segunda-feira, 8 de novembro de 2010

QUARTO ACTO - continuação IX


Se pudéssemos vislumbrar uma outra sociedade? Estas ondas que arrastaram a cidade para o desalento, para um desalento que não podia ser imaginado, que não era desejado deste lado das coisas, deveriam ter-nos engolido a todos. Padeceríamos agora de uma doença bem menos bolorenta. As provocações e os excessos transformaram-se neste castigo, um castigo que se aguardava brutal, tão brutal como improvável. Somos os joguetes destes Libertadores, destes falsos que se sucedem uns atrás de outros para atacar e corroer, para fazer crescer injustiças, para transformar o inexplicável em doença e perversão, alterando os grandes momentos com as suas palavras douradas, amadurecidas no meio do veneno que lhes tolda o espírito, que lhes tolda as mentes perversas e mesquinhas. Desejei aceitar juízos diferentes destes nossos.

*

Os ventos passaram a ser mais favoráveis. Os olhares começam a ser diferentes. O povo carrega as mesmas dúvidas de ontem com humilde descrição, mas são já diferentes as causas das suas incertezas. Deixei acontecer o inevitável. Escolhi os corações de Fernanda e de Mestre Bernardo para deles expulsar as nuvens mais sombrias. As suas visões estão demasiado próximas de tudo aquilo que eu próprio vinha antecipando, do que motivou estes últimos meses de utopia. Esta era uma teoria que ameaçava desaparecer de vez no meio dos sonhos onde tinha sido arquitectada. As personagens que os habitavam não tinham rostos claramente definidos. Esse problema deixou de existir quando Mestre Bernardo fez crescer nos seus cadernos as misturas que Fernanda lhe ia descrevendo ainda adormecida na cama do hospital. A primeira sensação foi de surpresa. Ficou apagada por completo depois de me terem feito relato da situação. À estranheza dos objectos e cenários que a senhora ia descrevendo, Mestre Bernardo ia acrescentando as cores perfumadas das suas palavras rendilhadas valorizando as soluções dessa requintada parceria. Agora pertencem um ao outro, novamente, como sempre, sem terem dado conta. Mais uma vez unidos, mais uma vez reunidos para avançarem em conjunto em busca daquilo que de nós se espera. Os anos passam, são condimentados com estes temperos apimentados que nos devolvem a chama da vida, que nos devolvem à razão com inesperada comoção.

- Guardas, ide até à entrada do bosque onde ontem deixámos os nossos “convidados”. Chegou a hora de os resgatar. Não necessitarão de se embrenhar na floresta. Eles irão ter convosco. Levai aconchegos, mantas e alguma fruta e tragam-nos de novo até aqui. Não desejo ter de repetir o mesmo mais que uma vez. Despachem-se, tratem de cumprir as ordens que vos acabámos de transmitir.

*

Se pudéssemos vislumbrar uma outra sociedade, uma sociedade em que os irmãos não fossem inimigos, não se tratassem como um incómodo viscoso e inútil, estas paredes não estariam carregadas com estas palavras avivadas a sangue, o sangue que escorre pelo chão, pelo chão que arde fervente com as desgraças que as palavras lhe relatam. Neste momento já me abandonou a vontade de morrer, a vontade de morrer não é mais a mesma, não é mais a mesma que fazia pender esta minha força para o lado menos visível da certeza. A minha estratégia passa por derrotar estes falsos Libertadores até que o sol não mais lhes projecte as silhuetas pelas calçadas destruídas desta nossa cidade, deste nosso Mundo. As vítimas derrotadas, essas nada dizem pois as forças foram-lhes retiradas. Perderam tudo neste sistema por eles arquitectado, por eles redesenhado vezes e vezes sem conta. Repovoaram esta rede para depois a rasgarem, para depois voltarem a manter todos os que até ela se deslocaram na malha apertada das suas tentações.

.

Sem comentários:

Enviar um comentário