quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

QUINTO ACTO - continuação V


Esta não é mais do que a confirmação do que suspeitava. O ministro colocou perante nós a própria visão da existência. Somos partes de um todo, de um jogo que apenas a alguns se dá a conhecer. Estes momentos em que evidências do passado encerram em si o fermento das inúmeras possibilidades de futuro servem para confirmar a existência dos segredos. A presença de uma metamorfose com esta dimensão não deixa margem para dúvidas. As imagens que este pintor retirou da sua alma com a mestria de um predestinado atormentam a nossa. São por demais evidentes as aproximações entre o que retratou e o que se passou em Lisboa no trágico um de Novembro do ano passado. Espalhou pela paisagem todas as possíveis formas de demónios retirados das humanas gentes como se lhes tivesse descarnado a última réstia de humanidade. Retratou com clareza e justiça os mais relevantes dos ignóbeis actos e sórdidas acções cometidas pelos peregrinos da desventura em Lisboa durante o cataclismo, bem no auge da desgraça. A pairar por toda a paisagem esvoaçam as vozes dos penitentes. Os cadáveres das embarcações que galgaram as altas barreiras do Tejo seguem a galope nas ondas da maré de escombros que invadiram as ruas depois dos abalos. Derramo lágrimas ao recordar os momentos em que tudo desabava no coração da maior das loucuras. A capital do reino aparece destroçada pela ira dos imperadores do medo que neste quadro reinam invisíveis. Uma cidade engolida pelas chamas que a devoram lá ao fundo junto ao rio. O ministro lança olhares silenciosos na nossa direcção enquanto tenta escutar a surpresa que nos provocou a delirante pintura. Foram seguramente muitos dias excedidos em que o pintor foi descobrindo a herança deste futuro agora também feito passado. Foi capaz deste feito prodigioso ao ter vencido as forças do medo, forças que poderiam ter escondido de todos o que o artista claramente percebeu durante as suas enigmáticas visões. Que coragem a de conceber imagens tão alucinadas de futuros por desvendar. As palavras do poeta pintor, feitas de cor e de texturas únicas nas formas, nos receios, nos desesperados personagens que o visitaram pelas noites de alucinadas memórias, todas pintadas com um pormenor e com uma minúcia incomparável. O ministro está correcto ao entender esta pintura para além da sua excelência e do carácter único daquilo que retrata. Reflecte uma única certeza. As paisagens obscuras contidas nos sonhos ou pesadelos que nos visitam, por vezes dias e noites a fio, podem e devem ser entendidas com total naturalidade, isto apesar de nos consumirem a razão que tanta falta nos faz no sustento desta vida.


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