quarta-feira, 28 de abril de 2010

TERCEIRO ACTO - continuação V


A surpresa foi grande. Esta semente não desagua nos locais devidos. A rapariga não existe. O segredo está tão bem guardado que nenhuma das novas conversas chega ao conhecimento de alguém. Nada transpira para lá daquelas portas seguríssimas. O ministro promove os seus passeios com regularidade e não se adoptam rotinas para os encontros. É como se não existissem. Os dias continuam confusos, dominados pela paisagem destroçada, pelos muitos habitantes que se mantém além das fronteiras da cidade, nas muitas tendas e débeis construções que se levantaram, pelos difíceis momentos que todos passamos e pela ignorância dos motivos que estiveram por detrás das trágicas experiências. Malagrida passeia-se pelo meio do povo amedrontado acusando com veemência as falhas na sua fé como a causa primeira da ira divina. Considerações e opiniões essas que colhem grande aceitação por parte de uma esmagadora maioria do clero. Aguarda-se pelos escritos do padre Malagrida com alguma inquietação. Tudo se modificou após a catástrofe e a pior de todas as imagens ficou guardada em muitos pais que perante a dimensão única e inimaginável do seu sufoco aos próprios filhos renegaram salvação. Quando se modificam os interesses são terríveis as consequências provocadas pelos novos entendimentos de tudo aquilo que nos rodeia. São tão movediços os terrenos que se pisam, muito mais do que alguns poderiam sequer imaginar.

As praias são lindas. O azul do oceano veste-as e reflecte-se espalhando-se em toda a sua extensão. Desde que os sonhos passaram a agitar as noites não imagino como passar da outra nuvem para esta mais adocicada. E a realidade não existe pois todas as implicações destas existências são intensas em igual proporção, inatacáveis nas implicações e incompatíveis na sua explicação. Conclusões não se retiram, mas as consequências destas imagens já me conseguiram alterar a visão de futuro. O ministro esconde a obra da arte que deseja levantar e o futuro que já perspectivou. Preocupa-me que oculte de todos a importância que nos atribuiu. Entendeu em nós sentidos comuns e não sei se deseja a nossa desgraça ou a nossa compreensão. Agarro-me assim, de corpo e alma, a estas linhas que aqui escrevo. Reclamam toda a minha dedicação. Mais dois ou três dias para o ministro pedir estas palavras, para conversar sobre estes assuntos, sobre estas interpretações e visões, sobre estes sonhos e avisos. Mantém-nos cativos num fino e ténue fio de seda que nos vai prendendo à vida. Lefébvre sabe de mim por cartas que lhe tenho enviado. O trabalho no hospital é imenso. Foram cerca de quatrocentas as vidas perdidas na manhã do inferno apesar das que conseguimos salvar da loucura. Tantos foram os que se viram castigados pela fúria do abalo e dos incêndios que se seguiram. Houve quem ficasse dias perdidos no Terreiro do Paço barricados pelas labaredas que os cercaram numa barreira de fumo e calor próprias das profundezas do inferno. Apenas o rio lhes ia dando algum descanso. As barcaças tentaram resgatar quem lá se encontrava. Foram raras as que conseguiram aí fazer-se chegar. Poucas almas se libertaram por essa via do tormento. Espero ansiosamente uma ordem que me possa devolver às minhas incumbências. O terramoto alterou a vida de todos e os seus ecos escutar-se-ão por anos a fio. Não imaginava este tipo de regresso ao meu país. Sinto-me um quase inútil ao trabalhar nesta causa que nada tem que ver com as minhas funções.

Acompanhámos na manhã de ontem a senhorita Fernanda num passeio preparado pelo ministro. Quis que nos juntássemos os três em lugar distante das paisagens da cidade, lá para os lados de Oeiras. Providenciou o nosso transporte sem nos ter dado informação. A senhora encontra-se tão transformada, tão aburguesada nos trajares que diria estar na presença de uma outra pessoa. Os olhos e a expressão, contudo, são os mesmos, apesar da excessiva carga de maquilhagem que lhe carrega o rosto em idade e palidez. Procurei cem vezes o seu olhar na esperança de ouvir a sua voz. Nunca a tive assim tão próxima para poder conversar desde que cavalgámos sem destino para longe da loucura. Por duas ocasiões desceu até mim o seu sorriso. Não quis começar a conversa. Obteria como resposta o silêncio embrulhado no seu bonito olhar. As praias luziam ao longe e o ar tranquilizava o lado de lá das margens do rio que se fundia com o horizonte. Eram muitas as embarcações que navegavam junto à foz e se faziam ao largo. Outras tantas iam chegando, ainda em maior número, num cortejo ordenado pela brisa que lhes penteava as velas e lhes varria os tombadilhos. Sussurravam uma normalidade que fez lembrar os dias antes da tempestade. Estes navios que começaram a chegar depois do acontecimento eram recebidos com uma felicidade inusitada. As tripulações acabavam por saber da tragédia ao largo, pelo fumo e desespero que se fazia adivinhar a largas léguas da costa. Algumas sofreram com as ondas gigantescas, outras acabaram mesmo por nunca chegar até nós, tendo sido engolidas pelo mar destruidor, arrastadas sem dó nem piedade como frágeis barcaças e não mais poderosos galeões. Tentei mais uma vintena de vezes forçar a conversar com o olhar, repetindo Fernanda um simpático sorriso em dois contactos visuais que duraram pouco mais do que breves instantes. As sacudidelas tornaram-se, a certo momento, parte da própria monotonia da viagem. Um sorriso iluminado rasgou o rosto da minha companhia quando um safanão do veículo atirou a minha cabeça contra a porta da carruagem. As minhas anteriores tentativas de conversa foram derrotadas por este evento que acabou com a rotina da viagem.

