terça-feira, 22 de setembro de 2009

PRIMEIRO ACTO - continuação VIII

Desconhecia esta minha necessidade de vestir a pele de soldado e aventurar-me sem pensar nesta perigosa missão de resgate. As paredes do hospital ameaçam ruir a qualquer instante. Nos tectos as vigas continuam a ser agitadas e pode-se olhar o céu pelos enormes buracos causados na estrutura danificada do telhado. Vê-se muito fumo, o ar está pesado e respiro com grande dificuldade. Parte da ala norte para lá do corredor principal que dá acesso ao grande claustro está a ser consumida pelas chamas. Avanço como um louco destemido, meio cego meio incrédulo, como se não fizesse parte desta triste situação. Empurro, puxo e gesticulo, vou bradando e ordenando a todos os que se conseguem movimentar por entre esta desgraça, numa voz já rouca mas ainda poderosa, que saiam, que corram na direcção das janelas e não das alas ou dos corredores, pois tudo ameaça tombar ou ser consumido pelas chamas. As janelas dão acesso imediato ao exterior do edifício. A altura a que se encontram do chão não é exagerada e vou avisando os mais capazes que devem auxiliar os debilitados, os enfermos, mesmo à custa de pernas ou braços partidos, isso é maleita menor numa vida que sai poupada. Apenas se encontram aqui os mais incapazes. Os doentes e todo o pessoal que se encontrava no piso superior desta ala hospitalar deixaram de poder descer pela escadaria principal que lhe dava acesso. Os últimos degraus transformaram-se em completa ruína durante o violentíssimo segundo estremeção. De lá de cima até onde me encontro vão mais de dez ou doze metros de um espaço vazio e decadente. Mais de uma vintena de olhos aflitos suplicam-me sem palavras por uma qualquer ajuda que os possa vir a retirar daquela situação. Desapareceram todos subitamente na direcção oposta à do enorme vazio arquitectónico, pois o tecto sobre eles começou a produzir um violento ruído dando aviso sério da sua breve derrocada. Nunca mais os vi. Por instantes fiquei com a sensação que aquelas almas me vão perseguir e povoar os sonhos para toda a minha existência caso venha a sair com vida deste tormento. Nada se pode fazer. Se saltarem lá de cima a queda seguramente os matará. Tento imaginar estratagemas para tentar salvar mais alguns destes pobres desgraçados mas só consigo carregar um corpo de cada vez. Não sinto nenhuma dor, nem sequer sinto o meu corpo. Estas memórias são apenas imagens, é tudo consumido de rajada pelo sentido da visão. São apagados os toques, os cheiros, os sons e os sabores, apesar de, por instantes, sentir na língua um travo amargo muito intenso que desaparece tão rapidamente como por lá foi semeado. Tudo se passa com a duração da eternidade. A rapidez com que tudo acontece é filtrada pela mente e parece que o tempo é transportado nas costas de um jumento velho e preguiçoso. E estas palavras não as consigo controlar. Nascem por via de uma necessidade incontrolada que tenho de ir falando comigo mesmo mentalmente. Assim mantenho-me atento, observo todos os detalhes e todos os espaços perdidos onde algum sobrevivente possa estar refugiado a necessitar de ajuda. Servem também para me iludir, para me fazer sentir capaz e forte nestas tarefas, para que não venha a sucumbir por debaixo de uma viga em chamas ou de uma parede arruinada. O que mais posso fazer? Queria ser como um tigre poderoso, poder saltar ligeiro por cima destas fogueiras, trepar pelas vigas em chamas já tombadas e saltar ligeiro até ao topo do edifício para poder resgatar tantos quantos o meu poderoso corpo de felino conseguir aguentar. A pele listrada serviria de escudo protector e a cor laranja lembraria às labaredas altivas que por elas estaria a passar o rei das chamas. Nada me poderia travar nessa demanda. Ganho uma inusitada esperança ao pensar em mim com um enorme gato selvagem. Ao contrário de tudo o que seria razoável, ao contrário daquilo que o meu pesado corpo me vai avisando, só me consigo imaginar como esse rei asiático e sinto uma vontade incontrolável em avançar por estas vigas em chamas até alcançar o primeiro piso do edifício, custe lá o que custar. Não é normal, mas tal como há instantes, não sinto o peso do meu corpo. O espírito vai-me avisando dos perigos mas simultaneamente alimenta-me as acções como se o Lefebvre que sou tivesse agora uma pele alaranjada mesclada com os matizes negros das suas listras. Subo pelas vigas em chamas, as que ainda são capazes de suportar o peso de um homem adulto. Ignoro o fumo e as manchas avermelhadas que consomem o negrume de algumas madeiras mais frágeis já transformadas em carvão. Com grande frieza e calculismo, grito do topo de uma das vigas para o piso superior de onde há instantes tantos olhos me miravam. Trinta segundos de berros numa gritaria descomposta que se deve ter escutado no próprio inferno. Dois senhores aparecem, olham-me com as mesmas expressões desalentadas e sem pingo de esperança. Grito-lhes para que recolham o mais rápido possível todas as camas, colchões e móveis que consigam encontrar. Que os atirem aqui para baixo uns por sobre os outros até que fique uma pirâmide de detritos e de objectos capaz de aligeirar a dimensão cruel desta abertura. Se por cima dos móveis lançarem vestuário e alguns colchões podem aliviar a queda e promover assim a salvação para alguns deles. O tempo está agora, como sempre esteve desde o início do incêndio, contra todas estas tentativas de resgate. Nos seus olhos percebi a força que as minhas palavras lhes transmitiram. Os barulhos que se escutaram passados breves instantes, vindos do topo do patamar onde a escadaria deixou de existir, davam a entender que estavam já a arrastar material para a função. A minha ajuda de tigre acabou por ser apenas esta. Mais seria humanamente impossível. Não posso manter-me neste lugar por muito mais tempo. Desço novamente em direcção ao chão onde já se começam a amontoar toda a espécie de móveis e tralhas, camas e demais mobílias, móveis que chovem no meio do chão atirados esperançosamente por um grupo de doentes e dois auxiliares que estão encurralados lá em cima à mercê das chamas que alastram a quase todo o edifício. Arrisco-me a ficar por debaixo dos telhados que tombam e do mobiliário voador. Essa sorte apareceu-me agora nas ideias como sendo uma coisa doce e verdadeiramente sublime. É com felicidade que vejo alguns destes doentes do piso superior atirarem-se para cima da pequena montanha de mobiliário, lençóis, colchões e até muitas trouxas de roupa suja que conseguiram amontoar naquele espaço. Alguns escapam maltratados dessa queda. Ainda assim foram mais de quatro ou cinco os metros que ficaram por preencher. Mas se cambaleiam, se gritam de dor e gemem com os braços e as pernas que acabaram partidos nesses voos, é porque estão vivos e dão sinais bem claros e audíveis do seu sofrimento. Uma lágrima e mais outra, agora de contentamento, correm-me pelas faces sujas ao ver este grupo de seres humanos escapar a um trágico fim por via da violência do incêndio que consome agora o espaço de onde acabaram todos de saltar.

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