quinta-feira, 15 de abril de 2010

TERCEIRO ACTO - continuação III


Não faltarei a esta chamada. Não demoraremos mais de dois dias a tomar como certa esta evidência. Estamos a escassos momentos de reabilitar a cidade destruída com planos tão maravilhosos quanto seguros. Muito se aprendeu com a lição dada pelos sonhos. Pensa que o desejo de destruir toda a cidade lhe surgiu assim vindo do nada. Imagina que as suas pequenas vontades de vingança possam estar por detrás destes poderes que mal domina. E, no entanto, consegue vislumbrar e descrever paisagens, objectos, construções gigantescas de dimensões que claramente ultrapassam tudo o que hoje é do humano entendimento. Consegue descrever com pormenor a existência de autênticos formigueiros humanos, onde todos se movimentam num perpétuo ziguezague, descendo por buracos abertos nas vísceras da terra, voando pelos céus nas entranhas dos mais estranhos animais reluzentes que cospem fumo e fogo como dragões, onde tudo parece caótico mas, simultaneamente, estranhamente articulado. Essa sensação de abismo existencial levita por cima de todos os habitantes da cidade nesses dias que estão para chegar. Afirma que nada irá restar, que tudo, tal como no dia 1 de Novembro do ano passado, se transformará em fogo, fumo e poeira, que as águas voltarão a precipitar toda a sua fúria por cima dos habitantes desta terra, que as imagens de horror e de destruição serão de tal maneira multiplicadas, que nada do que antes possa ter sido julgado como um massacre se comparará a mais esta vontade do ignóbil príncipe das trevas. Conseguiu descrever com tamanha minúcia e detalhe as largas avenidas e as iluminadas fachadas dos edifícios, das arcadas e dos geométricos ideais de uniformidade das novas ruas da cidade como se tivesse passeado nos mesmos sonhos que me entretive a construir. Descreveu as praças, as avenidas, as formas alinhadas e organizadas que nascerão nos desenhos, nos projectos, nas plantas e nas maquetas. Relatou-me, para meu supremo espanto, a minha inimaginável ligação a Nero, ao colar os meus sentimentos aos seus quando encarei as extraordinárias chamas de Lisboa e, por instantes, viajei até uma das varandas do palácio do imperador. A importância que a minha intervenção vai deixar para o futuro deste país, segundo as suas palavras, ficará bem visível aos olhos de todos por muitos e bons anos. Se é verdade que não necessitava destas confirmações para seguir em frente com os meus propósitos, o certo é que a segurança que me proporcionaram, aparentemente, afastaram as poeiras de incerteza que começavam a germinar dentro desta vontade. A partir de agora não mais cairei nas malhas da hesitação. Transfigurarei a meu bel-prazer e à minha imagem os acontecimentos que se seguirão conforme estabelecido. Continuaremos a dar uso desta ferramenta improvável que nos foi oferecida, esta capacidade espantosa de manipular o destino através da manipulação dos sonhos. Inscreveremos aí todas as construções, todos os ideais, todas as megalomanias e excessos, todos os espaços e todas as loucuras, todos os domínios e todas as alianças, faremos com que tudo se possa transfigurar, conferindo corpo a estas imagens com desmedida paixão.

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A maior de todas as surpresas foi o senhor ministro saber dominar tão bem este instrumento da memória. Desenha as acções futuras com as vontades do presente e avança com uma espécie de lista para o centro dos sonhos. Sabe ao que vai e o que deseja. Adianta os seus propósitos, aqueles que serão transformados em realidade num mais próximo momento, e outros, que só poderão ser efectivamente visíveis num período de tempo mais alargado. Olha para mim respeitosamente. Nunca imaginei poder ser tratada desta forma tão principesca, num contexto tão fabuloso. Nenhum sonho me deu a conhecer esta novidade. Foram vítimas da minha vontade animalesca, não podiam antecipar imagens desta estadia. Isso para mim não faria nenhum sentido. Apontei as minhas vontades para outros alvos, vesti-as com os meus venenos mais perigosos e tudo o que procurei foi alimentar o meu intenso desejo de vingança. Estava bem longe de imaginar que tantas solicitações de maldade abrissem as misteriosas portas deste segredo. Continuei a pedir, a implorar, a desejar a loucura, a destruição e a maldade, quis que tudo acabasse num só instante, sem remorso ou piedade. E agora, depois de tudo ter acontecido como antevi, o senhor ministro reclama para ele estes acontecimentos. Disse que os meus desejos foram calculados por si na exacta medida da minha loucura. Necessita de uma alma aliada para não avançar por estes dias sem um apoio. Sonhou com alguém que, tal como ele, pudesse entender a verdadeira dimensão deste fenómeno. Sonhou comigo e em mim adicionou as garras desse seu milagre para que eu delas viesse a fazer uso. Estendeu-me esta armadilha onde cai por força dos seus interesses, e o que acabou por ser um mistério não foi mais do que a manipuladora força dos sonhos deste homem enigmático e inteligente, a quem a natureza acrescentou o tempero das centelhas do abismo.

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