sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

SEGUNDO ACTO - continuação I


Nas ruas pairam por toda a parte os vivos e a memória de todos os mortos. São aos milhares os que teimam em permanecer dia e noite junto das habitações destruídas. Juntaram-se os corpos e tombaram as vontades juntamente com as pedras e os telhados. As ordens do Ministro foram eficazes e surtiram o seu efeito. Tantos foram os dedos apontados aos que roubaram e pilharam no meio da desgraça, que a vida lhes foi arrancada com firmeza à volta do pescoço. Aos restantes servia de lição, mas ainda assim alguns continuam a tentar a sua sorte pelas ruelas destroçadas. Vive-se na rua, no meio dos destroços. Muitos foram também os que ao longo dos primeiros dias após o horror se afastaram de Lisboa marchando desorientados com medo da chegada derradeira do Inferno. Dezembro chega agora para assistir ao início de um longo processo de reconstrução. Se uma espécie de prodígio conseguiu manter de pé partes significativas de alguns bairros, outros tombaram desgraçadamente não restando deles senão memórias. A casa conseguiu resistir cicatrizada por dezenas de rachas e muitos pedaços de cobertura e de tectos partidos. De forma tão rápida quanto possível vão sendo colocados no respectivo lugar. Algumas peças de mobília e porcelanas encontraram o seu fim, mas as vidas de todos os que serviam nesta casa Lefebvre foram miraculosamente poupadas pelas palavras do grande amigo Mestre Bernardo. Foi graças a uma grande dose de coragem que resolveu não guardar para si aquelas visões silenciosas, seria agora um atormentado se tivesse deixado fenecer todas as vidas que se salvaram no Hospital pelo seu apelo, pela sua transmissão.

Carregaram-nos as sortes com o duro trabalho dos registos, como se não nos bastassem todas as demais tarefas. Prestar o devido auxílio e apoio aos vivos e o importantíssimo serviço de inumar os mortos, dando cumprimento às palavras do Ministro que de maneira tão obstinada tem tomado conta da situação. Temos de apresentar relatórios pormenorizados, identificar e contabilizar as baixas por bairros, rua a rua, casa a casa, sempre que tal se mostre possível. Um verdadeiro exército vai tomando conta da cidade como uma estranha criatura cujo hálito se pressente e adivinha nas nossas costas. Algumas reconstruções vão já acontecendo e é normal, ao contrário do Rei, ver o senhor Ministro deambular com um séquito de soldados, nunca menos de vinte, pelas entranhas da cidade destroçada.

- Senhor Lefebvre, desculpe interromper. O senhor Mestre Bernardo pediu-me que lhe transmitisse que dentro de alguns instantes aqui virá falar consigo. Encontrava-se ocupado com importantes afazeres que desejava terminar. Pareceu-me um pouco nervoso, diria mesmo que se assustou com a minha entrada na enfermaria.

Pois não será isso de estranhar em todos nós. Não será isso nada estranho, bem pelo contrário.

- Sabe que por estes dias é difícil afastarmos das ideias pensamentos mais sombrios e perturbantes!

Pobre amigo. Podemos apenas tentar imaginar com que género de fantasmas tem de lidar Mestre Bernardo. Se não deu conta da sua entrada foi devido ao cansaço provocado por estes negros dias. Estou quase a terminar a ronda e vou eu mesmo ter com ele, assim não vai interromper os seus afazeres.

- Arrume o que ainda ficou por arrumar e trate de fazer chegar as restantes mantas e demais panejamentos a quem mais deles tiver urgência. Tem de ordenar às mulheres que lavem tudo com muito maior rapidez. Não podemos ficar novamente a aguardar um dia inteiro para que tudo se apresente nas devidas condições. Isso não pode voltar a acontecer, não enquanto esta tremenda confusão ainda estiver instalada. Se não dermos a atenção devida aos pequenos detalhes, à correcta implementação das rotinas de trabalho, a tentativa em dar ordem a todo este caos desabará mais rapidamente do que a nossa bela cidade.

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