domingo, 4 de abril de 2010

SEGUNDO ACTO - continuação X


Mais não consigo. É impossível julgar estes propósitos como inspirados por uma mão sagrada. Foi tão destruidora a sua maré, tão devastadores os seus efeitos, que as sementes do caos germinaram todas no mesmo instante por debaixo da nossa amada cidade. As atmosferas não são mais as mesmas, as conversas afastaram-se dos seus caminhos e perdem-se em processos quase enigmáticos procurando apenas as razões de tantas desconfianças e receios. Os senhores das trevas podem estar escondidos atrás de qualquer porta, escondidos na noite, escutando as nossas mentes dando conta do medo e da desconfiança que existe em cada um de nós. O meu senhor Lefébvre sabia bem mais do que me disse. Mas como, ainda hoje me pergunto? Como foi possível saber das coisas antes de terem acontecido. Deixou-me a alma despedaçada, o corpo tremente, as pernas demoraram dias para serenar e não consigo olhar o dia de amanhã sem esquecer aquelas palavras e o olhar do seu amigo médico. Que provas tinham daquilo que estava para vir? Acreditou que um qualquer sonho mau nos podia salvar daquele inferno, como um milagre. O medo e a confusão por vezes dão cabo de todas as esperanças. Fugimos rumo a um qualquer desconhecido porque acreditámos que não iríamos morrer ali, naquele dia, naquele instante, e conseguiram assim salvar tantos além de nós. Em Santarém as pessoas continuam surdas e mudas. Muitos são os que para aqui vieram subindo ao longo das margens do rio. Procuram familiares e amigos, procuram auxílio na tentativa de conseguir encontrar respostas, comida e conforto, um qualquer conforto que possa devolver a crença num Deus que nos proteja. Este fechou os olhos e a razão quando mais precisámos dele. Nesta casa de meu senhor nada foi afectado. Os tremores e a miséria por que passou a nossa Lisboa precipitaram ondas de choque e de horror por todo o país. Dizem que em Espanha e no Norte de África tudo abanou, como se o monstro que estava escondido nas entranhas da Terra a quisesse estilhaçar. Os mares subiram ao topo dos edifícios num barulho descomunal, tudo arrastando à sua passagem. As barcaças e as gentes, as construções frágeis e as resistentes acabaram dilaceradas. As águas recuaram e levaram grande parte do que tinham destruído largando tudo no mais frio e gélido dos silêncios. Impressiona agora mais este sossego, esta nova maneira de esconder as palavras, do que tudo o resto. Temos medo de falar, temos quase medo de respirar. Temos medo de olhar para o céu e saber que nele já nada mora, nem anjos, nem o nosso Deus, nem a virgem Maria que a todos devia protecção. Esta alteração profunda na fé cozinhou na alma do povo um pavor inimaginável. Não sabemos mais em que acreditar, a que Deus e a que santos rezar, a que suposta luz de esperança nos dirigir. Não dominamos os nossos receios. Todos se olham com imensa desconfiança e esses olhares rápida e irreflectidamente se deslocam na direcção do chão fugindo do contacto directo. Fogem por não sentirem mais a tranquilidade e a certeza dos dias que virão. As magias das curandeiras e videntes parecem estar de volta, o senhor rei, dizem, refugiou-se num palácio de pano, sem paredes ou vidraças com medo que tudo volte a desabar e lhe possa causar a morte ou um sofrimento atroz por vias de ferimentos.

Aos três dias seguintes a esta imensa dor chegou a satisfação de todos terem aqui chegado são e salvos, A Irene e a Laurinda primeiro, a Eulália e o Simplício mais tarde. O senhor Lefébvre encarregou-se de fazer chegar ordens para que tudo se aprume e organize como na casa de Lisboa. As obras por lá já começaram. Foram muitos os estragos causados na casa da capital. Parece que nestes primeiros dias vai ser muito complicado vir até Santarém pois são muitos os afazeres que o irão manter no hospital. Muito trabalho, muitas vítimas, muitas coisas e assuntos a tratar e o senhor ministro do reino que parece ter novas e importantes tarefas para o meu querido senhor Lefébvre. As saudades são tantas, como imensa a minha alegria ao saber que estava bem e que o terrível abalo não mo roubou, como aconteceu a tantos milhares de almas. Já consigo olhar para os outros, consigo olhar para o céu e para a linha do horizonte lá ao longe, junto às longas e direitas margens do Tejo. Consigo até olhar para cima e pensar que no céu nasce uma esperança, uma qualquer esperança ou uma fé num outro Deus mais atento e misericordioso do que o que deixou destruir grande parte do nosso Mundo. Continuo a querer o meu Lefébvre de volta, sentir-lhe o calor e provar da sua fé incalculável. Quero voltar a ouvir o doce som das suas palavras, beber do seu sorriso e passear novamente pelo seu olhar verdadeiro.


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