terça-feira, 4 de maio de 2010

LIVRO DE BERNARDO

( livro de Bernardo - primeiras palavras de Fernanda durante os dias em que se manteve inconsciente ):

O sonho não se acalma antes de sentirmos as palavras descobrirem a fonte onde jorra a vontade, o desejo a solidão. Quando nos engole começamos a entender este outro lugar do qual fazemos parte sem fazer. Antes de sermos varridas por mais uma queda que nos lança precipício abaixo, o corpo estremece, perde-se o equilíbrio e a razão é despedaçada ao longo dessa rápida e curta viagem. Mais do que o medo ou o receio de deixarmos de ser, o isolamento que nos consagra é raro e cortante, as sensações desaparecem por toda a parte, o corpo é desintegrado, a vertigem surge implacável, e nada faz mais sentido desde esse instante. Desaparecemos, voltamos a aparecer, abraçamos o vazio com uns braços que já não nos pertencem, voamos por segundos, a luz não é igual a nada que conhecemos antes, sobrevoamos as árvores cinzentas que surgem por baixo de nós. Começamos a dominar o voo, rasamos as copas velozmente para logo de seguida nos erguermos até um céu que não está lá. Recuperamos o fôlego e picamos uma vez mais em direcção às árvores feitas de um algodão cinzento muito claro, carregadas de folhas cor de cinza e de carvão, saímos pelo outro lado da floresta como corvos, muito negros e de bicos rijos e pesados. Transformamo-nos uma vez mais num ser humano desnudado de braços atirados para trás, colados ao corpo, ganhando velocidade. Por aqui nos gostaríamos de abandonar, viajantes desta liberdade inquietante. A solidão regressa, pesada e violenta como nunca, cobre-nos com a tirania da sua frieza. Os laços que nos uniam são cortados e quando já nada nos prende a coisa alguma caímos descoordenadas no meio de um imenso nada. Por tempos que não conseguimos descrever ficamos perdidas, esquecidas de tudo e de todos, como uma semente expectante. Ao contrário dela, não nos lembramos do que fomos antes e tudo se transforma num vazio profundo, numa ausência, numa tranquilidade lancinante. Muito lentamente começamos a acordar dentro do próprio sonho, voltamos a nós e ficamos frente a frente com as imagens dos nossos receios. Passeamos por entre elas como se não fizéssemos ainda parte de si, como viajantes desconhecidas, como meras espectadoras de uma opereta sem sentido. Recomeçamos a escutar, a entender sons melodiosos que nos descobrem no vazio. Levantamo-nos e tentamos descortinar a sua proveniência. São vozes que cantam tão afinadas como pardais, são pássaros humanos, são pessoas anjo ou anjos em forma de gente, ou fantasmas que não procuram assustar, mas receber. Na escuridão melodiosa perseguimos por largos momentos aquelas vozes ímpares que nos atraem como uma luz. Não vale a pena parar, não temos membros mas continuamos a avançar até que a melodia sobe de volume, fica ali mesmo à nossa beira, aguarda a nossa chegada. Alguém liga umas luzes fortes no exacto momento em que somos esbofeteadas com força cinco a seis vezes em cada um dos lados do rosto. São tão inesperados e intensos os bofetões que a pele sai descascada das faces, arrancada aos pedaços em cada agressão. Ficamos cara a cara com o futuro assim sem mais nem menos. As imagens deixam de ser estranhas e começam a acontecer como desejámos, as palavras fazem pressão para chegar até à boca e gostam do atraso que resulta entre o momento em que os lábios as desenham e o tempo que demoram a sair. Antes de tudo começar a acontecer tal como queremos, destroem-se todos os laços e perdemos a fala para melhor observarmos o espectáculo que acabámos de provocar.

Pernas grandes, o senhor pernas grandes e mãos pesadas acaba de tombar desgovernado pelas escadas abaixo com estrondo e só parou no meio dos gritos que lança para o céu pedindo ajuda. Choros e guinchos de toda a espécie abraçaram o acontecimento oferecendo-me desta forma profana a nítida sensação de ter acabado de assistir à primeira de muitas transformações escondidas nos meus sonhos. Agradeci vezes sem conta a luz cinzenta desse dia. A escuridão tenebrosa surgiu alimentada pelo medo e pelo ódio. O mal para o meu pai chegou, finalmente, a tempo de dar descanso à minha sede. Abriguei-me na segurança que me providenciou esta demonstração. Foi o bastante para começarmos a ganhar coragem suficiente para voltar a flutuar no doce sabor da minha privacidade, incendiando os sonhos com tanta raiva que nos perdemos nas poucas hipóteses de acalmia. Mais verdadeiro não há e preocupamo-nos com o que não conseguimos dizer, preocupamo-nos com o que sai dos nossos segredos abrigado nesses sonhos cinzentos Deixamos os amigos de parte, a esperança, os pensamentos e mergulhamos nas delícias de todo aquele cinzento que nos abre as portas durante a queda.

Como são serenas as paisagens, elegantes os voos dos pássaros, elegantes as corridas das crianças que despacham os recados, elegantes os navios que sobem aos céus com as suas velas deitadas, elegantes os desenhos que fabricam ao lado das nuvens que conseguem alcançar, elegantes os gigantes que avançam por caminhos largos e cinzentos, por caminhos organizados por luzes intensas, por caminhos cruzados por outros caminhos, mais altos, mais baixos, mais pequenos ou maiores, elegantes as pessoas que correm e que andam, que se movem neste bailado frenético e irreal, elegantes como formigas a avançarem para o interior da terra, elegantes como as abelhas, elegantes como os peixes que se aventuram à superfície, elegantes como os cavalos que galopam livres pelos campos. Possuem animais estranhos que montam depois de abertos. Recebem-nos para depois os deixarem partir. Não se falam, não se conhecem, gastam o tempo e envolvem-se numa teia sem paixão. São elegantes na sua espera e as suas aspirações são elegantemente esquecidas. Passeiam uns pelos outros elegantemente perdidos e quando a noite os atinge estes viajantes não abrandam o seu empenho em continuarem elegantemente perdidos. Correm velozes em direcções iguais e opostas, avançam como punhais, arrastam-se apressados como animais esfaimados, uns por sobre os outros, como insectos, como pulgas, como escaravelhos elegantes. A sinfonia é espantosa. Por cima de toda esta multidão foram lançados milhões de invisíveis desejos de mudança. As noites são dias por aqui, não se aprecia o descanso e a morte, quando aparece para o fornecer, é observada em silêncio e como inimiga. De todas as tarefas deste povo esta é a mais escondida e esquecida. Quando os visita, ficam indolentes como pirilampos esquecidos da luz que os ilumina.

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