Nesta vertiginosa e curta viagem são mais os pontos de contacto com tudo o que já fomos e voltaremos a ser do que aquilo que supúnhamos. Nada destes meus sonhos me parece demasiado estranho, apesar de toda a destruição, dor e miséria que me transmitem os locais e os trágicos acontecimentos, trespassa-me depois uma morna sensação de aconchego que muito me tranquiliza. Este descanso que tanta falta me faz durante o dia, acaba por chegar através do conhecimento e dos ensinamentos que estas viagens nocturnas me proporcionam. O sol não entra aqui, mas as palavras e as acções de todos os que me acompanham ao longo do passeio ao passado, devolvem-me a sua luz e o seu calor, destroem a minha miséria e confortam-me a solidão. Lembro-me de Alberto Caeiro que desejava trincar a terra toda, desejava sentir-lhe um paladar, seria mais feliz um momento se a terra fosse uma coisa para trincar. Essa terra que se abriu nas suas entranhas e resolveu mostrar o misterioso poder da infelicidade, porque é preciso ser de vez em quando infeliz para se poder ser natural… e recordei acima de todas as outras, estas palavras:
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...
E depois olho para mim neste espelho de quarto de banho, observo esta barba por fazer, este grisalho que me vai pintando o aspecto, e vejo que tudo é assim natural e calmo, como uma fonte. Também são naturais estes sonhos, estas mensagens que surgem misteriosas do passado, do futuro, daquilo que não conseguimos verdadeiramente decifrar e que depois, como que por magia, se entrelaçam num fio tão sedoso e puro, tão delicado e resistente como a pétala de uma rosa, como o sopro perfumado da primeira brisa desta primavera acabada de chegar. As minhas vontades são apenas as de deixar antecipar esta naturalidade e dar a conhecer a outros que tudo deve acontecer como nos dizem as palavras de Caeiro, e devemos sentir como quem olha, devemos pensar como quem anda, devemos ser capazes de atravessar a vida sem nunca termos pena de olhar para trás.
Os dias são agora maiores, mais saborosos e temperados. As desabadas ruínas de tantos e tantos edifícios destruídos vão parecendo delicadas construções que só desejam fazer parte de uma nova história. O senhor Ministro tem tantas ideias, tantos projectos vertiginosos que quase ninguém parece acompanhar com clareza a rapidez do seu raciocínio e as suas visões. Além de nos ter proporcionado condições mais do que suficientes para trabalharmos em conjunto, trouxe os mais reconhecidos arquitectos e engenheiros militares para devolver a esta cidade destruída uma alma nova, como já lhe ouvi dizer por mais de uma dezena de vezes. A rapariga ficou milagrosamente faladora desde que abriu a boca naquela primeira vez em que foi imediatamente interrompida com vigor e rispidez por dom Sebastião. Até o meu fiel Felício parece outro. Anda com uma posse mais tranquila e é grande o sorriso que consegue fazer transparecer dos seus imensos olhos negros. As visões claramente futuristas que Fernanda nos deu a conhecer durante a sua ausência estão agora mais fortes que nunca. São comunicadas em reuniões privadas com o Ministro e os seus arquitectos. A vontade de tornar rapidamente a colocar de pé e a dotar esta nossa bela capital de uma luz e de uma decência próprias dos grandes impérios, não é coisa que se consiga esconder por aqui. A preocupação em conseguir dar segurança a tudo o que venha a ser levantado e construído trazem os engenheiros numa azáfama de tal ordem, num intenso corrupio e em constantes discussões. A sensação que me causa esta sucessão de agitadas manhãs é de que nada conseguirá resistir ao estranho fulgor e vitalidade que este Ministro faz transbordar de si por todos os seus poros. Deve dormir, se tanto, umas duas a três horas por noite. Preocupa-se com os pormenores e com os mais pequenos detalhes. Conseguiu reunir um estaleiro tão gigantesco num tão curto espaço de tempo que não sabemos mais se a destruição que ainda se vislumbra um pouco por toda a parte se deve ao terramoto de há meses ou se aos trabalhadores incansáveis que vão limpando, descarregando materiais, montando estruturas e passadiças de madeira, pequenas pontes e acessos a ruas e vielas destruídas, alargando em espaços amplos todas as zonas mais danificadas, criando pequeníssimos rossios onde se improvisam de imediato toda a espécie de pequenos mercados, onde se montam e se trocam toda a espécie de produtos de primeira e de outras necessidades também. O povo continua muito amargurado e pessimista. Vão demorar anos, décadas talvez, até que as cicatrizes profundas de toda esta destruição possam sarar definitivamente. Se todos pudessem sentir o que sente este ministro, este personagem poderoso e visionário, as coisas poderiam passar-se de uma outra forma. Conseguiu até fazer com que os nossos eternos aliados nos ajudem nesta gigantesca empreitada, prometendo-lhes contrapartidas de toda a ordem e espécie, desde que as suas programadas e antecipadas visões de reconstrução da Lisboa destruída possam vir a arrancar no mais curto espaço de tempo.
Tenho de fazer a barba, quatro dias é o tempo mais que suficiente para constatar que não me fica bem este “look” à “doctor House”. E agora, mais uma vez, tal como há pouco, mais palavras de Caeiro a serenar esta minha rotineira tarefa matinal:
Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou...
Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos!...
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