quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

QUINTO ACTO - continuação IV


Lefébvre acompanha os homens que transportam as bagagens até à entrada do pátio. Quase não falou desde o cais até aqui. Passeou as lembranças, como eu, pelas ruas destruídas, pelas calçadas e ruelas, pelas pracinhas, largos e escadarias que já não existem. Fachadas e edifícios inteiros desapareceram para sempre. Deles já só resta a memória. Descobri na nova paisagem da cidade uma certeza. As limpezas foram executadas com grande rapidez. Notam-se ainda as consequências provocadas pelo desastre e poucas são as colinas que respiram saudáveis a tranquilidade deste anoitecer. Desapareceu para sempre a Lisboa que conhecemos mas uma outra parece ter sido desejada com ansiedade. São muitos os estaleiros e os operários que vimos espalhados por toda a cidade, principalmente a tratarem dos edifícios religiosos que antes dos outros vão sendo reconstruídos. As pessoas avançam com os olhos escondidos, as mulheres agarradas aos corpos, de braços cruzados e arqueadas como penitentes. Notei os estrangeiros passeavam com respeito a observar atentamente as cicatrizes permanentes da paisagem. Deste lugar mais alto onde me debruço observo a tristeza do convento que chora baixinho a sua nova condição. Não se sabe ainda ao certo quantos foram os que faleceram, quantas famílias, quantos irmãos e irmãs, quantos pais, quantos avós, quantas mulheres grávidas ou crianças de colo, quantos mendigos ou quantos nobres foram derrotados nesse dia de Todos os Santos. O rei fugiu de medo e dorme agora numa real barraca para os lados da Ajuda. Triste mensagem dada ao povo amargurado. Refugia-se, como diz Lefébvre, na corajosa determinação do seu ministro que vai dando importantes instruções sobre a organização destes tempos mais funestos. A carta que o recebeu em Santarém vinha assinada pelo ministro e todos os que trabalhavam no mui nobre e real hospital de Todos os Santos receberam cartas idênticas e com a mesma assinatura ministerial. O rei parece mais bobo que fortaleza, mas teve a sensatez de colocar nas mãos desse Sebastião a tarefa ingrata de tentar fazer reerguer a força do povo e colocar de novo a capital do reino no seu devido lugar.

- Rafaela, prepara qualquer coisa para a ceia, nada de muito elaborado! Amanhã preciso de acordar bem cedo para me apresentar a Mestre Dufau mal nasça o dia, e este está marcado pelo cansaço da viagem. Uma sopa e um pão de centeio embrulhado num naco de presunto servirão para aconchegar as nossas fomes. Não te esqueças que a adega teve a ousadia de proteger as colheitas de vinho que tinham sido oferecidas pelo mestre Bernardo quando chegou da sua viagem por terras francesas. Abre um tinto de Bordéus que ele trouxe e, já agora, junta a tudo isso três ou quatro peças de fruta do nosso pomar escalabitano!

Lefébvre voltou a ser da cidade, voltou a ser o senhor que em Lisboa sempre conheci. Até a voz parece ter ficado transfigurada num timbre menos aveludado. Serão os meus delírios a julgar mais do que devem.

- Sim meu senhor, assim farei, como desejo de vossa mercê!

As passadas apressadas de Lefébvre foram rápidas a perceber a pequena subtileza da minha entoação. Parou. Vira-se para mim sem demora. Olha-me como se a diferença entre o bem e o mal tivesse sido finalmente compreendida. Avança em passos compassados a tentar ler as palavras escondidas nos meus olhos. Cresce como um gigante na minha direcção e cada passo que dá o sorriso do seu olhar volta de novo a iluminar-lhe o rosto redondo e corado. O queixo recebe a sua mão, as faces o seu calor e os meus lábios recebem os seus com perdição. Acendeu de novo o meu peito com ardor. Passeia pelos seios a mão gelada e veio encontrar a verdade da minha vontade com a mesma rapidez com que a minha mão deu conta da sua. As roupas já não nos pertencem e os corpos voltaram a ser outra vez verdadeiros. Senti a mesma razão de Santarém, apesar de estar novamente a pisar a terra dilacerada desta cidade maldita.

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