quarta-feira, 28 de abril de 2010

TERCEIRO ACTO - continuação V


A surpresa foi grande. Esta semente não desagua nos locais devidos. A rapariga não existe. O segredo está tão bem guardado que nenhuma das novas conversas chega ao conhecimento de alguém. Nada transpira para lá daquelas portas seguríssimas. O ministro promove os seus passeios com regularidade e não se adoptam rotinas para os encontros. É como se não existissem. Os dias continuam confusos, dominados pela paisagem destroçada, pelos muitos habitantes que se mantém além das fronteiras da cidade, nas muitas tendas e débeis construções que se levantaram, pelos difíceis momentos que todos passamos e pela ignorância dos motivos que estiveram por detrás das trágicas experiências. Malagrida passeia-se pelo meio do povo amedrontado acusando com veemência as falhas na sua fé como a causa primeira da ira divina. Considerações e opiniões essas que colhem grande aceitação por parte de uma esmagadora maioria do clero. Aguarda-se pelos escritos do padre Malagrida com alguma inquietação. Tudo se modificou após a catástrofe e a pior de todas as imagens ficou guardada em muitos pais que perante a dimensão única e inimaginável do seu sufoco aos próprios filhos renegaram salvação. Quando se modificam os interesses são terríveis as consequências provocadas pelos novos entendimentos de tudo aquilo que nos rodeia. São tão movediços os terrenos que se pisam, muito mais do que alguns poderiam sequer imaginar.

As praias são lindas. O azul do oceano veste-as e reflecte-se espalhando-se em toda a sua extensão. Desde que os sonhos passaram a agitar as noites não imagino como passar da outra nuvem para esta mais adocicada. E a realidade não existe pois todas as implicações destas existências são intensas em igual proporção, inatacáveis nas implicações e incompatíveis na sua explicação. Conclusões não se retiram, mas as consequências destas imagens já me conseguiram alterar a visão de futuro. O ministro esconde a obra da arte que deseja levantar e o futuro que já perspectivou. Preocupa-me que oculte de todos a importância que nos atribuiu. Entendeu em nós sentidos comuns e não sei se deseja a nossa desgraça ou a nossa compreensão. Agarro-me assim, de corpo e alma, a estas linhas que aqui escrevo. Reclamam toda a minha dedicação. Mais dois ou três dias para o ministro pedir estas palavras, para conversar sobre estes assuntos, sobre estas interpretações e visões, sobre estes sonhos e avisos. Mantém-nos cativos num fino e ténue fio de seda que nos vai prendendo à vida. Lefébvre sabe de mim por cartas que lhe tenho enviado. O trabalho no hospital é imenso. Foram cerca de quatrocentas as vidas perdidas na manhã do inferno apesar das que conseguimos salvar da loucura. Tantos foram os que se viram castigados pela fúria do abalo e dos incêndios que se seguiram. Houve quem ficasse dias perdidos no Terreiro do Paço barricados pelas labaredas que os cercaram numa barreira de fumo e calor próprias das profundezas do inferno. Apenas o rio lhes ia dando algum descanso. As barcaças tentaram resgatar quem lá se encontrava. Foram raras as que conseguiram aí fazer-se chegar. Poucas almas se libertaram por essa via do tormento. Espero ansiosamente uma ordem que me possa devolver às minhas incumbências. O terramoto alterou a vida de todos e os seus ecos escutar-se-ão por anos a fio. Não imaginava este tipo de regresso ao meu país. Sinto-me um quase inútil ao trabalhar nesta causa que nada tem que ver com as minhas funções.

Acompanhámos na manhã de ontem a senhorita Fernanda num passeio preparado pelo ministro. Quis que nos juntássemos os três em lugar distante das paisagens da cidade, lá para os lados de Oeiras. Providenciou o nosso transporte sem nos ter dado informação. A senhora encontra-se tão transformada, tão aburguesada nos trajares que diria estar na presença de uma outra pessoa. Os olhos e a expressão, contudo, são os mesmos, apesar da excessiva carga de maquilhagem que lhe carrega o rosto em idade e palidez. Procurei cem vezes o seu olhar na esperança de ouvir a sua voz. Nunca a tive assim tão próxima para poder conversar desde que cavalgámos sem destino para longe da loucura. Por duas ocasiões desceu até mim o seu sorriso. Não quis começar a conversa. Obteria como resposta o silêncio embrulhado no seu bonito olhar. As praias luziam ao longe e o ar tranquilizava o lado de lá das margens do rio que se fundia com o horizonte. Eram muitas as embarcações que navegavam junto à foz e se faziam ao largo. Outras tantas iam chegando, ainda em maior número, num cortejo ordenado pela brisa que lhes penteava as velas e lhes varria os tombadilhos. Sussurravam uma normalidade que fez lembrar os dias antes da tempestade. Estes navios que começaram a chegar depois do acontecimento eram recebidos com uma felicidade inusitada. As tripulações acabavam por saber da tragédia ao largo, pelo fumo e desespero que se fazia adivinhar a largas léguas da costa. Algumas sofreram com as ondas gigantescas, outras acabaram mesmo por nunca chegar até nós, tendo sido engolidas pelo mar destruidor, arrastadas sem dó nem piedade como frágeis barcaças e não mais poderosos galeões. Tentei mais uma vintena de vezes forçar a conversar com o olhar, repetindo Fernanda um simpático sorriso em dois contactos visuais que duraram pouco mais do que breves instantes. As sacudidelas tornaram-se, a certo momento, parte da própria monotonia da viagem. Um sorriso iluminado rasgou o rosto da minha companhia quando um safanão do veículo atirou a minha cabeça contra a porta da carruagem. As minhas anteriores tentativas de conversa foram derrotadas por este evento que acabou com a rotina da viagem.

- Credo senhor Bernardo, coitado de si. Até a mim doeu esse encontrão!

E assim, sem mais demora, aproveitando esta abertura na fortaleza do seu silêncio, semeei as sementes que nos concederam uma boa hora e meia de conversa.

