quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

SEGUNDO ACTO - continuação V

- As marcas que se sentiram ao encerrar as fronteiras desta ilusão tremenda deixaram vincadas cicatrizes nas almas. É impossível viver como dantes. São tremendas as imagens de crueldades, são dolorosos os relatos de trágicas tormentas e são em tão grande número os corpos que repousam nas profundezas do leito do Tejo que jamais se olhará o presente sem sentir o pavor destes instantes passados. Não se podiam perpetuar por mais tempo os cheiros e os horrores atrozes das visões proporcionadas por tantos cadáveres abandonados e destroçados.

Estas palavras do bom amigo Lefébvre dão alento e razão na minha vontade em escrever.

- São estas as horas que favorecem a escuridão e foi ela que por aqui passou para tecer os seus interesses. Nada se compara à existência da loucura assim como nada se compara ao doce néctar do delírio. Nestes momentos, nestes arrepiantes instantes, a vontade de ser desaparece, deixa de fazer qualquer sentido. Hoje, tal como ontem, somos outros, não mais os mesmos.

Desalinhados com a aparente e ilusória sensação de acalmia, as vidas de todos seguem um propósito maquiavélico, escondido algures nas minhas vontades insanas e duvidosas. Deixei-me guiar por um fogo incontrolável, um que tomou conta de mim usando a minha parte mais infame. Vendeu-me todo o seu veneno, alargou o seu calor até que nada mais restasse para arder. Subiu com tanta rapidez pelos meus sonhos que já não era eu a tomar conta do desejo, assim acredito. Deixarei de falar, deixarei de falar até que esta realidade desapareça para a mais invisível das esquinas do tempo. Desapareço pelo prazo de uma vida, desapareço por um tempo igual ao de duas ou três vidas. Deixem-me descansar desta doença cruel que me trouxe a mais ingrata das virtudes, o mais insano dos poderes, a mais estéril das esperanças. Poder moldar o porvir através de um incómodo sonho sem cor é a mais perfeita de todas as formas de crueldade. A mente não resiste ao doce calor dessa loucura, não sabe suster tanta abundância, tanta chama acesa no coração e na alma. Uma voz dentro de nós grita, comanda-nos a vontade dizendo-nos o que fazer, o que sonhar e o que manietar, como se fossemos deuses a comandar o mais nefasto e poderoso de todos os domínios. Atira-nos depois violentamente para fora desta morada sombria, até que tudo acontece, já a cores, já com a luz a brilhar em todas as estruturas.

Ao desfazer-me em vontades, em sonhos novos, em tentativas de alterar o inalterável, percebi que não mais funcionava essa ambição. Não houve tempo para tornar viável um novo entendimento com as negras imagens dos sonhos, acabar de vez com as minhas desagregadas intenções. Ao perceber que tudo estava a acontecer pela acção desmedida e irreflectida das minhas visões, corri em todas as direcções e em nenhuma. Corri de todo aquele inferno que ajudei a crescer, corri pelos becos despedaçados e pelo centro de tantos mortos semeados pelos céus, corri na vaga esperança de ser engolida pelos destroços, pelas mãos dos assassinos e ladrões, pelas águas do Tejo que acudiam na limpeza das misérias. Corri para encontrar novamente a noite em que estas loucuras envenenaram as imagens lançadas à toa pelos meus mais sórdidos pesadelos, corri para sentir que dormia e que tudo se passava ainda bem dentro das minhas ideias. Corri com os pés a desenharem no chão a vontade em não voltar a acordar. Corri para desaparecer, para tentar afastar de vez este pedaço de sonho construído com a mais negra das minhas vontades.

Corri para procurar um dia em que eu nem sequer ainda fosse gente neste mundo que sonhei destruir. E já lhe apanhei o jeito, aprendi com a facilidade de quem descobriu a palavra ou como se começa a andar. Primeiro, as novidades do instante em que tudo acontece e que nada se sente. É tudo tão natural, tão seguro, como se não existissem quaisquer barreiras ou degraus para ultrapassar. Flui como um pequeno pedaço de nós, como se nos pertencesse, até que uma pedra do diabo nos bate com violência deixando-nos à beira do abismo da perdição. E a única ideia que nos vai passando pela cabeça ao assistir a estes primeiros sonhos acinzentados é a de caminhar em frente na direcção daquele abismo adocicado que nos foi servido de presente. Ali se encontra a razão da nossa existência, aquela que nos transformará na própria luz do Sol.

Parei de correr ao olhar para o rosto do senhor médico escritor, para aquele olhar perdido e admirado que me fitou. Era o mesmo homem que me visitou no mais estranho dos momentos do último dos sonhos. Ali estava a figura, o mesmo rosto, o mesmo olhar perdido. Aqui está agora com o amigo e companheiro, seguramente aguardando por respostas, tentando, tal como eu, tal como todos nós, entender estas estranhas arquitecturas do tempo, estas manipulações alteradas que abrem brechas gigantescas na nossa capacidade em discernir todas as coisas.

Em tudo o mais permanecemos estranhos, mas somos seguramente menos estranhos do que a maioria dos nossos familiares e amigos. Partilhamos esta estranheza desconexa por nos ter sido dada a conhecer uma das partes invisíveis do rochedo das almas. O seu olhar não enganava e no meu entendeu, com rapidez, a minha estranha demência.

Guardada naquela cavalgada que nos transportava para longe de tudo e de todos, estava a minha tentativa em dar um fim a este assunto. Não irei conseguir suportar por muito mais tempo as cores da realidade, e jamais voltará a vestir-se com as cores das minhas palavras.

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