- Credo senhor Bernardo, coitado de si. Até a mim doeu esse encontrão!

E assim, sem mais demora, aproveitando esta abertura na fortaleza do seu silêncio, semeei as sementes que nos concederam uma boa hora e meia de conversa.

- Foi mais o barulho do que a dor provocada pela pancada. Não se preocupe. Aguardei com alguma expectativa um momento como este. Coisa alguma me parece igual depois de tudo o que aconteceu. Ao longo do tempo que foi devorado desde então, não durmo como dormia e já nem sinto esta existência como certa.

Os seus olhos viraram-se na direcção da vidraça que se encontrava à sua direita, cedeu um suspiro profundo e manteve-se durante cerca de um minuto com a testa franzida e os olhos semi-cerrados, esfregando ligeiramente as mãos que trazia vestidas numas impecáveis luvas de linho bordadas. Voltou-se depois para mim com o olhar humedecido e disse:

- Não sei o que quer que lhe diga! Os meus segredos, tudo aquilo que desejei guardar só para mim foram-lhe entregues sem hipótese de defesa. Sabe coisas a meu respeito que me podem causar grande transtorno. Não consigo afastar a terrível sensação de que, mais dia, menos dia, acabaremos como os desgraçados que o senhor ministro pendurou pela cidade como aviso destes tempos amargos.

Este constante sentimento de incerteza é um factor que nos une. Anular os nossos receios é uma tarefa complicada no contexto actual.

- Não acredito que o senhor ministro se tenha dado a tanto trabalho para acabar com as nossas vidas sem mais nem menos. Aquilo que nos contou será apenas uma pequena parte do fulgor com o qual procurou intimidar-nos. Comigo, garanto-lhe que funcionou, conseguiu mesmo surpreender-me com aquelas palavras. E os seus sonhos? Continua a conseguir escrever neles a sua vontade?

Fernanda despiu as mãos, juntou as luvas e colocou-as ao colo. Bateu levemente com elas duas ou três vezes na mão esquerda e depois, com elas agarradas na mão direita, apontou-as para mim em forma de aviso.

- Sabe o que lhe digo, esta história de conseguir ver as entrelinhas do que está para acontecer não me tem trazido nenhuma alegria, bem pelo contrário. E respondendo à sua pergunta, sim, é verdade, continuo a ser visitada pelas premonições visionárias que tanto prazer parecem dar a esse senhor ministro. Antes de nos receber já sei exactamente o que nos dirá, daí todo o meu cansaço. Que gozo tem viver coisas que já antecipámos? Saber exactamente como tudo ocorrerá, as palavras que se dirão, as iguarias que receberemos e o resultado final de mais um dia repetido? Nenhum, ora nem mais, e causa-me uma tremenda fadiga. Até as cores das vestes me foram antecipadas, apesar de tudo acontecer em tons de cinza.

O meu receio era fundamentado. Fernanda é mesmo um inexplicável caso que nenhuma forma de humano entendimento pode explicar. Admiro a estratégia que encontrou para conviver com os seus dias.

- E esta nossa conversa? Também a antecipou? Os momentos dos seus dias são todos previstos ou existem lugares onde o desconhecido ainda mora?

E mais uma vez, com as luvas viradas na minha direcção, Fernanda avançou pela conversa.

- Serem todos ou quase todos, o que é que isso importa? A maioria dos instantes repete-se como água a desfilar num riacho e os intervalos não antecipados são a alegria dos meus dias. É uma teia, mas a aranha dessa construção não sou eu. Foi-me dada a provar esta chama uma primeira vez, e outra ainda, e uma terceira e quarta logo a seguir, como um veneno. No início da aventura foram imensas as noites passadas em claro brincando com a descoberta, amassando o barro viscoso das minhas vontades, colando-o toscamente nesses primeiros sonhos até que o dia tudo transformava em luz. O sintoma modificou-se naquela noite incómoda em que o barro parecia seco e quebradiço e o céu se turvou com as cores do fumo. As imagens correram iguais e frescas nas nossas memórias na mesma noite. Tudo nos aconteceu, memória atrás de memória, como na manhã do dia desditoso e a organização do nosso encontro encerrou um sentido que ainda hoje desconhecemos. Isso assusta-me quase tanto como esta certeza doentia de antecipar tudo o que vier. Agora é aquele momento do dia em que alguém nos vai mandar sair da carruagem para aguardar a chegada do senhor ministro neste entreposto de ninguém, a meio caminho do resto da viagem.

Tal e qual, assim, sem a mais pequena dúvida, uma visão, uma efectiva antecipação do futuro, concretizada com uma frieza assustadora, colocada entre nós sem hesitação.

- Tanta segurança nessa premonição! Não tem receio que as suas palavras possam estar erradas? Para mim é quase um absurdo que estes momentos banais lhe apareçam antecipados pela irrelevância do que possam encerrar.

Assim que acabei de proferir estas palavras o cocheiro acalmou a velocidade das montadas dando serenidade ao andamento, colocando um fim aos solavancos rotineiros do passeio. Dez segundos foram tempo suficiente para nos abrirem as portas convidando-nos para o lado de fora da carruagem.

- Vê, acha mesmo que os momentos em que estamos vivos podem ser apartados entre importantes e banais? Será mais valioso o instante em que nos é antecipada a queda de um pequeno galho de árvore do que aquele outro em que a morte de milhares nos é comunicado? O resultado final gira sempre na mesma direcção, o galho cai e os milhares fenecem!

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