quinta-feira, 8 de abril de 2010

SEGUNDO ACTO - continuação XI


- Não se consegue vislumbrar nada de sossego, nada de esperança. Os segredos voltam a desaparecer e as estátuas que somos, estátuas de sombras e de receios, são como pequenos peões quando confrontados com esta determinação que o senhor ministro não deseja esconder. Quer aproveitar este doloroso momento para criar algo de verdadeiramente grandioso. As palavras da jovem senhora apareciam e desapareciam em momentos desgarrados e muito dificilmente lhes conseguimos dar algum entendimento de razão. Para mim continua a ser uma surpresa a sua vinda até nós apenas para tentar saber as razões destes delírios.

- Está a ser provocador caro Mestre Bernardo! Para quê tentar fugir da minha vontade com essas tentativas fúteis e pouco inteligentes que só me conseguem causar um enorme aborrecimento? Peço-lhe, não repita semelhantes sentenças e agora, de uma vez por todas, diga-me exactamente que leitura fez das misteriosas palavras da senhorita.

O ministro não desarma. Existe nele uma força e uma determinação inabaláveis! O senhor médico encontrou esta barreira e terá de ser verdadeiro no relato que fará de tudo aquilo que eu disse. Surgem-me imagens de nuvens muito baças que me fazem recordar partes difusas desses sonhos, como se tivessem combatido contra um inimigo feroz e desejassem voltar para este seu secreto abrigo. São partículas de paisagens carregadas de ruídos estranhos, irreais, de máquinas de ferro que percorrem alinhadas em longas filas caminhos escuros e sujos, ora desaparecendo nas entranhas da terra por entradas que as engolem sem descanso, ora atravessando a paisagem caminhando por cima de construções gigantescas, pontes e arcadas que transformaram todas as paisagens da cidade. O rio não é mais uma barreira e por sobre si cresceram ligações inimagináveis que estes animais de ferro e fumo percorrem sem descanso. E no céu, por cima de toda esta inqualificável e indescritível confusão, mais máquinas o atravessam como pássaros do demónio, carregando sabe-se lá o quê nos seus ventres monstruosos, vomitando fogo e fumo na direcção contrária à dos seus voos. Não existem animais neste inferno de mau cheiro, não se percebem as vontades das pessoas nem os seus propósitos, não se consegue entender por onde tanta gente se movimenta no mais anárquico de todos os formigueiros. A cidade é a nossa Lisboa, adivinhei-lhe o castelo que permanece no seu alto posto a fazer de vigilante da cidade. Tudo o resto é algo que não consigo sequer arriscar-me a descrever. Se foi esta visão bizarra aquilo que relatei enquanto estive esquecida durante estes dias de silêncio forçado, o que não terão imaginado todos os que me escutaram. Os meus dias estão certamente contados!

- Senhor Ministro, não me recordo muito bem dos meus estranhos sonhos, não sei sequer se posso arriscar pronunciar-me sobre aquilo que outros me ouviram dizer enquanto eu estive ausente.

- Caluda! Mas que impertinência a sua! Será possível que ainda não tenham percebido o que aqui me trouxe? Acha porventura que foram apenas os relatos feitos deste seu estranho caso que forçaram a minha vinda até vós? O que mais me irrita é esta continuada tentativa de forçarem a conversa para outros caminhos, julgando que não sei mais do que aquilo que me tentam esconder! Estais vós completamente toldados por uma súbita estupidez ou são movidos apenas pelo medo daquilo que sentem, daquilo que já sabem mas que ainda só entendem de maneira superficial? Os vossos sonhos são idênticos, o que vos une é a mesma razão e a mesma sensação. Quando moldamos as forças do futuro através do domínio que fazemos aos nossos sonhos, tudo o que julgamos poder vir a acontecer acaba mesmo por efectivar-se. Caso o desejemos com a maior de todas as forças, caso o antecipemos por intenções coladas na alma com a mais estranha das convicções, assim o futuro nos trará essa vontade. E ficamos com aquele arrepio a deslizar pelas costas abaixo até que um intenso formigueiro nos entorpece os sentidos. Sim, é verdade, também eu consigo antecipar as estranhas forças do porvir! Até esta data julguei ser o único a conseguir dominar a dinâmica dessa influência perversa. Vejo agora, sei agora, através das vossas caras, das vossas cores e da maneira como tentam fugir com as palavras a tudo o que já vos questionei, que é igual o que sentimos, que são iguais estas forças que carregamos. Estas palavras têm de ser transportadas até um local recôndito onde podemos ajustar tudo aquilo que acreditamos estar para acontecer, sem receios nem nenhum drama. Pense bem Mestre Bernardo, recorde-se como as dores sentidas por si na véspera do dia da calamidade foram bem reais, tão reais e verdadeiras que sentiu um aperto violento que o impeliu na tentativa de salvar algumas almas antes que o misterioso e catastrófico acontecimento tomasse conta desse dia. E como a terrível confirmação não se podia dar a conhecer antes de acontecer, descarregou no seu amigo essa ansiedade e muito do seu pânico, só não sabia ao certo o momento exacto do início da destruição. E se pensar bem, se recuar bem ao início do seu sonho, todas as imagens da praça após os primeiros violentos abalos aconteceram tal e qual, sem nenhuma diferença, com uma espantosa e irrepreensível exactidão, sendo tanto mais espectacular nessa louca reprodução quanto bizarra a maneira como a pequena senhora lhe apareceu à sua frente, cara a cara perante o infortúnio, cara a cara, confirmando as vossas premonitórias visões. Não tenho vontade em dizer mais, não preciso de dizer mais. Não voltem a repetir falsidades com o único objectivo de fazer condicionar a confirmação destas evidências. Não somos pessoas como as outras, transportamos esta generosa qualidade de nos serem antecipadas as visões do futuro e temos de nos mostrar dignos de tamanha responsabilidade. Torna-se quase indispensável comunicar-vos a razão desta minha visita, agora que as cartas já se encontram em cima da mesa. De agora em diante, as nossas vidas não avançarão muito distantes umas das outras. Teremos de saber honrar esta virtude.


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