quarta-feira, 5 de maio de 2010

TERCEIRO ACTO - continuação VI

As leituras que se fazem dos sonhos não são para trazer a discussão neste momento. Arrancámos para dentro das entranhas do receio e aí montámos uma obra verdadeira. Nem pensar deixar escapar este presente, deixar fugir esta hipótese, largar as cordas que nos prendem à novidade deste poder. Encharcadas até aos ossos, as vozes que escutámos avançaram como guerreiras pela solidão das nossas vidas. A vingança estava gravada nos seus corpos molhados. Lágrimas de sofrimento, de ódio, de raiva e de satisfação misturaram-se em nossos olhos, limpando-nos a cara, as mãos e os braços doridos como uma bênção. E foi assim que depois de termos provado o sabor agridoce do veneno uma primeira vez não houve forças para lhe resistir. Bebemos de bom grado todo o conteúdo da garrafa de uma só vez até tudo se repetir novamente, até tudo se toldar de novo com as bonitas cores da cinza.

*

Se Constança acordar agora será igual à parte final do meu sonho. Não largará uma única palavra, arrastar-se-á nua e semi-sonâmbula para o quarto-de-banho sem dar por mim. Se Constança acordar neste preciso instante e tudo acontecer como no sonho, entenderei esta loucura como um sinal seguro de que estamos ligados a estas histórias do passado.

*

- É aqui que o senhor ministro nos virá receber. Soltará as suas vaidades antes dos nossos bons-dias, antes até de entendermos como se fez aqui chegar.

- Caríssimos, como vão? Espero que esta pequena jornada não vos tenha dado desconforto. Vinde comigo, caminhemos juntos para gozar as delícias desta esplêndida manhã de Primavera.

O salto que dei fez prova da minha surpresa. Tal como Fernanda antecipou eis que, surgindo de nenhures, o ministro chegou como uma sombra.

- Bom dia! É sempre uma grande honra podermos falar consigo.

Avança com determinação para o interior do pequeno bosque que esconde uma vista maravilhosa sobre o mar.

- Venham, acompanhem-me neste passeio, alegrem-me a manhã com a vossa companhia.

Os sons misturam-se. Fernanda levanta levemente a pesada saia para caminhar com maior facilidade. O ministro embrenha-se num passo acelerado pelo interior do arvoredo, pára, olha para trás na nossa direcção.

- Só mais um pouco, mais alguns instantes e chegaremos ao local que vos quero mostrar.

Ao escutar estas palavras do ministro, como se estivesse à espera delas, como se de uma deixa se tratasse, Fernanda desatou a correr na direcção mais escondida do bosque. Durante breves momentos só o barulho dos seus passos fazia adivinhar o local para onde fugiu. Um outro instante veio apagar de vez os ruídos da corredora fugidia.

- Deixe lá, não ligue mestre Bernardo, em breve voltaremos a ter a sua companhia. Venha cá que temos muito que conversar.

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