- Foi mais o barulho do que a dor provocada pela pancada. Não se preocupe. Aguardei com alguma expectativa um momento como este. Coisa alguma me parece igual depois de tudo o que aconteceu. Ao longo do tempo que foi devorado desde então, não durmo como dormia e já nem sinto esta existência como certa.

Os seus olhos viraram-se na direcção da vidraça que se encontrava à sua direita, cedeu um suspiro profundo e manteve-se durante cerca de um minuto com a testa franzida e os olhos semi-cerrados, esfregando ligeiramente as mãos que trazia vestidas numas impecáveis luvas de linho bordadas. Voltou-se depois para mim com o olhar humedecido e disse:

- Não sei o que quer que lhe diga! Os meus segredos, tudo aquilo que desejei guardar só para mim foram-lhe entregues sem hipótese de defesa. Sabe coisas a meu respeito que me podem causar grande transtorno. Não consigo afastar a terrível sensação de que, mais dia, menos dia, acabaremos como os desgraçados que o senhor ministro pendurou pela cidade como aviso destes tempos amargos.

Este constante sentimento de incerteza é um factor que nos une. Anular os nossos receios é uma tarefa complicada no contexto actual.

- Não acredito que o senhor ministro se tenha dado a tanto trabalho para acabar com as nossas vidas sem mais nem menos. Aquilo que nos contou será apenas uma pequena parte do fulgor com o qual procurou intimidar-nos. Comigo, garanto-lhe que funcionou, conseguiu mesmo surpreender-me com aquelas palavras. E os seus sonhos? Continua a conseguir escrever neles a sua vontade?

Fernanda despiu as mãos, juntou as luvas e colocou-as ao colo. Bateu levemente com elas duas ou três vezes na mão esquerda e depois, com elas agarradas na mão direita, apontou-as para mim em forma de aviso.

- Sabe o que lhe digo, esta história de conseguir ver as entrelinhas do que está para acontecer não me tem trazido nenhuma alegria, bem pelo contrário. E respondendo à sua pergunta, sim, é verdade, continuo a ser visitada pelas premonições visionárias que tanto prazer parecem dar a esse senhor ministro. Antes de nos receber já sei exactamente o que nos dirá, daí todo o meu cansaço. Que gozo tem viver coisas que já antecipámos? Saber exactamente como tudo ocorrerá, as palavras que se dirão, as iguarias que receberemos e o resultado final de mais um dia repetido? Nenhum, ora nem mais, e causa-me uma tremenda fadiga. Até as cores das vestes me foram antecipadas, apesar de tudo acontecer em tons de cinza.

O meu receio era fundamentado. Fernanda é mesmo um inexplicável caso que nenhuma forma de humano entendimento pode explicar. Admiro a estratégia que encontrou para conviver com os seus dias.

- E esta nossa conversa? Também a antecipou? Os momentos dos seus dias são todos previstos ou existem lugares onde o desconhecido ainda mora?

E mais uma vez, com as luvas viradas na minha direcção, Fernanda avançou pela conversa.

- Serem todos ou quase todos, o que é que isso importa? A maioria dos instantes repete-se como água a desfilar num riacho e os intervalos não antecipados são a alegria dos meus dias. É uma teia, mas a aranha dessa construção não sou eu. Foi-me dada a provar esta chama uma primeira vez, e outra ainda, e uma terceira e quarta logo a seguir, como um veneno. No início da aventura foram imensas as noites passadas em claro brincando com a descoberta, amassando o barro viscoso das minhas vontades, colando-o toscamente nesses primeiros sonhos até que o dia tudo transformava em luz. O sintoma modificou-se naquela noite incómoda em que o barro parecia seco e quebradiço e o céu se turvou com as cores do fumo. As imagens correram iguais e frescas nas nossas memórias na mesma noite. Tudo nos aconteceu, memória atrás de memória, como na manhã do dia desditoso e a organização do nosso encontro encerrou um sentido que ainda hoje desconhecemos. Isso assusta-me quase tanto como esta certeza doentia de antecipar tudo o que vier. Agora é aquele momento do dia em que alguém nos vai mandar sair da carruagem para aguardar a chegada do senhor ministro neste entreposto de ninguém, a meio caminho do resto da viagem.

Tal e qual, assim, sem a mais pequena dúvida, uma visão, uma efectiva antecipação do futuro, concretizada com uma frieza assustadora, colocada entre nós sem hesitação.

- Tanta segurança nessa premonição! Não tem receio que as suas palavras possam estar erradas? Para mim é quase um absurdo que estes momentos banais lhe apareçam antecipados pela irrelevância do que possam encerrar.

Assim que acabei de proferir estas palavras o cocheiro acalmou a velocidade das montadas dando serenidade ao andamento, colocando um fim aos solavancos rotineiros do passeio. Dez segundos foram tempo suficiente para nos abrirem as portas convidando-nos para o lado de fora da carruagem.

- Vê, acha mesmo que os momentos em que estamos vivos podem ser apartados entre importantes e banais? Será mais valioso o instante em que nos é antecipada a queda de um pequeno galho de árvore do que aquele outro em que a morte de milhares nos é comunicado? O resultado final gira sempre na mesma direcção, o galho cai e os milhares fenecem!

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quinta-feira, 22 de abril de 2010

