quarta-feira, 9 de setembro de 2009

PRIMEIRO ACTO - continuação VI


As pétalas destroçadas que do meu coração caem derramam no chão o vermelho da sua dor. Estas imagens e estas evidências fazem-me crer na destruição do próprio paraíso à qual nunca pensei assistir. É complicado manter-me lúcido numa paisagem como esta. Não controlo as lágrimas que silenciosamente me turvam a visão. Servem para aliviar a agressão daquilo que se observa. Nenhum Santo por aqui fez a sua aparição, nenhuma alma por cá se sente protegida. E não mais descobri Lefebvre no meio desta hecatombe. Há quem corra desgovernado por entre a destruição, sem promover uma única palavra. Correm seguramente para sentir que esse acto lhes trará aqueles que procuram, lhes dará de novo a manhã serena conforme nasceu neste dia, e não este momento transformado em negrume e destruição. Não sabemos o que fazer. Para qualquer lado que nos viremos são mortos e mais mortos até onde a vista alcança. Loucos desvairados a aliviarem as pertenças de muitas vítimas e cadáveres. Almas perdidas, mulheres e crianças, muitas crianças, a procurarem por um entendimento em forma de oração, de ocupadas formas de não se deixarem levar pela loucura e pelas terríveis sensações que a todos nós perturbam. O que se passa é que a mente dá sinais de abandono, quer desaparecer para um outro tempo, um outro lugar. Depois volta, dá sinais de regresso, diz aos resistentes, aos que foram escolhidos para ficar, que não é uma doença, não é uma esperança, nem uma precoce alucinação, nem um castigo, nem um lamento, é a força invisível da humana resistência à morte que nos transforma a alma para resistir ao que se sente e vislumbra, ao que se cheira e ao que se adivinha. Os que tudo perderam são mais de metade dos habitantes desta cidade, seguramente bem mais do que metade. Poucas são as zonas que resistiram ou resistem aos tormentos. E os tratamentos que serão necessários para voltar a dar vida à bela capital do reino durarão mais de metade da vida dos que tudo perderam neste desafortunado dia. Precisaremos todos uns dos outros para levantar estes restos e voltar a por de pé os sonhos dos Lisboetas. E o trabalho que até aqui me trouxe, as tarefas que me estariam destinadas no Hospital parcialmente destruído e que as chamas consomem, foram agora mais do que acrescentadas. Cresceram como as questões crescem ao olhar ao meu redor. Foi roubada a vida da cidade. Abriram-lhe o cérebro para lhe retirar a vontade de viver. Sobreviverá Lisboa a este fracasso? Terá a coragem e a força para se levantar destas ruínas, destes incêndios, deste mar que a deseja engolir e arrastar até ao lodo escondido no fundo dos oceanos, até aos infernos para onde parece desejar arrastá-la sem piedade? Os olhares de muitos de nós alcançam apenas o infinito. Atabalhoadamente atravessamo-nos aos corpos e aos rostos de cada um fitando aleatoriamente um pretenso infinito com os olhos carregados de lágrimas.

Manuel Constâncio e Mestre Dufau acabam de se juntar a mim tensos, brancos, com o peso da incredibilidade carregado nos olhos e nos corpos. O maior local de crime jamais projectado por um criminoso aqui ficou servido. Uma cidade inteira vitimada pelas indecifráveis forças dos Infernos. Metódicas, eficientes, secretas e letais como só essas forças conseguem ser, confirmaram-se em Lisboa para que todo o Mundo acorde de vez e não mais duvide da sua existência.

Uma mensagem servida com a delicadeza da machadada de um carrasco!

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