terça-feira, 13 de abril de 2010

TERCEIRO ACTO - continuação II


Um brilhozinho extra nos teus olhos não me fazia nenhum mal. Sabes que não se consegue respirar mais como dantes. E os religiosos que apontaram o dedo acusador aos infiéis, a todos aqueles que não cumprindo com as suas obrigações cristãs foram punidos pelas enigmáticas e purificadoras forças do Senhor. Não deixa de ser curioso como foram rápidos a encontrar um motivo que não fizesse causar ainda mais dúvidas sobre a própria existência de um Deus benevolente e misericordioso. Foi o povo descrente e pecador que causou, segundo a teoria de muitos destes senhores da igreja, a ira de Nosso Senhor, tendo assim precipitado tamanha punição para cima da população desta cidade de todos os vícios. Não se vislumbram grandes mudanças na dor invisível do povo amargurado, nem sinais de que uma qualquer esperança misericordiosa, uma qualquer fé se transfigure rapidamente em esperança. As pessoas parecem transparentes, parece que perderam as cores, caminham como fantasmas, como sombras, sem se olharem, sem procurar a quietude e o abrigo de uma conversa, de uma troca de ideias por pequena que seja. Os serviçais andam mudos e sombrios, a minha amada Rafaela ainda não consegue passar um dia sem que os olhos se turvem com as recordações do pesadelo, das minhas ordens que precipitaram a rápida fuga para longe da cidade a todos providenciando a salvação. Ainda hoje não consigo falar sobre este assunto com o bom amigo Bernardo. Sabemos que hoje nada é igual a tudo aquilo que já foi. As suas imagens, os relatos que fez sobre o que estava prestes a acontecer, a temperatura amarga e muito salgada das suas palavras estavam temperadas com uma tamanha convicção que tudo teria de se passar como acabou por acontecer. As pistas eram claras demais para não lhes dar crédito. Ainda bem que o fiz! Estava na hora de fazer abalar os alicerces da nossa compreensão, de abalar esta nossa firmeza assim como a forma de entender a própria realidade. E agora acreditamos, porque reagimos ao óbvio, em coisas muito complexas e de difícil entendimento, ainda mais para homens de ciência como nós. E Rafaela passa muitas noites abrigada no meu leito, serpenteando as suas formas por debaixo dos lençóis que ela própria se dedicou a perfumar. E sem quaisquer palavras, como fantasmas, procuramos o abrigo para as nossas vinganças e para os nossos receios. Guardamos para mais tarde todas as questões para as quais não conseguimos obter respostas. As sensações produzidas pelo toque da sua pele, com os seus seios delicados a responderem melhor às minhas dúvidas do que qualquer sábio ou estadista, são tudo o que necessito nestes dias mutantes. O seu rosto e os seus cabelos descansam em mim, as mãos procuram despedir-se em carícias no meio dos nossos sentimentos embaraçados, e apenas desejamos que estes instantes não se desmoronem como tantos edifícios, palácios, a ópera e as catedrais, que não acabem destruídos no meio de um chão em cinzas. Passeamos um pelo outro, num só segundo, todas as vidas deste mundo, todas as que existiram e todas aquelas que ainda estão para acontecer. Ao fim de mais uma madrugada, ondula por debaixo das colchas para longe do quarto pois outros afazeres a aguardam no dia que já se adivinha. Fico invariavelmente acordado o resto do tempo de duração desta penumbra. Tento descobrir palavras no tecto do quarto. Tento perceber se os meus sonhos, tal como os de Bernardo, alguma vez poderão vir a transformar as visões do nosso futuro.

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E depois de tudo, depois de todas as incertezas e ruídos, de todos os pedidos feitos a quem nos possa ajudar a olhar em frente, nada consegue substituir esta certeza única. Caminhamos nos nossos corpos sem ruídos de fundo, pintamos com os sons que provocamos um no outro, uma alma só nestes instantes, uma assinatura num momento, num fluxo, e o ar enche-se de sal, de calma, de prazer tão intenso como intensa são as pegadas que deixamos nesta vida. Não quero deixar Lefebvre esta manhã, não quero. Vou voltar para trás, hoje vou tentá-lo a não me deixar sair tão cedo da sua companhia. Vou ajudá-lo a ajudar-me. Hoje não quero deixar de sentir a tranquilidade do seu calor, pelo menos por mais um breve e eterno instante.

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