TERCEIRO ACTO - continuação IV


Chegaram à conclusão que o país está todo destruído. Muito terá de ser reabilitado, a maior parte da cidade terá de ser reconstruída mas as feridas mais profundas são invisíveis, estão soterradas dentro da alma do povo. Como seria se uma catástrofe com as proporções do grande terramoto visitasse a cidade nos dias de hoje? Quem consegue imaginar as reais implicações causadas por um acontecimento assim tão devastador numa cidade que tem tanto de moderno como de antigo, que tem mais de caótico que de planeado, que ainda respira os ares de ontem e não se preocupa em antecipar nos seus alicerces as implicações de um mais que provável regresso da tragédia. Ninguém introduz estes dados no presente para relativizar os prejuízos que causará esse futuro calamitoso. Quando chegar a fatídica hora os resultados serão arrasadores. Sempre assim foi, com a rara excepção desses tempos de reconstrução do senhor marquês. Com o carácter de um visionário e a celeridade de um predestinado, inspeccionou e antecipou, programou e projectou com irrepreensível organização e método um conjunto de medidas inéditas e revolucionárias para a época. Juntou os mais hábeis e dotados, criou equipas de trabalho excepcionalmente orientadas e preparadas que projectaram e iniciaram a reconstrução da cidade com a ajuda das mais avançadas tecnologias e engenharia da época. Compreendeu como ninguém as implicações sociais e políticas proporcionadas pela catástrofe e transformou esse acontecimento no seu mais inesperado aliado. Enquanto a maioria do povo ainda não tinha entendido o que acontecera, já Sebastião de Carvalho e Melo entendera que a sua hora tinha chegado embrulhada nesse presente envenenado, nessa forma maligna de desejar um bem através da requalificação natural de toda uma cidade, de todo um país. Sei que foi o próprio que antecipou essa verdade e sei que dominava os segredos e as configurações do futuro através dos desenhos que fabricava nos seus sonhos como se fossem impérios manietados a seu bel-prazer.

- Os libertadores chegaram mas ainda não entenderam a loucura dos momentos.

Estes sinais estão por toda a parte e em parte alguma. Podem ver, observar directamente os olhos do tempo mas não entendem nada das suas razões e das suas manias. Vou escrevendo os avisos e todas as desarmonias nestas paredes húmidas e gastas que uso como folhas. Encho-as para que saibam que me assiste a razão. Aprenderam a minimizar as minhas ideias como se entendessem apenas a loucura que me veste a mente, que me sai desconjuntada pela boca, desconexa e enigmática, transfigurada e metafórica, ao contrário das imagens e das centenas de visões que me visitam ao luar. Meu irmão julgava ser o único a usufruir destas verdades. Quer passar incólume sem disto dar notícia, escondendo estas miragens e estas estadias. Erro meu, erro tremendo ter ousado confessar-lhe uma única vez a visita desta dádiva alucinada. Tenho de dar crédito aos libertadores, todos teremos de ouvir e decifrar as suas mensagens. Estão carregadas das mais puras verdades e prometem indicar-nos os caminhos a seguir. Meu irmão mais não fez que promessas de destruição e oculta a minha existência com a mais vil das escuridões e das maldades. Encerrou-me na obscuridade, afastou-me e procura agora os proveitos da dádiva para benefício próprio. Atirou-me para estas masmorras de loucura e amordaçou-me o raciocínio com infâmia. Os libertadores são os meus mais próximos aliados. Como fantasmas percorrem as estradas da minha loucura e arrancam-me as forças para mais um ou dois dias de trabalho, para me lamentar nestas paredes e neste chão com a perícia de um escriba amordaçado que não se dá por vencido. Tenho de conseguir voltar a sonhar com o azul do céu sem estas grades. Se conseguir esse desígnio, conseguirei voltar a dominar o dom como nessa primeira vez, essa aberrante primeira vez que me deu a provar os cheiros e as sombras deste cárcere maldito.

Antónia dorme sossegada. Não se apercebeu que mal dormi esta noite com tamanha agitação. Mais outra viagem a esse passado atormentado, mais um episódio como os outros, tão real que os odores continuam a tingir-me as narinas com as essências desse tempo. A vista deste nosso quarto de hotel é perfeita. O Vesúvio dominador intimida o viajante pouco acostumado com a sua imponente figura. Juntamente com o imenso Atlântico transformaram a paisagem Napolitana num cenário carregado de histórias. Encontramos as suas marcas seculares ao longo de toda a costa. Anda a consumir-me esta ideia de lhe dar conta de tudo, de lhe dizer como foi que aconteceu a descoberta daquele terramoto antes de ter acontecido. Aquele médico estava tão preocupado com a segurança dos seus amigos, foi uma tão intensa sensação, que até me arrepiei. Tive suores frios naquele momento, e tudo era real como só nesta parte da existência nos é dado a conhecer. Não sabia as ordens que o esperavam. Desde que ele e Fernanda passaram a ser próximos do ministro, este tem procurado cuidar mais das conversas que mantém com a senhorita do que dar-lhe ordens ou delegar-lhe tarefas de relevo. Continua expectante, entretém-se com os seus relatos e estrutura o melhor que sabe e se recorda as palavras de Fernanda em páginas e mais páginas de informação. As primeiras eram estranhas e ousadas, mesmo incómodas. Não era difícil imaginar o seu impacto ao chegarem às mãos de um inquisidor. Tem passado os dias nessa tarefa monótona mas perigosa. Admirou-se com a novidade que o ministro lhes comunicou e ainda tem sérias dificuldades em abranger a real dimensão dos acontecimentos. Colocou nas folhas que escrevinha as palavras onde estes pensamentos se formaram, para não se esquecer, como se tivesse inventado um beliscão literário que o prende à realidade. Insiste e impregna os dedos de tinta e de suor, de muitos receios. Junta aos relatos de Fernanda muitas ideias suas sobre o que dela foi ouvindo e não sabe se o que vai construindo é aquilo que inicialmente lhe foi encomendado. O documento adquiriu uma vontade própria, tão própria que a história que ali se levanta não é mais o que lhe foi relatado, nem a maneira como interpretou, nem tão pouco a transcrição fiel de tudo o que ouviu. As mãos deixaram de ser fiéis ao acontecido e passaram a voar ligeiras pelas folhas com o passar do tempo. Está a construir uma outra coisa para a qual ainda não descobriu o nome. A essa parte da história não quer dar conhecimento ao ministro, e o receio que seja o próprio ministro a ter assim construído essa verdade por força da sua espantosa e ímpar qualidade, trás o nosso médico num sufoco contido do tamanho do próprio vulcão Vesúvio em vésperas de rebentar.

