sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

SEGUNDO ACTO - continuação VIII

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Deixo para os outros a destemperança dos pequenos momentos. A luz fica mais ténue e já não chega para enxergar para lá de três passos. Os momentos mais aflitivos passaram. Os sons deixaram de se fazer escutar por debaixo da terra. Desta feita ninguém gritou ou correu em busca de salvação. A temperatura do momento não subiu em demasia e o susto não gerou pânico, apenas um ligeiro sobressalto. As poucas sobras de esperança, largadas pelas ruelas ao vento, abandonadas como pedacinhos de aflição indesejada, parecem ter sido todas arrecadadas pelo senhor Ministro. Alguém sob a sua voz de comando as recolheu, tratou e amontoou nalgum canto do palácio semi-arruinado. Carrega consigo essa força, dando-a a conhecer através do seu andar ligeiro e posse altiva, pela maneira natural como encontra as palavras mais preponderantes para todas as conversas e no seu olhar intenso e penetrante. Os segredos que guardamos são abalados, estremecem perante a frieza objectiva com que nos parece ler a alma e roubar os nossos íntimos pensamentos. Descobri esta capacidade no Ministro…

-Desejei o insuportável e agora expurgarei todos os meus segredos sem contudo fazer a mais pálida ideia dos seus porquês. São bem estranhas estas formas brutais que nos saem em segredo da alma, alinhavadas por tantas incertezas, construídas por todos os receios, abandonadas por todas as angústias. Não escreverei mais enquanto assim me atormentar o receio. Fiz desaparecer com rapidez todas as folhas escrevinhadas que se amontoavam em cima da pequena mesa mal iluminada. Aqui escrevi mais do que devia, aqui fiz o relato dos segredos, os meus e os seus, e deles não me consigo arrepender, mesmo se de mim saíram sem qualquer ordem, mesmo se o tempo e esta estranha voz me alimente e afogue com mentiras. Mas as suas mensagens, tudo o que para aqui foi arremessado, eram dotadas de uma tal força que a surpresa inicial foi logo substituída pela razão e pela pena.

Como seria possível deixar cair no esquecimento tanta informação, tanta coincidência de factos, tantas similaridades e tantas histórias de futuro? Jamais me perdoaria, como jamais me perdoaria se estes papéis caíssem agora em mãos erradas. O clima está alterado, as capacidades de análise seguramente modificadas, e apenas o tempo pode apaziguar e trazer segurança aos nossos dias. Mais tarde tentarei decifrar estas estranhas palavras, todas nascidas na escuridão do seu tempo apagado.

- Mestre Lefébvre e Mestre Bernardo, tenho imensa honra de vos anunciar a visita do Ministro de el-rei, a mais importante e diligente figura do nosso país nestes tempos conturbados. Deixai que vos diga, em antecipação, que tudo aquilo que dom Sebastião deseja é a obtenção de respostas sobre alguns acontecimentos que lhe foram comunicados ao longo desta última semana.

Tantos senhores, tantos sábios senhores reunidos neste quarto tão pequeno e sombrio. O que terá acontecido de tão importante para se juntarem estes cinco homens em redor da minha pequena figura, fitando-me sem deles sair uma única palavra? Que mal terei provocado, que sinais terei induzido, porque que razão passeiam os olhares pelo meu corpo? Lembro-me da queda do cavalo branco, como se estivesse agora a acontecer. Lembro-me do lento deslizar do meu corpo pelo corpo do animal que avançava em galope veloz saltando penedos e valas.

- Quero ficar a sós com Mestre Bernardo, por favor!

Directa e impetuosa, a vontade do Ministro agita eficazmente as acções de Lefébvre, de Mestre Dufau e de Constâncio que, obedientes e cumpridores, saem da sala com ligeireza. Não evito este pequeno tique nervoso que me agita o braço direito em direcção à perna, coçando mais vezes do que o justo um joelho bastante avermelhado.

