terça-feira, 4 de janeiro de 2011

QUINTO ACTO



À luz desta manhã cinzenta encontramos finalmente o senhor ministro numa sala inacabada de um palacete propriedade sua. Está eufórico, sem olhar para nós levanta os braços e brada por duas vezes:

- A ruína proporcionou o caminho para a transformação, a ruína proporcionou o caminho que nos levará à transformação.

Mantém esta estranha forma de nos receber e sempre de costas para nós, comunica uma quantidade de ordens a dois serviçais que ali permanecem junto de si. Aguardam que a última das instruções lhes seja comunicada para se afastarem respeitosamente, com as devidas vénias não só ao ilustre ministro mas também depois transmitidas a mim e a Fernanda, que como estranhos permanecemos estáticos no meio do enorme salão.

- A ruína veio proporcionar esta oportunidade de ouro para planearmos tudo aquilo que sempre soubemos ter de realizar. Nada ficará por reestruturar, nada. Conceberemos uma nova ordem, uma nova geometria atravessará este reino e iluminará novamente com orgulho e com uma glória ímpar a execução desta incumbência. O esforço que alguns intentam ou venham a intentar para evitar que esta estrada de mudança seja por nós construída passarão por dissabores insuspeitáveis. Precisamos de novas cabeças, um novo pensamento para que se avance, para que esta energia não se perca, e as ideias têm fervilhado de tal forma que não tenho tido qualquer vontade em descansar. São reformas imensas e o tempo escasseia. Agora chega de tanta conversa, a economia deste País tem de se levantar como as ruínas da cidade que já mandámos limpar e que se planificou nova e rigorosa. Venham comigo para que possam finalmente ficar a par daquilo que escondo de todos e que só convosco desejo partilhar. Mestre Bernardo, menina Fernanda, é tão visível a vossa desconfiança por esta minha simpatia por vós que ameaça propagar-se aos espelhos do salão. Acalmai-vos pois ela não tem razão de existir.

O ministro esboça um largo sorriso e Fernanda responde da mesma moeda apertando-me com força a mão direita. Olha por breves instantes para o rosto iluminado de dom Sebastião, olha depois para mim com o mesmo sorriso rasgado, levanta-me a mão com a sua à altura do ombro e orienta-me com gentileza na direcção do governante. Que misterioso artefacto nos será dado a conhecer?

- Vamos Bernardo, vejamos o que tem para nós reservado o senhor ministro. Verifico que a sua vontade em esconder de todos o que hoje nos vai mostrar foi ao detalhe de até ao meu dom ter conseguido sonegar a informação. As imagens continuam difusas mas as outras sensações que acompanham as comunicações das horas e dos acontecimentos mantém-se presentes. Este momento próximo não vem carregado com o peso insustentável e ácido do sofrimento.


Fernanda terminou estas palavras e os pensamentos voltaram até às noites em que registei todas as outras que me foi comunicando.

LIVRO de BERNARDO

A descida leva-nos até o abrigo, até as pétalas de sal, até ao mar. O passatempo tem estes desesperados desencontros. A lua padece como uma montanha mágica, como o jasmim, como as ruinosas palestras que nunca sairão de minha boca. As ideias começam a surgir difusas e inconstantes, começam a transformar-se. Os lugares por onde agora passeio deixaram de ter soalho fabricado com os corpos dos mártires e deixei de sentir os meus passos. Aqui e ali deixei inclusivamente de ouvir. Fui transportada para outro lugar por uns instantes. As pessoas estão paradas, imóveis como estátuas feitas de carne e de osso, presas para sempre num imaculado instante. Não quero tocar-lhes mas a vontade em fazê-lo é imensa. Assim que cedo à tentação, descubro que se transformam em sal e areia, em poeira fina, em ilusão. Caí com o susto depois de ter provocado a transformação de três estátuas. Três pessoas deixaram de existir por não ter conseguido ceder à vontade que tive de as sentir. Quero voltar para trás no tempo, para antes deste acto irreflectido. Continuo sem conseguir escutar. Todos os que aqui foram perpetuados nestas estranhas posições permanecem estáticos, ausentes de sentido. Não sei mais o que fazer. O senhor azul abandonou este cenário tão rapidamente com aqui tinha chegado. Ao longe já nada se move, os imensos barcos que como gigantescas cidades de luz dominavam o horizonte, desapareceram dando agora lugar a uma desabrigada paisagem acastanhada sem fim. Um deserto imenso feito de vento, de chuva, de muita chuva, e mudo. As imagens deste lugar aparecem-me novamente como um caminho feito de pétalas. Segui-lo-ei como tenho feito com todas as outras instruções. Fizeram-me aqui chegar com sobressaltos, bem ou mal, ajudaram-me até agora. Momentos há em que preferia apagar para sempre a força com que se fazem escutar dentro de mim. Vibram com violência, provocam muitas dores pela frequência inusitada com que me visitam. Deixo para trás o corpo e corro apalermada na vã esperança de as enganar. Mas é em vão que o faço. São poderosas e fazem de mim o que muito bem entendem. Prevejo mais uma destas visitas. A cabeça antecipa-me a sua chegada. A visão ganha manchas esbranquiçadas de luz que surgem acompanhadas de violentas dor de cabeça. Aguardo pela guarda do meu castelo. Volto a escutar as palavras do vento e a força com que a chuva cai do céu acastanhado. Não me consigo decidir. Tenho de continuar o meu caminho mas as pernas tremem-me, o corpo e as vestes ensopadas não promovem auxílio na tarefa de caminhar. Os movimentos surgem lentos, demorados. Cada passo é dado com dificuldade, como se as pernas e os pés lutassem com o chão que vou pisando. Nada aqui se compara a qualquer coisa que já conhecemos e os odores, principalmente os odores, são verdadeiramente insuportáveis e causam vómitos e grande mal-estar. Avanço sem rumo, de olhos fechados, numa direcção desconhecida pois tudo é igual nesta infinita paisagem desértica. O céu resolve falar. Escuto os trovões que parecem ter aumentado a intensidade do dilúvio. Moram neste lugar muitas memórias de coisas que ainda estão por acontecer, memórias de muitas coisas terríveis que ainda estão por acontecer.

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