Tenho de acordar Antónia ou ainda perdemos a hora do pequeno-almoço e grande parte desta bonita manhã de Abril.


quinta-feira, 15 de abril de 2010

TERCEIRO ACTO - continuação III


Não faltarei a esta chamada. Não demoraremos mais de dois dias a tomar como certa esta evidência. Estamos a escassos momentos de reabilitar a cidade destruída com planos tão maravilhosos quanto seguros. Muito se aprendeu com a lição dada pelos sonhos. Pensa que o desejo de destruir toda a cidade lhe surgiu assim vindo do nada. Imagina que as suas pequenas vontades de vingança possam estar por detrás destes poderes que mal domina. E, no entanto, consegue vislumbrar e descrever paisagens, objectos, construções gigantescas de dimensões que claramente ultrapassam tudo o que hoje é do humano entendimento. Consegue descrever com pormenor a existência de autênticos formigueiros humanos, onde todos se movimentam num perpétuo ziguezague, descendo por buracos abertos nas vísceras da terra, voando pelos céus nas entranhas dos mais estranhos animais reluzentes que cospem fumo e fogo como dragões, onde tudo parece caótico mas, simultaneamente, estranhamente articulado. Essa sensação de abismo existencial levita por cima de todos os habitantes da cidade nesses dias que estão para chegar. Afirma que nada irá restar, que tudo, tal como no dia 1 de Novembro do ano passado, se transformará em fogo, fumo e poeira, que as águas voltarão a precipitar toda a sua fúria por cima dos habitantes desta terra, que as imagens de horror e de destruição serão de tal maneira multiplicadas, que nada do que antes possa ter sido julgado como um massacre se comparará a mais esta vontade do ignóbil príncipe das trevas. Conseguiu descrever com tamanha minúcia e detalhe as largas avenidas e as iluminadas fachadas dos edifícios, das arcadas e dos geométricos ideais de uniformidade das novas ruas da cidade como se tivesse passeado nos mesmos sonhos que me entretive a construir. Descreveu as praças, as avenidas, as formas alinhadas e organizadas que nascerão nos desenhos, nos projectos, nas plantas e nas maquetas. Relatou-me, para meu supremo espanto, a minha inimaginável ligação a Nero, ao colar os meus sentimentos aos seus quando encarei as extraordinárias chamas de Lisboa e, por instantes, viajei até uma das varandas do palácio do imperador. A importância que a minha intervenção vai deixar para o futuro deste país, segundo as suas palavras, ficará bem visível aos olhos de todos por muitos e bons anos. Se é verdade que não necessitava destas confirmações para seguir em frente com os meus propósitos, o certo é que a segurança que me proporcionaram, aparentemente, afastaram as poeiras de incerteza que começavam a germinar dentro desta vontade. A partir de agora não mais cairei nas malhas da hesitação. Transfigurarei a meu bel-prazer e à minha imagem os acontecimentos que se seguirão conforme estabelecido. Continuaremos a dar uso desta ferramenta improvável que nos foi oferecida, esta capacidade espantosa de manipular o destino através da manipulação dos sonhos. Inscreveremos aí todas as construções, todos os ideais, todas as megalomanias e excessos, todos os espaços e todas as loucuras, todos os domínios e todas as alianças, faremos com que tudo se possa transfigurar, conferindo corpo a estas imagens com desmedida paixão.

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A maior de todas as surpresas foi o senhor ministro saber dominar tão bem este instrumento da memória. Desenha as acções futuras com as vontades do presente e avança com uma espécie de lista para o centro dos sonhos. Sabe ao que vai e o que deseja. Adianta os seus propósitos, aqueles que serão transformados em realidade num mais próximo momento, e outros, que só poderão ser efectivamente visíveis num período de tempo mais alargado. Olha para mim respeitosamente. Nunca imaginei poder ser tratada desta forma tão principesca, num contexto tão fabuloso. Nenhum sonho me deu a conhecer esta novidade. Foram vítimas da minha vontade animalesca, não podiam antecipar imagens desta estadia. Isso para mim não faria nenhum sentido. Apontei as minhas vontades para outros alvos, vesti-as com os meus venenos mais perigosos e tudo o que procurei foi alimentar o meu intenso desejo de vingança. Estava bem longe de imaginar que tantas solicitações de maldade abrissem as misteriosas portas deste segredo. Continuei a pedir, a implorar, a desejar a loucura, a destruição e a maldade, quis que tudo acabasse num só instante, sem remorso ou piedade. E agora, depois de tudo ter acontecido como antevi, o senhor ministro reclama para ele estes acontecimentos. Disse que os meus desejos foram calculados por si na exacta medida da minha loucura. Necessita de uma alma aliada para não avançar por estes dias sem um apoio. Sonhou com alguém que, tal como ele, pudesse entender a verdadeira dimensão deste fenómeno. Sonhou comigo e em mim adicionou as garras desse seu milagre para que eu delas viesse a fazer uso. Estendeu-me esta armadilha onde cai por força dos seus interesses, e o que acabou por ser um mistério não foi mais do que a manipuladora força dos sonhos deste homem enigmático e inteligente, a quem a natureza acrescentou o tempero das centelhas do abismo.

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terça-feira, 13 de abril de 2010

