sexta-feira, 9 de abril de 2010

TERCEIRO ACTO


Para subir agora de volta à realidade nada melhor que acordar com mais uma imensa dor de cabeça. Porcaria de sonhos que se repetem por noites consecutivas sem me deixar descansar. Estas viagens ao passado são tão cansativas como enigmáticas. Apesar do desejo de repouso, coisa que já não consigo fazer há algum tempo, estes sonhos têm um tempero tão delicioso, tão autêntico, e surgem carregados na igual medida do medo que me provocam. Pareço uma criança com um brinquedo novo ao passear adormecido pelo nosso passado, estar ali, cara a cara com tão importantes figuras da nossa história, com personagens tão vivas, tão reais, tão assustadas e tão dignas no peso da sua dor. Das primeiras vezes acordei como Bernardo, alagado em suor, transpirado pela surpresa que me causou uma tão intensa sensação de real. Passei as horas seguintes à primeira experiência marcado pelo receio em voltar a adormecer. Foi tão desagradável ter mergulhado no passado com tamanha violência, mais uma vez, tal como o médico que visitei, tudo a preto, cinzentos e brancos muito luminosos sempre que as personagens falam sem abrir a boca, sem pronunciarem uma única palavra. E tal como Mestre Bernardo, serei capaz de dizer isto a alguém? Qual seria a reacção da Constança se lhe contasse estes estranhos sonhos que se repetem noite após noite? - É sim querida, estas pessoas existiram mesmo por alturas do grande terramoto de Lisboa de 1755. Imagina só! Um médico de renome na época acordou em sobressalto ao perceber que o terramoto lhe foi comunicado num sonho com configurações muito particulares. Vai daí, e apesar do receio de o julgarem louco, deu conta desse sonho ao amigo e companheiro de profissão, um francês que com ele trabalha no hospital de todos os santos. E não é que tinha razão! Salvaram-se alguns doentes mas a maior parte do hospital acaba por ser pasto das chamas e da hecatombe que destruiu grande parte da cidade. Mortos e mais mortos por todo o lado e eles ali, como heróis, a olharem um para o outro. É então que chega ao Rossio uma rapariga que se julga dotada de poderes divinatórios. Esta olha para o médico, reconhecem-se sem nunca antes se terem visto e abalam a galope num cavalo branco para parte incerta. Mas o mais estranho do sonho ainda me falta contar! A rapariga acaba por cair do cavalo, entra numa espécie de coma e começa a dizer coisas estranhas acerca do futuro da cidade, adivinha com exactidão quando surgem as réplicas do terramoto e faz outras surpreendentes descrições do que ainda está para acontecer. Essas bizarrias queria o médico guardar de ouvidos indiscretos, só que, e agora agarra-te bem que esta parte do sonho é o máximo, o Marquês de Pombal, na altura ministro do rei, soube da sua existência, da sua condição e das suas estranhas palavras. Foi ter com os dois ao hospital, com esse tal médico de renome e com a rapariga, mandou sair todos os que com eles ainda se mantinham naquela ala hospitalar e, surpreendentemente, diz-lhes que também ele consegue adivinhar o futuro, pensava até que era o único a quem tal coisa acontecia. Ao saber da história deste casal assim unido por tão estranho destino, resolveu transformá-los em seus aliados dizendo o seguinte: - De agora em diante, as nossas vidas não avançarão muito distantes umas das outras. Teremos de saber honrar esta virtude!” – tal e qual! Lembro-me tão bem destas palavras, e consigo ainda sentir-lhes a respiração e ver as caras de pasmo que os dois fizeram ao escutar a confissão do Marquês. E então Constança, o que pensas destes meus sonhos? Já agora, e só para teres noção da verdadeira dimensão deste meu “problema”, faz já três semanas que esta história se vai desenrolando, capítulo atrás de capítulo, com detalhes tão assustadoramente reais que até os cheiros me chegam ao nariz. E olha que a maior parte das vezes preferia não ter que os sentir. Em sonhos é possível ser corajoso e arriscar as sentenças que nos podem fazer passar por louco ou doido varrido. E como é fácil antecipar-lhe as palavras de gozo e de troça caso lhe contasse mesmo tudo isto. O mais fantástico seria ver a cara de Constança ao explicar-lhe o verdadeiro motivo das noites mal dormidas, do meu cansaço e da minha continuada dor de cabeça. Não posso insistir por muito mais tempo neste ritmo nebuloso dos sonhos. Causam-me mais fadiga que muitas horas seguidas a fazer urgências.

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