Esta misteriosa capacidade dos sonhos, esta misteriosa capacidade que possuem de desembrulhar mensagens ou histórias de coisas que parecem estar para acontecer, é algo que todos nós sentimos mas que preferimos manter escondida na maior das seguranças. No fundo de quem somos, por vezes, as vontades e os receios misturam-se como um guisado de imagens e sabores secretos que explodem destas maneiras tão reais, tão intensas, em muitos de nossos sonhos. E graças ao seu misterioso poder, esse poder que se revelou nesta madrugada ao médico ilustre amigo de Lefebvre, aqui estou viva para testemunhar esta tragédia. Viva e assustada como uma criança perdida. Se alguém duvidava que tudo pode desaparecer e mudar no curto espaço de segundos, o dia de hoje servirá para todo o sempre como prova do poder inimaginável das circunstâncias divinas e das suas sagradas combinações.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

PRIMEIRO ACTO - continuação VI


As pétalas destroçadas que do meu coração caem derramam no chão o vermelho da sua dor. Estas imagens e estas evidências fazem-me crer na destruição do próprio paraíso à qual nunca pensei assistir. É complicado manter-me lúcido numa paisagem como esta. Não controlo as lágrimas que silenciosamente me turvam a visão. Servem para aliviar a agressão daquilo que se observa. Nenhum Santo por aqui fez a sua aparição, nenhuma alma por cá se sente protegida. E não mais descobri Lefebvre no meio desta hecatombe. Há quem corra desgovernado por entre a destruição, sem promover uma única palavra. Correm seguramente para sentir que esse acto lhes trará aqueles que procuram, lhes dará de novo a manhã serena conforme nasceu neste dia, e não este momento transformado em negrume e destruição. Não sabemos o que fazer. Para qualquer lado que nos viremos são mortos e mais mortos até onde a vista alcança. Loucos desvairados a aliviarem as pertenças de muitas vítimas e cadáveres. Almas perdidas, mulheres e crianças, muitas crianças, a procurarem por um entendimento em forma de oração, de ocupadas formas de não se deixarem levar pela loucura e pelas terríveis sensações que a todos nós perturbam. O que se passa é que a mente dá sinais de abandono, quer desaparecer para um outro tempo, um outro lugar. Depois volta, dá sinais de regresso, diz aos resistentes, aos que foram escolhidos para ficar, que não é uma doença, não é uma esperança, nem uma precoce alucinação, nem um castigo, nem um lamento, é a força invisível da humana resistência à morte que nos transforma a alma para resistir ao que se sente e vislumbra, ao que se cheira e ao que se adivinha. Os que tudo perderam são mais de metade dos habitantes desta cidade, seguramente bem mais do que metade. Poucas são as zonas que resistiram ou resistem aos tormentos. E os tratamentos que serão necessários para voltar a dar vida à bela capital do reino durarão mais de metade da vida dos que tudo perderam neste desafortunado dia. Precisaremos todos uns dos outros para levantar estes restos e voltar a por de pé os sonhos dos Lisboetas. E o trabalho que até aqui me trouxe, as tarefas que me estariam destinadas no Hospital parcialmente destruído e que as chamas consomem, foram agora mais do que acrescentadas. Cresceram como as questões crescem ao olhar ao meu redor. Foi roubada a vida da cidade. Abriram-lhe o cérebro para lhe retirar a vontade de viver. Sobreviverá Lisboa a este fracasso? Terá a coragem e a força para se levantar destas ruínas, destes incêndios, deste mar que a deseja engolir e arrastar até ao lodo escondido no fundo dos oceanos, até aos infernos para onde parece desejar arrastá-la sem piedade? Os olhares de muitos de nós alcançam apenas o infinito. Atabalhoadamente atravessamo-nos aos corpos e aos rostos de cada um fitando aleatoriamente um pretenso infinito com os olhos carregados de lágrimas.

Manuel Constâncio e Mestre Dufau acabam de se juntar a mim tensos, brancos, com o peso da incredibilidade carregado nos olhos e nos corpos. O maior local de crime jamais projectado por um criminoso aqui ficou servido. Uma cidade inteira vitimada pelas indecifráveis forças dos Infernos. Metódicas, eficientes, secretas e letais como só essas forças conseguem ser, confirmaram-se em Lisboa para que todo o Mundo acorde de vez e não mais duvide da sua existência.