TERCEIRO ACTO - continuação II


Um brilhozinho extra nos teus olhos não me fazia nenhum mal. Sabes que não se consegue respirar mais como dantes. E os religiosos que apontaram o dedo acusador aos infiéis, a todos aqueles que não cumprindo com as suas obrigações cristãs foram punidos pelas enigmáticas e purificadoras forças do Senhor. Não deixa de ser curioso como foram rápidos a encontrar um motivo que não fizesse causar ainda mais dúvidas sobre a própria existência de um Deus benevolente e misericordioso. Foi o povo descrente e pecador que causou, segundo a teoria de muitos destes senhores da igreja, a ira de Nosso Senhor, tendo assim precipitado tamanha punição para cima da população desta cidade de todos os vícios. Não se vislumbram grandes mudanças na dor invisível do povo amargurado, nem sinais de que uma qualquer esperança misericordiosa, uma qualquer fé se transfigure rapidamente em esperança. As pessoas parecem transparentes, parece que perderam as cores, caminham como fantasmas, como sombras, sem se olharem, sem procurar a quietude e o abrigo de uma conversa, de uma troca de ideias por pequena que seja. Os serviçais andam mudos e sombrios, a minha amada Rafaela ainda não consegue passar um dia sem que os olhos se turvem com as recordações do pesadelo, das minhas ordens que precipitaram a rápida fuga para longe da cidade a todos providenciando a salvação. Ainda hoje não consigo falar sobre este assunto com o bom amigo Bernardo. Sabemos que hoje nada é igual a tudo aquilo que já foi. As suas imagens, os relatos que fez sobre o que estava prestes a acontecer, a temperatura amarga e muito salgada das suas palavras estavam temperadas com uma tamanha convicção que tudo teria de se passar como acabou por acontecer. As pistas eram claras demais para não lhes dar crédito. Ainda bem que o fiz! Estava na hora de fazer abalar os alicerces da nossa compreensão, de abalar esta nossa firmeza assim como a forma de entender a própria realidade. E agora acreditamos, porque reagimos ao óbvio, em coisas muito complexas e de difícil entendimento, ainda mais para homens de ciência como nós. E Rafaela passa muitas noites abrigada no meu leito, serpenteando as suas formas por debaixo dos lençóis que ela própria se dedicou a perfumar. E sem quaisquer palavras, como fantasmas, procuramos o abrigo para as nossas vinganças e para os nossos receios. Guardamos para mais tarde todas as questões para as quais não conseguimos obter respostas. As sensações produzidas pelo toque da sua pele, com os seus seios delicados a responderem melhor às minhas dúvidas do que qualquer sábio ou estadista, são tudo o que necessito nestes dias mutantes. O seu rosto e os seus cabelos descansam em mim, as mãos procuram despedir-se em carícias no meio dos nossos sentimentos embaraçados, e apenas desejamos que estes instantes não se desmoronem como tantos edifícios, palácios, a ópera e as catedrais, que não acabem destruídos no meio de um chão em cinzas. Passeamos um pelo outro, num só segundo, todas as vidas deste mundo, todas as que existiram e todas aquelas que ainda estão para acontecer. Ao fim de mais uma madrugada, ondula por debaixo das colchas para longe do quarto pois outros afazeres a aguardam no dia que já se adivinha. Fico invariavelmente acordado o resto do tempo de duração desta penumbra. Tento descobrir palavras no tecto do quarto. Tento perceber se os meus sonhos, tal como os de Bernardo, alguma vez poderão vir a transformar as visões do nosso futuro.

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E depois de tudo, depois de todas as incertezas e ruídos, de todos os pedidos feitos a quem nos possa ajudar a olhar em frente, nada consegue substituir esta certeza única. Caminhamos nos nossos corpos sem ruídos de fundo, pintamos com os sons que provocamos um no outro, uma alma só nestes instantes, uma assinatura num momento, num fluxo, e o ar enche-se de sal, de calma, de prazer tão intenso como intensa são as pegadas que deixamos nesta vida. Não quero deixar Lefebvre esta manhã, não quero. Vou voltar para trás, hoje vou tentá-lo a não me deixar sair tão cedo da sua companhia. Vou ajudá-lo a ajudar-me. Hoje não quero deixar de sentir a tranquilidade do seu calor, pelo menos por mais um breve e eterno instante.

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TERCEIRO ACTO - continuação I


Nesta vertiginosa e curta viagem são mais os pontos de contacto com tudo o que já fomos e voltaremos a ser do que aquilo que supúnhamos. Nada destes meus sonhos me parece demasiado estranho, apesar de toda a destruição, dor e miséria que me transmitem os locais e os trágicos acontecimentos, trespassa-me depois uma morna sensação de aconchego que muito me tranquiliza. Este descanso que tanta falta me faz durante o dia, acaba por chegar através do conhecimento e dos ensinamentos que estas viagens nocturnas me proporcionam. O sol não entra aqui, mas as palavras e as acções de todos os que me acompanham ao longo do passeio ao passado, devolvem-me a sua luz e o seu calor, destroem a minha miséria e confortam-me a solidão. Lembro-me de Alberto Caeiro que desejava trincar a terra toda, desejava sentir-lhe um paladar, seria mais feliz um momento se a terra fosse uma coisa para trincar. Essa terra que se abriu nas suas entranhas e resolveu mostrar o misterioso poder da infelicidade, porque é preciso ser de vez em quando infeliz para se poder ser natural… e recordei acima de todas as outras, estas palavras:

O que é preciso é ser-se natural e calmo

Na felicidade ou na infelicidade,

Sentir como quem olha,

Pensar como quem anda,

E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,

E que o poente é belo e é bela a noite que fica...

Assim é e assim seja...

E depois olho para mim neste espelho de quarto de banho, observo esta barba por fazer, este grisalho que me vai pintando o aspecto, e vejo que tudo é assim natural e calmo, como uma fonte. Também são naturais estes sonhos, estas mensagens que surgem misteriosas do passado, do futuro, daquilo que não conseguimos verdadeiramente decifrar e que depois, como que por magia, se entrelaçam num fio tão sedoso e puro, tão delicado e resistente como a pétala de uma rosa, como o sopro perfumado da primeira brisa desta primavera acabada de chegar. As minhas vontades são apenas as de deixar antecipar esta naturalidade e dar a conhecer a outros que tudo deve acontecer como nos dizem as palavras de Caeiro, e devemos sentir como quem olha, devemos pensar como quem anda, devemos ser capazes de atravessar a vida sem nunca termos pena de olhar para trás.

