quinta-feira, 22 de abril de 2010

TERCEIRO ACTO - continuação IV


Chegaram à conclusão que o país está todo destruído. Muito terá de ser reabilitado, a maior parte da cidade terá de ser reconstruída mas as feridas mais profundas são invisíveis, estão soterradas dentro da alma do povo. Como seria se uma catástrofe com as proporções do grande terramoto visitasse a cidade nos dias de hoje? Quem consegue imaginar as reais implicações causadas por um acontecimento assim tão devastador numa cidade que tem tanto de moderno como de antigo, que tem mais de caótico que de planeado, que ainda respira os ares de ontem e não se preocupa em antecipar nos seus alicerces as implicações de um mais que provável regresso da tragédia. Ninguém introduz estes dados no presente para relativizar os prejuízos que causará esse futuro calamitoso. Quando chegar a fatídica hora os resultados serão arrasadores. Sempre assim foi, com a rara excepção desses tempos de reconstrução do senhor marquês. Com o carácter de um visionário e a celeridade de um predestinado, inspeccionou e antecipou, programou e projectou com irrepreensível organização e método um conjunto de medidas inéditas e revolucionárias para a época. Juntou os mais hábeis e dotados, criou equipas de trabalho excepcionalmente orientadas e preparadas que projectaram e iniciaram a reconstrução da cidade com a ajuda das mais avançadas tecnologias e engenharia da época. Compreendeu como ninguém as implicações sociais e políticas proporcionadas pela catástrofe e transformou esse acontecimento no seu mais inesperado aliado. Enquanto a maioria do povo ainda não tinha entendido o que acontecera, já Sebastião de Carvalho e Melo entendera que a sua hora tinha chegado embrulhada nesse presente envenenado, nessa forma maligna de desejar um bem através da requalificação natural de toda uma cidade, de todo um país. Sei que foi o próprio que antecipou essa verdade e sei que dominava os segredos e as configurações do futuro através dos desenhos que fabricava nos seus sonhos como se fossem impérios manietados a seu bel-prazer.

- Os libertadores chegaram mas ainda não entenderam a loucura dos momentos.

Estes sinais estão por toda a parte e em parte alguma. Podem ver, observar directamente os olhos do tempo mas não entendem nada das suas razões e das suas manias. Vou escrevendo os avisos e todas as desarmonias nestas paredes húmidas e gastas que uso como folhas. Encho-as para que saibam que me assiste a razão. Aprenderam a minimizar as minhas ideias como se entendessem apenas a loucura que me veste a mente, que me sai desconjuntada pela boca, desconexa e enigmática, transfigurada e metafórica, ao contrário das imagens e das centenas de visões que me visitam ao luar. Meu irmão julgava ser o único a usufruir destas verdades. Quer passar incólume sem disto dar notícia, escondendo estas miragens e estas estadias. Erro meu, erro tremendo ter ousado confessar-lhe uma única vez a visita desta dádiva alucinada. Tenho de dar crédito aos libertadores, todos teremos de ouvir e decifrar as suas mensagens. Estão carregadas das mais puras verdades e prometem indicar-nos os caminhos a seguir. Meu irmão mais não fez que promessas de destruição e oculta a minha existência com a mais vil das escuridões e das maldades. Encerrou-me na obscuridade, afastou-me e procura agora os proveitos da dádiva para benefício próprio. Atirou-me para estas masmorras de loucura e amordaçou-me o raciocínio com infâmia. Os libertadores são os meus mais próximos aliados. Como fantasmas percorrem as estradas da minha loucura e arrancam-me as forças para mais um ou dois dias de trabalho, para me lamentar nestas paredes e neste chão com a perícia de um escriba amordaçado que não se dá por vencido. Tenho de conseguir voltar a sonhar com o azul do céu sem estas grades. Se conseguir esse desígnio, conseguirei voltar a dominar o dom como nessa primeira vez, essa aberrante primeira vez que me deu a provar os cheiros e as sombras deste cárcere maldito.

Antónia dorme sossegada. Não se apercebeu que mal dormi esta noite com tamanha agitação. Mais outra viagem a esse passado atormentado, mais um episódio como os outros, tão real que os odores continuam a tingir-me as narinas com as essências desse tempo. A vista deste nosso quarto de hotel é perfeita. O Vesúvio dominador intimida o viajante pouco acostumado com a sua imponente figura. Juntamente com o imenso Atlântico transformaram a paisagem Napolitana num cenário carregado de histórias. Encontramos as suas marcas seculares ao longo de toda a costa. Anda a consumir-me esta ideia de lhe dar conta de tudo, de lhe dizer como foi que aconteceu a descoberta daquele terramoto antes de ter acontecido. Aquele médico estava tão preocupado com a segurança dos seus amigos, foi uma tão intensa sensação, que até me arrepiei. Tive suores frios naquele momento, e tudo era real como só nesta parte da existência nos é dado a conhecer. Não sabia as ordens que o esperavam. Desde que ele e Fernanda passaram a ser próximos do ministro, este tem procurado cuidar mais das conversas que mantém com a senhorita do que dar-lhe ordens ou delegar-lhe tarefas de relevo. Continua expectante, entretém-se com os seus relatos e estrutura o melhor que sabe e se recorda as palavras de Fernanda em páginas e mais páginas de informação. As primeiras eram estranhas e ousadas, mesmo incómodas. Não era difícil imaginar o seu impacto ao chegarem às mãos de um inquisidor. Tem passado os dias nessa tarefa monótona mas perigosa. Admirou-se com a novidade que o ministro lhes comunicou e ainda tem sérias dificuldades em abranger a real dimensão dos acontecimentos. Colocou nas folhas que escrevinha as palavras onde estes pensamentos se formaram, para não se esquecer, como se tivesse inventado um beliscão literário que o prende à realidade. Insiste e impregna os dedos de tinta e de suor, de muitos receios. Junta aos relatos de Fernanda muitas ideias suas sobre o que dela foi ouvindo e não sabe se o que vai construindo é aquilo que inicialmente lhe foi encomendado. O documento adquiriu uma vontade própria, tão própria que a história que ali se levanta não é mais o que lhe foi relatado, nem a maneira como interpretou, nem tão pouco a transcrição fiel de tudo o que ouviu. As mãos deixaram de ser fiéis ao acontecido e passaram a voar ligeiras pelas folhas com o passar do tempo. Está a construir uma outra coisa para a qual ainda não descobriu o nome. A essa parte da história não quer dar conhecimento ao ministro, e o receio que seja o próprio ministro a ter assim construído essa verdade por força da sua espantosa e ímpar qualidade, trás o nosso médico num sufoco contido do tamanho do próprio vulcão Vesúvio em vésperas de rebentar.

Tenho de acordar Antónia ou ainda perdemos a hora do pequeno-almoço e grande parte desta bonita manhã de Abril.


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