terça-feira, 18 de maio de 2010

TERCEIRO ACTO - continuação VII

Na raiz dos meus sonhos nasceram maleitas inquietantes e as chagas abertas pelo mal produzido são horríveis, reflectem todas as malícias e desesperos com impiedade. Navego por sujas e densas lamas, Assassino as ideias mais ternas que ousam ainda assim brotar em mim para que não possam vir a causar embaraço a tanta maldade. Sinto um ódio voraz a tomar conta desta minha alma abandonada, mutilada por tanta dor criada, por tanta maldade provocada e por tanta insensatez. Acredito não ser mais a pessoa que sabia habitar em mim. Corro novamente para me afastar de tudo como no sonho, como na realidade, como, afinal de contas, quando nada acontece como antevi. Menti a mestre Bernardo, parece estar mais abandonado do que eu neste formigueiro despedaçado. Não existe nada mais para além deste destino, deste lugar onde o ministro nos trouxe. Não percebi nada que me desse a entender o que está para acontecer, apenas esta sensação de insegurança e de medo a crescer como uma impaciência pelas pernas acima e a penetrar como um veneno pelo ventre, a rebentar com o peito como um canhão. Prefiro a incomparável sensação de estranheza que me proporciona o conhecimento do que está para acontecer do que esta restauração da normalidade, este reavivar dos sentidos comuns, esta eterna e repetida forma de solidão. O bosque é pequeno demais. Apetecia-me ter pela frente a mais densa de todas as florestas, transformar-me em lobo feroz, acompanhar a matilha em busca da felicidade da caçada, em busca do frenesi da amizade poderosa e cúmplice. Talvez consiga transformar-me nesta espécie de neblina que cresce junto às raízes e às heras, junto aos fungos e à caruma, junto ao chão irregular que me comunica o caminho a seguir. Pode ser que consiga encontrar assim o amor. Não está morto, o meu amor foi-me comunicado fora de todas as hipóteses, no fundo deste bosque. Esconder-nos-emos onde ninguém nos venha encontrar, levá-lo-ei comigo, vou raptá-lo para que mais ninguém saiba onde nos encontrar. Transformar-nos-emos em lobos selvagens, beberemos a bebida da fonte mágica que nos arrancará a pele e as vestes, que nos fará crescer as pernas, os pêlos, as mandíbulas e as garras afiadas e nunca mais seremos vistos até ao fim dos nossos dias. Esta sim, esta já é mais uma das muitas imagens que me foram comunicadas à saída da carruagem depois da chegada da importante figura. O convite que a floresta me faz é igual ao do sonho. Os mutilados e alguns dos muitos feridos caminham no bosque atrás de mim com perguntas acerca da terrível devastação que caiu sobre a cidade. Trazem consigo pás, ligaduras que os defendem das maleitas, arrastam-se como podem uns atrás dos outros todos e atrás de mim, conhecedores do seu dever, da sua função. Vêm sofrer comigo, não querem sair daqui sem obterem as respostas para todas as dúvidas que os assombram. Eu não respondo, não posso responder, tenho que conseguir correr mais do que eles, tenho de largar para trás todas estas pesadas vestes que me atrasam os passos da corrida, que me agitam as vísceras, que me fazem tremer e sentir novamente o esperançoso peso da crueldade e da maleita. Ao longe já só consigo escutar-lhes os queixumes e os passos pesados. A alegria mordaz que transbordava dos seus olhos ficou comigo, é, aliás, a única das lembranças que me pesa ao relembrar-me deste encontro inusitado. Disse-me o sonho que o meu amor estará algures escondido no mais inóspito recanto deste bosque e que não me inquietasse com os meus perseguidores. Avanço despida pelo interior deste corpo escuro que guarda o pretendido segredo. Trago os pés e as pernas tão feridos como no dia do desastre, trago o rosto lavado pelas lágrimas que nascem descontroladas, tenho a alma ferida a aguardar ansiosamente a remissão. O sábado destruidor semeou todas estas causas na minha vida, semeou as imagens da destruição e da dor com uma violência tão insuportável que me dotou a alma com as cores mais sombrias do pecado. Matei tantos e tantos com a minha vontade feita assim de luz, mutilei e feri milhares, alterei as leis com que se olhava o mundo e as coisas da fé, alterei os demónios que me perseguiam, arranquei a muitos as suas asas negras e quebradiças, mas outros tantos bem mais poderosos e arrogantes tomaram conta do que restava de mim. Ouço os anjos negros a cantarem músicas esperançosas com as vozes do coro da catedral, como se fossem puros e não pecadores. Cerro os olhos e continuo a correr na direcção desse vazio, na direcção do meu amor que sei que se encontra algures por aqui escondido, como no sonho, como num sonho que quero tornar realidade. O tempo passa e não passa mais depressa do que devia. O pesadelo não terá aqui nenhum final nem nenhum princípio, será apenas a continuação de tudo o que ainda está por acontecer. As folhas escondem alguma coisa acolá junto aos penedos, dir-se-ia a entrada de uma pequena gruta. Ao fim destes minutos eternos de corrida, destas pernas pintadas uma vez mais com as cores do sangue, vou finalmente encontrar-me cara a cara com o meu amor, tal como no sonho desta madrugada, tal e qual como no sonho mentiroso que fiz questão em não comunicar ao mestre Bernardo. Tudo está bem quando acaba bem:

(…) quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,

E que o poente é belo e é bela a noite que fica...

Assim é e assim seja...

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