Os dias são agora maiores, mais saborosos e temperados. As desabadas ruínas de tantos e tantos edifícios destruídos vão parecendo delicadas construções que só desejam fazer parte de uma nova história. O senhor Ministro tem tantas ideias, tantos projectos vertiginosos que quase ninguém parece acompanhar com clareza a rapidez do seu raciocínio e as suas visões. Além de nos ter proporcionado condições mais do que suficientes para trabalharmos em conjunto, trouxe os mais reconhecidos arquitectos e engenheiros militares para devolver a esta cidade destruída uma alma nova, como já lhe ouvi dizer por mais de uma dezena de vezes. A rapariga ficou milagrosamente faladora desde que abriu a boca naquela primeira vez em que foi imediatamente interrompida com vigor e rispidez por dom Sebastião. Até o meu fiel Felício parece outro. Anda com uma posse mais tranquila e é grande o sorriso que consegue fazer transparecer dos seus imensos olhos negros. As visões claramente futuristas que Fernanda nos deu a conhecer durante a sua ausência estão agora mais fortes que nunca. São comunicadas em reuniões privadas com o Ministro e os seus arquitectos. A vontade de tornar rapidamente a colocar de pé e a dotar esta nossa bela capital de uma luz e de uma decência próprias dos grandes impérios, não é coisa que se consiga esconder por aqui. A preocupação em conseguir dar segurança a tudo o que venha a ser levantado e construído trazem os engenheiros numa azáfama de tal ordem, num intenso corrupio e em constantes discussões. A sensação que me causa esta sucessão de agitadas manhãs é de que nada conseguirá resistir ao estranho fulgor e vitalidade que este Ministro faz transbordar de si por todos os seus poros. Deve dormir, se tanto, umas duas a três horas por noite. Preocupa-se com os pormenores e com os mais pequenos detalhes. Conseguiu reunir um estaleiro tão gigantesco num tão curto espaço de tempo que não sabemos mais se a destruição que ainda se vislumbra um pouco por toda a parte se deve ao terramoto de há meses ou se aos trabalhadores incansáveis que vão limpando, descarregando materiais, montando estruturas e passadiças de madeira, pequenas pontes e acessos a ruas e vielas destruídas, alargando em espaços amplos todas as zonas mais danificadas, criando pequeníssimos rossios onde se improvisam de imediato toda a espécie de pequenos mercados, onde se montam e se trocam toda a espécie de produtos de primeira e de outras necessidades também. O povo continua muito amargurado e pessimista. Vão demorar anos, décadas talvez, até que as cicatrizes profundas de toda esta destruição possam sarar definitivamente. Se todos pudessem sentir o que sente este ministro, este personagem poderoso e visionário, as coisas poderiam passar-se de uma outra forma. Conseguiu até fazer com que os nossos eternos aliados nos ajudem nesta gigantesca empreitada, prometendo-lhes contrapartidas de toda a ordem e espécie, desde que as suas programadas e antecipadas visões de reconstrução da Lisboa destruída possam vir a arrancar no mais curto espaço de tempo.

Tenho de fazer a barba, quatro dias é o tempo mais que suficiente para constatar que não me fica bem este “look” à “doctor House”. E agora, mais uma vez, tal como há pouco, mais palavras de Caeiro a serenar esta minha rotineira tarefa matinal:

Pensar em Deus é desobedecer a Deus,

Porque Deus quis que o não conhecêssemos,

Por isso se nos não mostrou...

Sejamos simples e calmos,

Como os regatos e as árvores,

E Deus amar-nos-á fazendo de nós

Belos como as árvores e os regatos,

E dar-nos-á verdor na sua primavera,

E um rio aonde ir ter quando acabemos!...

sexta-feira, 9 de abril de 2010

TERCEIRO ACTO


Para subir agora de volta à realidade nada melhor que acordar com mais uma imensa dor de cabeça. Porcaria de sonhos que se repetem por noites consecutivas sem me deixar descansar. Estas viagens ao passado são tão cansativas como enigmáticas. Apesar do desejo de repouso, coisa que já não consigo fazer há algum tempo, estes sonhos têm um tempero tão delicioso, tão autêntico, e surgem carregados na igual medida do medo que me provocam. Pareço uma criança com um brinquedo novo ao passear adormecido pelo nosso passado, estar ali, cara a cara com tão importantes figuras da nossa história, com personagens tão vivas, tão reais, tão assustadas e tão dignas no peso da sua dor. Das primeiras vezes acordei como Bernardo, alagado em suor, transpirado pela surpresa que me causou uma tão intensa sensação de real. Passei as horas seguintes à primeira experiência marcado pelo receio em voltar a adormecer. Foi tão desagradável ter mergulhado no passado com tamanha violência, mais uma vez, tal como o médico que visitei, tudo a preto, cinzentos e brancos muito luminosos sempre que as personagens falam sem abrir a boca, sem pronunciarem uma única palavra. E tal como Mestre Bernardo, serei capaz de dizer isto a alguém? Qual seria a reacção da Constança se lhe contasse estes estranhos sonhos que se repetem noite após noite? - É sim querida, estas pessoas existiram mesmo por alturas do grande terramoto de Lisboa de 1755. Imagina só! Um médico de renome na época acordou em sobressalto ao perceber que o terramoto lhe foi comunicado num sonho com configurações muito particulares. Vai daí, e apesar do receio de o julgarem louco, deu conta desse sonho ao amigo e companheiro de profissão, um francês que com ele trabalha no hospital de todos os santos. E não é que tinha razão! Salvaram-se alguns doentes mas a maior parte do hospital acaba por ser pasto das chamas e da hecatombe que destruiu grande parte da cidade. Mortos e mais mortos por todo o lado e eles ali, como heróis, a olharem um para o outro. É então que chega ao Rossio uma rapariga que se julga dotada de poderes divinatórios. Esta olha para o médico, reconhecem-se sem nunca antes se terem visto e abalam a galope num cavalo branco para parte incerta. Mas o mais estranho do sonho ainda me falta contar! A rapariga acaba por cair do cavalo, entra numa espécie de coma e começa a dizer coisas estranhas acerca do futuro da cidade, adivinha com exactidão quando surgem as réplicas do terramoto e faz outras surpreendentes descrições do que ainda está para acontecer. Essas bizarrias queria o médico guardar de ouvidos indiscretos, só que, e agora agarra-te bem que esta parte do sonho é o máximo, o Marquês de Pombal, na altura ministro do rei, soube da sua existência, da sua condição e das suas estranhas palavras. Foi ter com os dois ao hospital, com esse tal médico de renome e com a rapariga, mandou sair todos os que com eles ainda se mantinham naquela ala hospitalar e, surpreendentemente, diz-lhes que também ele consegue adivinhar o futuro, pensava até que era o único a quem tal coisa acontecia. Ao saber da história deste casal assim unido por tão estranho destino, resolveu transformá-los em seus aliados dizendo o seguinte: - De agora em diante, as nossas vidas não avançarão muito distantes umas das outras. Teremos de saber honrar esta virtude!” – tal e qual! Lembro-me tão bem destas palavras, e consigo ainda sentir-lhes a respiração e ver as caras de pasmo que os dois fizeram ao escutar a confissão do Marquês. E então Constança, o que pensas destes meus sonhos? Já agora, e só para teres noção da verdadeira dimensão deste meu “problema”, faz já três semanas que esta história se vai desenrolando, capítulo atrás de capítulo, com detalhes tão assustadoramente reais que até os cheiros me chegam ao nariz. E olha que a maior parte das vezes preferia não ter que os sentir. Em sonhos é possível ser corajoso e arriscar as sentenças que nos podem fazer passar por louco ou doido varrido. E como é fácil antecipar-lhe as palavras de gozo e de troça caso lhe contasse mesmo tudo isto. O mais fantástico seria ver a cara de Constança ao explicar-lhe o verdadeiro motivo das noites mal dormidas, do meu cansaço e da minha continuada dor de cabeça. Não posso insistir por muito mais tempo neste ritmo nebuloso dos sonhos. Causam-me mais fadiga que muitas horas seguidas a fazer urgências.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