Uma mensagem servida com a delicadeza da machadada de um carrasco!

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domingo, 6 de setembro de 2009

PRIMEIRO ACTO - continuação V


O medo avança pelas ruas transformadas num mar de detritos, como uma montanha aquática de corpos afogados e despedaçados, de almas destroçadas. É um caminho perdido que transporta a morte pelo meio da cidade arruinando a pouca réstia de esperança que alimenta muitos dos sobreviventes, que me alimenta a mim. Vai-se a alma destruindo com a mesma rapidez com que cai a cidade.

Qual será o ponto de paragem desta visão, deste pesadelo suspeito que apenas me foi dado a conhecer numa ínfima parte e que agora se estende como a maior e mais trágica de todas as óperas já compostas? Na minha cabeça surge intensa a maior de todas as dúvidas. Só posso estar a sonhar! Sinto as vibrações da realidade mas devem-se seguramente a uma qualquer parcela da memória que não se desligou durante o pesadelo e que se mantém activa assustando-me com este sonho tão real. Não existem sinais de tréguas da parte dos elementos. Será impossível fazer apagar da minha vida os resultados tremendos desta experiência. Desejo acreditar tratar-se ainda de um sonho, de um horrível e monstruoso pesadelo carregado com o enigmático peso da realidade. A verdadeira realidade é a que ficará eternamente marcada na memória deste povo. Transforma-se a paisagem com a lama, as poeiras arrastadas pelas águas sujas que teimam em tentar alcançar as ruelas que permanecem secas e empoeiradas, negras com a fuligem e os intensos fumos negros que carregam o ar que se vai respirando. A maior das minhas estranhezas é de não conseguir perceber a verdadeira dimensão do tempo. Tudo acontece de forma tão rapidamente desadequada, de maneira tão apressada que furtou parte de mim nestes abalos. Foi como se me tivesse deixado afogar como esta cidade que já não existe. Contudo, permaneci uma pequena eternidade no centro desta praça a contemplar e a sofrer, como todos os que aqui estão, estas lembranças em forma de castigo. Envolvem-se as partículas de tempo à nossa volta alterando-nos a razão, a visão e os restastes sentidos. Os músculos perdem vigor e as entranhas do corpo rugem como um animal selvagem ameaçado. Ficamos perdidos no meio de tanta incerteza e destruição. Perdi de vista todas as referências que a larga praça me dava pois sofreu mudanças radicais. As pessoas espalham-se por todos os espaços mostrando sinais de grande cansaço e esgotamento físico e mental. Perderam-se seguramente milhares de vidas nesta improvável manhã. Porque me foram dados os sinais deste dia? As imagens estavam quase todas incompletas e não transmitiram a real dimensão da catástrofe. O impacto das minhas palavras foi quase nulo e deu a Lefebvre vontade para avançar sozinho para o interior do hospital em chamas. Não mais o vi desde esse momento. Os loucos continuam aqui sentados, desnudados mas respeitadores e bastante serenos perante a dimensão do calamitoso cenário. A esmagadora maioria dos edifícios está agora em chamas e escutam-se barulhos infernais que surgem de todos os recantos da cidade destruída, juntamente com a barreira de água que tomou conta da zona ribeirinha que destrói e devasta tudo à sua passagem até à altura dos primeiros andares das habitações. São estes os principais rastos que o rei mensageiro da morte deixou ao resolver modificar as tranquilas comemorações deste Santo dia.

Observar e escutar, dói, como dói sentir as peles a arder ou o corpo a ceder perante a força dos prédios a desabar, a rasgar os membros e a enterrar vivos tantos que vão gritando até à exaustão quando percebem que se encontram presos sem possibilidade de salvação. São muitos os que nessa condição morrem afogados pelas águas ferozes que a onda traiçoeira lhes serviu. Melhor teria sido a morte os ter levado quando a primeira queda das fachadas os tapou ainda com vida. E o azul sereno com que a manhã deste sábado de Todos os Santos acordou continua a fazer-se adivinhar por detrás das carregadas manchas negras paridas pelas dezenas de incêndios que crescem um pouco por toda a parte. Como pode Deus manter lá bem no alto a cor esquecida da pureza Celestial se nesta cidade devota o caos, a morte e a miséria continuam a ser semeados com tamanha eficiência?

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