terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Não somos nada...



A luz do sol ficou fraca com tantas nuvens negras de fumo semeadas pelo céu.
Cavalgamos sem propósito de chegada, avançamos sem rumo para fugir daqui. Depois se verá o que fazer com esta distracção promovida pelas artes dos infernos. Desconheço porque me são dados a conhecer episódios destes antes de existirem. Passo a fazer parte das suas consequências instantes depois de me serem dados a entender.

Desejo sair daqui, abandonar estes cenários como uma desesperada em busca de forças para resistir, para continuar a avançar. A solidão passaria despercebida se eu não tentasse adivinhar os porquês de tanto desconsolo e de tanta miséria provocada pela destruição que limpou a cidade, se não me viessem à memória as imagens, os cheiros e os ruídos antes destes acontecerem, depois de acontecerem e durante todo o tempo em que estes, efectivamente, subsistem. É como se nada fosse real, como se nada disto esteja realmente a acontecer. A única verdade que sai desta manta branca onde me refugio, é este vermelho que sai de mim e que lhe vai servindo estranhas tonalidades rosadas, manchas de carmim e rosa escuro que me enfeitiçam o olhar e me mantém acordada e com forças para não largar o corpo do cavaleiro. Se me dessem descanso e consolo, estas memórias do que já aconteceu não mais as largaria. O chão vai pedindo a minha presença através da rapidez com que passam as linhas desta cavalgada pelos meus olhos mortiços e assustados. Sinto os olhos pesados e o corpo leve como nunca antes o senti. As minhas mãos ficaram geladas de repente, trementes deixam escapar as forças necessárias para sentir o meu desejo. Escorrego pelo corpo do cavalo que me atropela sem intenção durante a queda e desapareço deste lugar para uma escuridão quente que me acolhe como um perfumado berço de princesa.

Lá longe onde as luzes se apagam, onde os passos deste estranho bailado são estudados, dei conta da queda deste pequeno anjo em forma de rapariga. Sem tempo para o evitar, a rapariga deslizou suavemente pelo Felício que a atingiu com a pata nesse seu voo. Ficou desfalecida no meio do chão, afligindo-me ainda mais este pavoroso início de tarde.

São tantas as cores deste lugar, tantas e tão tranquilas, tão diferentes das outras de onde vim. Nada aqui é parecido com qualquer coisa que me tenha sido dado a conhecer anteriormente, como se tudo, subitamente, passasse a fazer sentido apagando-se de vez todas as mentiras, todos os pedaços sujos que me atormentavam a existência. Sinto-me leve e tão tranquila, transportada pelo ar com este imenso à vontade, como se cavalgasse numa nuvem de espuma perfumada e morna pintada com as perfeitas cores de um arco-íris.
Não sabia que o medo transporta asas pelos céus para nos brindar o corpo com esse presente. Senti o peso desaparecer e o caminho tornou-se mais curto e seguro, mais suave. O tremendo desespero que varreu Lisboa não faz parte deste sonho. Deixei que os pedaços de silêncios sinceros e profundos que tomam conta deste lugar me trouxessem o seu calor, me aconchegassem os medos até que estes não mais fizessem parte da minha existência. Lembro-me do corpo perder peso e equilíbrio, das forças a fugir. Lembro-me das últimas gotas vermelhas a voar até ao manto branco do corcel e lembro-me do ruído que se seguiu, forte e agudo, seguido de um vazio, seguido deste instante.