SEGUNDO ACTO - continuação XI


- Não se consegue vislumbrar nada de sossego, nada de esperança. Os segredos voltam a desaparecer e as estátuas que somos, estátuas de sombras e de receios, são como pequenos peões quando confrontados com esta determinação que o senhor ministro não deseja esconder. Quer aproveitar este doloroso momento para criar algo de verdadeiramente grandioso. As palavras da jovem senhora apareciam e desapareciam em momentos desgarrados e muito dificilmente lhes conseguimos dar algum entendimento de razão. Para mim continua a ser uma surpresa a sua vinda até nós apenas para tentar saber as razões destes delírios.

- Está a ser provocador caro Mestre Bernardo! Para quê tentar fugir da minha vontade com essas tentativas fúteis e pouco inteligentes que só me conseguem causar um enorme aborrecimento? Peço-lhe, não repita semelhantes sentenças e agora, de uma vez por todas, diga-me exactamente que leitura fez das misteriosas palavras da senhorita.

O ministro não desarma. Existe nele uma força e uma determinação inabaláveis! O senhor médico encontrou esta barreira e terá de ser verdadeiro no relato que fará de tudo aquilo que eu disse. Surgem-me imagens de nuvens muito baças que me fazem recordar partes difusas desses sonhos, como se tivessem combatido contra um inimigo feroz e desejassem voltar para este seu secreto abrigo. São partículas de paisagens carregadas de ruídos estranhos, irreais, de máquinas de ferro que percorrem alinhadas em longas filas caminhos escuros e sujos, ora desaparecendo nas entranhas da terra por entradas que as engolem sem descanso, ora atravessando a paisagem caminhando por cima de construções gigantescas, pontes e arcadas que transformaram todas as paisagens da cidade. O rio não é mais uma barreira e por sobre si cresceram ligações inimagináveis que estes animais de ferro e fumo percorrem sem descanso. E no céu, por cima de toda esta inqualificável e indescritível confusão, mais máquinas o atravessam como pássaros do demónio, carregando sabe-se lá o quê nos seus ventres monstruosos, vomitando fogo e fumo na direcção contrária à dos seus voos. Não existem animais neste inferno de mau cheiro, não se percebem as vontades das pessoas nem os seus propósitos, não se consegue entender por onde tanta gente se movimenta no mais anárquico de todos os formigueiros. A cidade é a nossa Lisboa, adivinhei-lhe o castelo que permanece no seu alto posto a fazer de vigilante da cidade. Tudo o resto é algo que não consigo sequer arriscar-me a descrever. Se foi esta visão bizarra aquilo que relatei enquanto estive esquecida durante estes dias de silêncio forçado, o que não terão imaginado todos os que me escutaram. Os meus dias estão certamente contados!

- Senhor Ministro, não me recordo muito bem dos meus estranhos sonhos, não sei sequer se posso arriscar pronunciar-me sobre aquilo que outros me ouviram dizer enquanto eu estive ausente.

- Caluda! Mas que impertinência a sua! Será possível que ainda não tenham percebido o que aqui me trouxe? Acha porventura que foram apenas os relatos feitos deste seu estranho caso que forçaram a minha vinda até vós? O que mais me irrita é esta continuada tentativa de forçarem a conversa para outros caminhos, julgando que não sei mais do que aquilo que me tentam esconder! Estais vós completamente toldados por uma súbita estupidez ou são movidos apenas pelo medo daquilo que sentem, daquilo que já sabem mas que ainda só entendem de maneira superficial? Os vossos sonhos são idênticos, o que vos une é a mesma razão e a mesma sensação. Quando moldamos as forças do futuro através do domínio que fazemos aos nossos sonhos, tudo o que julgamos poder vir a acontecer acaba mesmo por efectivar-se. Caso o desejemos com a maior de todas as forças, caso o antecipemos por intenções coladas na alma com a mais estranha das convicções, assim o futuro nos trará essa vontade. E ficamos com aquele arrepio a deslizar pelas costas abaixo até que um intenso formigueiro nos entorpece os sentidos. Sim, é verdade, também eu consigo antecipar as estranhas forças do porvir! Até esta data julguei ser o único a conseguir dominar a dinâmica dessa influência perversa. Vejo agora, sei agora, através das vossas caras, das vossas cores e da maneira como tentam fugir com as palavras a tudo o que já vos questionei, que é igual o que sentimos, que são iguais estas forças que carregamos. Estas palavras têm de ser transportadas até um local recôndito onde podemos ajustar tudo aquilo que acreditamos estar para acontecer, sem receios nem nenhum drama. Pense bem Mestre Bernardo, recorde-se como as dores sentidas por si na véspera do dia da calamidade foram bem reais, tão reais e verdadeiras que sentiu um aperto violento que o impeliu na tentativa de salvar algumas almas antes que o misterioso e catastrófico acontecimento tomasse conta desse dia. E como a terrível confirmação não se podia dar a conhecer antes de acontecer, descarregou no seu amigo essa ansiedade e muito do seu pânico, só não sabia ao certo o momento exacto do início da destruição. E se pensar bem, se recuar bem ao início do seu sonho, todas as imagens da praça após os primeiros violentos abalos aconteceram tal e qual, sem nenhuma diferença, com uma espantosa e irrepreensível exactidão, sendo tanto mais espectacular nessa louca reprodução quanto bizarra a maneira como a pequena senhora lhe apareceu à sua frente, cara a cara perante o infortúnio, cara a cara, confirmando as vossas premonitórias visões. Não tenho vontade em dizer mais, não preciso de dizer mais. Não voltem a repetir falsidades com o único objectivo de fazer condicionar a confirmação destas evidências. Não somos pessoas como as outras, transportamos esta generosa qualidade de nos serem antecipadas as visões do futuro e temos de nos mostrar dignos de tamanha responsabilidade. Torna-se quase indispensável comunicar-vos a razão desta minha visita, agora que as cartas já se encontram em cima da mesa. De agora em diante, as nossas vidas não avançarão muito distantes umas das outras. Teremos de saber honrar esta virtude.