- E pensar que nesta pequena e débil figura moram as agitadas e surpreendentes forças do destino? Mestre Bernardo, que podemos comparar às estranhas e misteriosas forças do silêncio? O que acha que se encontra escondido numa cabecinha ainda assim tão jovem e assustada, tão pouco dignificada na sua indigna condição de ser humano da populaça, sem a sorte dos reis e dos príncipes, daqueles a quem quis o destino dotar da felicidade da bonança, das virtudes da riqueza, do carácter sensível de um grande compositor ou de um castrati abençoado? As palavras senhor Bernardo, sempre as palavras! São elas que traduzem em todo o seu esplendor as imagens, dando delas a notícia, trazendo-as para junto de nós, colocando-nos no centro das acções, no palco das novidades, no centro do rebuliço e da agitação! É isso que eu procuro de vós senhor Bernardo, é isso mesmo que procuro de vós.

Abrenúncio!, Nada faz sentido, ou antes, talvez tudo comece agora a fazer todo o sentido! O senhor Ministro não pergunta, sabe muito bem daquilo que fala. O senhor Ministro sabe bem demais sobre tudo aquilo que aqui nos veio falar.

- Senhor, peço-lhe perdão pela minha surpresa. A sua chegada, só por si, foi motivo suficiente para nos deixar neste estado. Sei muito pouco sobre o que acabou de nos dizer. Sei, porque assim acredito, que a razão e a certeza dos factos são o mais importante de todos os bens. Sem elas será sempre muito difícil encontrar explicações lógicas e sustentadas sobre tudo aquilo que nos rodeia, sobre quem somos ou até sobre quem nos viremos a tornar.

E para os sonhos, para a memória de todos os sonhos que acabam por se transfigurar em realidade sem que um único alicerce de objectividade os sustenha? Ai Bernardo, que estes pensamentos não te traiam agora na presença deste ser humano tão iluminado.

- Amigo Bernardo, tomo como válida esta minha constatação e assim o passarei doravante a tratar. Nada do que aqui me trouxe tem directamente a ver com aquilo que me foi comunicado pelo fogoso e obstinado Manuel Constâncio. Aliás, as palavras do jovem barbeiro trouxeram-me vontades impróprias, pouco dignas a um governante. Este tipo de figuras funcionam e sempre funcionarão da mesma maneira, e isso nem sequer merece a dignidade da nossa indiferença. Fiquei contente pois durante anos alimentei a esperança de não ser caso único nesta terra alucinada. As palavras do barbeiro, mesmo tendo chegado nestes tempos terríveis e tão negros da nossa história, tiveram o condão de me proporcionar uma enorme alegria. Acredite meu caro amigo, foi mesmo isso que aconteceu! E agora? O que iremos nós fazer daqui para diante meu bom amigo? Chegou a vez de me dar de si já que de mim fiz relato que chegasse.

Amigos? Todos nós temos segredos. Todos nós, como se já nos tivéssemos conhecido sem nunca antes nos termos encontrado. E esta voz intensa trouxe-me de volta aquelas vozes que me acompanharam à distância quando me perdi ainda novo por Pompeia.

- Amigo, pois assim seja senhor Ministro. Raros são aqueles que, como tão eloquentemente acabou de o fazer, depressa nos fazem sentir desta maneira. O contrário seria colocarmos em cima da mesa a franqueza insustentável da frágil normalidade.

Que será de mim? O que desejará este homem que tem tanto de inteligência quanto de mistério? Não terão sido as palavras segredadas durante o meu sono perdido que acabou por fazê-lo deslocar-se até aqui?

- Nem mais amigo Bernardo, nem mais! Nada mais deprimente que fugir das verdades refugiando-nos nessa falsa e insustentável sensação de frágil normalidade. E ganhei a sua atenção sem que me possa acusar de ter sido falso ou brusco ou de ter feito uso de títulos ou posição. Seria uma via impensável. Respeito-o ao ponto de ser incapaz de o violentar com tamanha malfeitoria. Por isso mesmo, de agora em diante, a conversa tem de seguir um rumo necessariamente diferente, meu caro amigo. Sabe disso tão bem com qualquer um de nós aqui presente neste quarto.

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