terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

SEGUNDO ACTO - continuação VI

Imagens, parte de nós, parte do tempo, que valem pelo que valem, pelas decisões e pelas opções, pelas pessoas, pelas formas como alteram a nossa rotina e a maneira como vemos o mundo, o de agora e o do futuro. É do futuro que se trata quando tentamos dar um novo rumo à cidade e aos que sobreviveram à tragédia. Todos estes desenvolvimentos catastróficos se aliaram para nos convocar. Irei criar os programas e as equipas necessárias para requalificar toda a capital. Transformarei este choque numa nova visão deste país, um novo perfume e um novo sorriso abrirão esta cidade para as águas do Tejo, para o mar e para o mundo. Transformaremos as consequências destas ondas de choque em algo de muito benéfico para o nosso futuro. Será uma aventura de criatividade e renovação feita com orgulho e nascida das aprendizagens e dos negros contributos destes reflexos de dor. Iremos unir este trágico passado com a remodelação iluminada e brilhante do nosso futuro. Um desafio, uma aposta, um mercado de esperança e confiança que iremos reabrir ao levantar de novo toda a arquitectura da cidade, toda a sua área comercial e mercantil, o seu porto, as suas igrejas e catedrais, a sua ópera, os hospitais, e este em particular, e uma luz nova se erguerá destes escombros que começámos já a fazer desaparecer.

- Aqui me desloco em segredo para conhecer essa rapariga misteriosa de que Manuel Constâncio me deu notícia. Mestre Dufau, sabe que não tenho como hábito perder tempo com futilidades. Se aqui me aventuro é para que tudo se passe sem nenhuma publicidade. Qualquer palavra pode causar incómodo a el-rei e ele encontra-se muito ocupado a alimentar os seus pavores. Nas alas dos loucos e dos arrependidos seguramente se aliaram as forças para lhes abrirem menos comandos miseráveis ao enfrentar estes mistérios destruidores. Frequentam uma realidade tão alterada que a honra da verdade não marca presença nem lhes carrega o corpo com grande responsabilidade. As maleitas da alma são inexplicáveis, verdadeiramente inexplicáveis, não é assim caríssimo Mestre Dufau?

- Assim é, assim nos vai parecendo digníssimo Ministro.

São os libertadores, não são monstros do Inferno que se levantaram para nos levar. Apontam novamente as suas armas para as profundezas das entranhas da terra, procuram destruir as rotinas para carregar milhares de vidas e alimentam-se de toda aquela esperança. As paredes das catedrais e dos palácios servem-lhes de refeição, e depois engolem as almas dos que se aventuraram para lá das paredes, das fachadas, dos telhados, das ruelas e calçadas. Os visitantes fazem de tudo para tentar entender a beleza destes processos, fazem de tudo, de tudo. Nada conseguem e depois, e depois deixam-se enganar, deixam-se enganar e são enganados pelos sinais dos dias, pelos sinais dos dias e das noites, pelos sinais da força da escuridão e pela força com que a luz penetra pelas gretas e pelas fendas das almas de todos os visitantes. Os libertadores servem-se de visitantes como nós, orgulhosos, orgulhosos e sujos, tão sujos como repulsivos, repulsivos e incómodos para visitantes impenetráveis, para aqueles visitantes que olham, que fitam e estudam sem enxergar. Mas este Ministro de el-rei é inspirador, aparenta uma inultrapassável vontade e a casa onde habita o seu saber, onde habita a sua sabedoria, é uma que aparenta conhecer aquilo que se adivinha. Recebe conselhos gratuitamente dos libertadores, atiram-lhe migalhas de perícia, de uma aveludada e polida sabedoria, com que intenção, mas com que intenção?

- Senhor Ministro, senhor libertador das profundezas, das profundezas, senhor visitante, a sua sombra deixa adivinhar tudo aquilo que esconde, que esconde, e que a sua sombra deixa espalhado pelo chão empoeirado com a ousadia de um profeta, de um profeta libertador! O senhor irá encontrar-se com a sua própria história e nela construirá um trilho agitado, com eficácia e muita ajuda dos visitantes, palavra de Ramiro, palavra do visitante Ramiro. Dava tudo para poder visitar de novo a praça naquele dia do desastre. Nada ficou como era. Como seria agora a sua esperança sem a presença forçada destes libertadores, dos libertadores das sombras e dos pecados. Agora o senhor Ministro está entusiasmado, sente essa força subir pela sua vontade como uma ameaça do destino, como uma ameaça forçada que deseja controlar mas que lhe irá fugir como foge a todos os visitantes que se julgam libertadores. Amanhã será um dia igual ao de hoje, igual a hoje, mas com as cócegas da selvagem capital destruída a arrasar o futuro dos seus planos.

São quantos os loucos atiçados que por aqui acabam a filosofar? Pior que uma alma destemida e alucinada que sempre caminhou do lado de lá da razão é aquela que já sentiu o calor da razão e que se desorganizou ao atravessar o patamar arruinado da esperança.

- Não faça caso destes loucos senhor Ministro, não faça caso! São totalmente inofensivos e as palavras que lhes saem pela boca são como pássaros perdidos na paisagem desalinhada da nossa querida cidade.

- Mestre Dufau, não lhe conhecia esses dotes de poeta! Sabe que tudo o que sai da boca de qualquer mortal é sempre motivo de consideração. As ideias mais espantosas, por vezes, são carregadas pelo próprio vento, pela luz da ansiedade, ou pela voz alucinada de um qualquer louco contagiado com as artes desfocadas da oratória. Não será este o caso caríssimo Mestre Dufau, não será este seguramente o caso!

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