domingo, 4 de abril de 2010

SEGUNDO ACTO - continuação X


Mais não consigo. É impossível julgar estes propósitos como inspirados por uma mão sagrada. Foi tão destruidora a sua maré, tão devastadores os seus efeitos, que as sementes do caos germinaram todas no mesmo instante por debaixo da nossa amada cidade. As atmosferas não são mais as mesmas, as conversas afastaram-se dos seus caminhos e perdem-se em processos quase enigmáticos procurando apenas as razões de tantas desconfianças e receios. Os senhores das trevas podem estar escondidos atrás de qualquer porta, escondidos na noite, escutando as nossas mentes dando conta do medo e da desconfiança que existe em cada um de nós. O meu senhor Lefébvre sabia bem mais do que me disse. Mas como, ainda hoje me pergunto? Como foi possível saber das coisas antes de terem acontecido. Deixou-me a alma despedaçada, o corpo tremente, as pernas demoraram dias para serenar e não consigo olhar o dia de amanhã sem esquecer aquelas palavras e o olhar do seu amigo médico. Que provas tinham daquilo que estava para vir? Acreditou que um qualquer sonho mau nos podia salvar daquele inferno, como um milagre. O medo e a confusão por vezes dão cabo de todas as esperanças. Fugimos rumo a um qualquer desconhecido porque acreditámos que não iríamos morrer ali, naquele dia, naquele instante, e conseguiram assim salvar tantos além de nós. Em Santarém as pessoas continuam surdas e mudas. Muitos são os que para aqui vieram subindo ao longo das margens do rio. Procuram familiares e amigos, procuram auxílio na tentativa de conseguir encontrar respostas, comida e conforto, um qualquer conforto que possa devolver a crença num Deus que nos proteja. Este fechou os olhos e a razão quando mais precisámos dele. Nesta casa de meu senhor nada foi afectado. Os tremores e a miséria por que passou a nossa Lisboa precipitaram ondas de choque e de horror por todo o país. Dizem que em Espanha e no Norte de África tudo abanou, como se o monstro que estava escondido nas entranhas da Terra a quisesse estilhaçar. Os mares subiram ao topo dos edifícios num barulho descomunal, tudo arrastando à sua passagem. As barcaças e as gentes, as construções frágeis e as resistentes acabaram dilaceradas. As águas recuaram e levaram grande parte do que tinham destruído largando tudo no mais frio e gélido dos silêncios. Impressiona agora mais este sossego, esta nova maneira de esconder as palavras, do que tudo o resto. Temos medo de falar, temos quase medo de respirar. Temos medo de olhar para o céu e saber que nele já nada mora, nem anjos, nem o nosso Deus, nem a virgem Maria que a todos devia protecção. Esta alteração profunda na fé cozinhou na alma do povo um pavor inimaginável. Não sabemos mais em que acreditar, a que Deus e a que santos rezar, a que suposta luz de esperança nos dirigir. Não dominamos os nossos receios. Todos se olham com imensa desconfiança e esses olhares rápida e irreflectidamente se deslocam na direcção do chão fugindo do contacto directo. Fogem por não sentirem mais a tranquilidade e a certeza dos dias que virão. As magias das curandeiras e videntes parecem estar de volta, o senhor rei, dizem, refugiou-se num palácio de pano, sem paredes ou vidraças com medo que tudo volte a desabar e lhe possa causar a morte ou um sofrimento atroz por vias de ferimentos.

Aos três dias seguintes a esta imensa dor chegou a satisfação de todos terem aqui chegado são e salvos, A Irene e a Laurinda primeiro, a Eulália e o Simplício mais tarde. O senhor Lefébvre encarregou-se de fazer chegar ordens para que tudo se aprume e organize como na casa de Lisboa. As obras por lá já começaram. Foram muitos os estragos causados na casa da capital. Parece que nestes primeiros dias vai ser muito complicado vir até Santarém pois são muitos os afazeres que o irão manter no hospital. Muito trabalho, muitas vítimas, muitas coisas e assuntos a tratar e o senhor ministro do reino que parece ter novas e importantes tarefas para o meu querido senhor Lefébvre. As saudades são tantas, como imensa a minha alegria ao saber que estava bem e que o terrível abalo não mo roubou, como aconteceu a tantos milhares de almas. Já consigo olhar para os outros, consigo olhar para o céu e para a linha do horizonte lá ao longe, junto às longas e direitas margens do Tejo. Consigo até olhar para cima e pensar que no céu nasce uma esperança, uma qualquer esperança ou uma fé num outro Deus mais atento e misericordioso do que o que deixou destruir grande parte do nosso Mundo. Continuo a querer o meu Lefébvre de volta, sentir-lhe o calor e provar da sua fé incalculável. Quero voltar a ouvir o doce som das suas palavras, beber do seu sorriso e passear novamente pelo seu olhar verdadeiro.