quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

SEGUNDO ACTO - continuação VII


- Amigo Bernardo, descobri que o senhor Ministro de el-rei se prepara para nos visitar. Os amigos que julgava ter assobiaram a novidade à corte com maior rapidez que a propagação de uma desgraça. Não foram minhas as palavras que comunicaram o que quer que fosse. Essas locuções da pequena senhora durante o tempo em que permaneceu adormecida devem ter causado espanto a mais gente do que supúnhamos. Apesar de só ter por aqui passado pessoal do hospital, colegas, o Mestre Dufau e Manuel Constâncio, alguém deve ter conhecido o descontrolado vocabulário da senhora e dele feito notícia. Tal não será de estranhar dada a complexa conjuntura destes tempos.

Mas que conta este senhor médico? Terei falado durante o tempo em que estive esquecida do mundo e da consciência? E que palavras terão sido essas que fazem com que tão importante figura nos venha ver? Mal acordei e já se preparam mais novidades não comunicadas. Perdi realmente a capacidade de antecipar os acontecimentos que a perícia dos sonhos me dava a conhecer. Isso é bom, isso é mesmo uma óptima notícia. Os últimos desses sonhos consentiram nas minhas vontades e agora apenas consigo escutar os sons de uma música bem diferente das que saíam das janelas do palácio tocadas pelo senhor Scarlatti. Aconteça o que acontecer, permanecerei no mais profundo dos silêncios, na esperança de que nenhuma lembrança perversa ou escuro pensamento tenha sido comunicado por mim por estes dias. Sinto um arrepio acompanhado de dúvidas e incertezas. Seriam essas mensagens o que o médico escritor registava naquela escrita tão nervosa? Terá ele o passaporte para a minha desventura? Estará algures naqueles escritos a minha negra confissão? Se assim aconteceu não me restará qualquer esperança de vida. Seguramente merecerei o mesmo fim dado a todos aqueles que se diziam ou faziam passar por magos do destino, apesar de tal nunca me ter sido transmitido em cores cinzentas.

- Que diz amigo Lefebvre? Mas como assim? Nem um só segundo de paz aconteceu desde que abriu os olhos e já aqui se apresenta o soldado da nação? Terá sido o próprio Mestre Dufau a dar esta notícia ao Ministro. Veremos como será possível salvar agora o que resta deste desejo?

Malditas as palavras, malditos os desalinhos e os vaticínios, todos correctos, de cada palavra que ia saindo da sua boca adormecida. Maldita a hora em que comuniquei estes assuntos ao amigo Lefebvre. Mas como teria sido possível aguentar dentro de mim este tão grande assombro? Os dias e as noites não param de nos atormentar com doses inimagináveis de destempero, como se a realidade se tivesse evaporado para todo o sempre numa estranha nuvem de cristal. Vou esconder rapidamente a minha escrita, encontra-se demasiado quente para os olhos de um sábio. Não arriscarei esta vida por um só instante, e tudo farei para conseguir explicar as estranhezas a todos. São simplesmente, um conjunto de estranhas coincidências, apenas simples estranhas coincidências sem a menor das importâncias. E que dizer deste pequeno exemplo:

“Voámos e fomos recebidos por homens estranhos que nos perguntaram como tínhamos conseguido sobreviver. Caímos sem saber o que dizer. Os senhores convidaram-nos para entrar, indicaram-nos umas cadeiras onde nos sentámos e serviram-nos uma refeição quente e saborosa. São todos amigos de infância, amigos de longa data, e lembram-se de como tudo era naqueles tempos distantes em que o rio lhes resolvia os problemas. Eram tantos e vestiam roupas brancas muito compridas, manchadas com desenhos feitos de sangue. Um grande colar luzente e negro, algo retorcido, estava pendurado ao peito de todos eles. Olhavam-nos com bastante alegria, dos seus olhos conseguíamos descobrir esse sentir, mas no fundo das suas almas a esperança estava ausente. Lisboa, uma Lisboa tão estranha quanto gigantesca, uma cidade com a dimensão do próprio mundo, transformada na verdadeira visão dos infernos. Uma gigantesca massa humana sem nenhuma comparação com o número de vidas que se finaram neste horror de agora alinha-se ao longo da mais inacreditável mistura de ruídos, desmoronamentos, berros, aflição, dor, destruição, cheiros, horrores e milhares de rebentamentos que se transformam imediatamente em negras nuvens de fumo e escuridão”. Como será possível tentar encontrar explicação para estas visões, para estas histórias com contornos de medo que saíram noite após noite, dia após dia da sua boca adormecida? Esconderei de todos as imagens e as lembranças destes mistérios, esconderei de todos as memórias agora regressadas e avivadas dessa minha longínqua visita a Pompeia.

Por agora será mais razoável omitir as palavras do senhor Lefebvre ao explodir pelo hospital antes da loucura. Se o senhor Ministro considerou serem motivos importantes os relatos das palavras atormentadas da rapariga, são certamente fundamentos mais que seguros e bizarros os instantes anteriores aos do dia da tragédia. Assim terei um lugar cativo e honrado nos propósitos futuros do senhor Ministro, já sabe que poderá contar sempre com a minha lealdade.

- Mestre Dufau, seria talvez importante referir ao senhor Ministro quais as nossas necessidades mais prementes para poder acudir com eficácia a tantos magoados. Seguindo as suas instruções, alinhavei um conjunto de medidas e de sustentos, de materiais e de humanos recursos para poder fazer valer ao Lisboetas, conforme interesse expresso por Sua excelência o senhor Ministro.

Sábia e incisiva figurinha esta do Constâncio, sempre pronto a defender os seus interesses fazendo-os passar pelos do povo massacrado. Por muito que lhe custe, essa são as novas incumbências de Mestre Bernardo e não mais as suas.

- Diga-me Mestre Dufau, é possível decifrar as palavras mais extremas que saíram da boca da pequena senhora? Serão assim tão arrebatadoramente misteriosas? Pelos relatos romanescos que me foram comunicados, começo a sentir uma estranha vontade de que tudo não passe, afinal, de mais um logro patinado com as verdes tonalidades da loucura. Mais vale que assim seja! Não gostaria de ter de sanar maleitas tão profundas nestes tempos de pavor. Já me chegam as aprazíveis paranóias de el-rei.

Ouço o ruído de passos cada vez mais próximo de nós. Não há mais tempo a perder. As folhas destes relatos ficarão arrecadadas, bem afastadas dos olhos audazes que nos chegam em visita.

- Um mistério senhor Ministro! São, seguramente, um verdadeiro mistério!


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