quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

QUINTO ACTO - continuação III


Os canhões ouvem-se ao largo e soam como uma trovoada. São muitas as embarcações que se despedem desta forma da cidade. Tornaram-se bem mais frequentes as visitas dos grandes barcos ingleses. Os almirantes britânicos visitam as ruínas de Lisboa, as mesmas que foram semeadas por toda a parte como lembranças do poder infernal que se encontra escondido nas entranhas violentas da terra. Trazem muitos mantimentos, víveres, matérias-primas e materiais de construção e levam muitos dos seus que resolvem regressar com medos por explicar. Muitas são as frases que saem da boca do povo e que mostram as resistências à reconstrução da cidade. Malagrida nunca se fez rogado e desde cedo procurou fazer-se escutar. Lisboa foi abandonada, destruída porque o pecado reinava por toda a parte. O castigo caiu dos Céus na igual proporção dos pecados cometidos por quem a habita. Segundo Malagrida, a cidade não deve, por nenhuma forma, ser aqui restaurada.

Estranhos são os desígnios da mente, são impossíveis de monitorizar, não respeitam protocolos, livros, crenças ou religiões. Como adolescentes egoístas, cruzam as entranhas do tempo despedaçando-o. Entram porta adentro com conversas mansas indecifráveis, depois já não querem mais conversar, fogem com sorrisos às mentiras que semeiam. Mágicos desígnios que nos mantêm concentrados na tentativa de leitura dos rótulos que trazem colados a si como literatura farmacêutica. Falamos, interpretamos, avançamos com pretensas soluções ou explicações para esses misteriosos desígnios. Alguém os deseja assim, ilegais, perigosos, maléficos, dolorosamente reais na sua capacidade de manter todas as coisas importantes coladas numa honestidade gélida e perturbadora. Não desejava encontrar aqui em Pompeia mais respostas do que aquelas que acabaram por me ser reveladas. Cresceram outras tantas questões por força da informação fornecida. Serei assim uma pessoa tão perturbada? Vejo fantasmas de passados distantes que falam comigo, que me permitem recordar tempos em que não posso acreditar ter existido. Contudo, como um desafio inquietante, essas vozes insistiram em ligar milhares de dúvidas desde cedo. Como a água que cai do céu nos dias de tempestade, cresceu em mim um caudaloso mar de perplexidades que se avolumou com o passar dos dias. Essa espécie de estado febril nunca desapareceu totalmente, confundiu-me a existência como um veneno enquanto criança, quase me matou as vontades enquanto jovem e montou irresponsáveis armadilhas na perturbante fase da minha adolescência. Nada nem ninguém me dava as respostas às imensas interrogações que aumentaram o volume desse gigantesco mar. Os trovões continuaram a fustigar a paisagem numa arrogância brilhante que ameaçava durar a vida inteira. Confrontou-me dias, semanas, meses, anos a fio em sonhos, em pesadelos e nos dias mais sombrios plantou-me esta espécie de ambição inatingível. A confiança no passar dos anos voltou, apesar do sarcasmo e da vontade que tive em deixar de acreditar neste sistema. Qual o fio que verdadeiramente une este misterioso procedimento, que tudo nos tira, que tudo nos volta a ensinar, que tudo nos explica para podermos finalmente voltar a adormecer? Constança preparou em quase completo segredo este regresso a Itália e às memórias do desconhecido que eu encontrei tão novo aqui em Pompeia. Nestas duas últimas semanas olhei para o presente, para o passado e para o futuro que crescerá surpreendente no que aqui viemos conquistar. Foi um verdadeiro choque dar seguimento a um objectivo que tinha de ser cumprido. As mãos ainda me tremem ao volante pois reflectem a minha grande emoção. Nada existe por acaso. Nada, absolutamente nada acontece por acaso, por uma qualquer ironia ou acidente. A construção das nossas vidas, de todas as vidas, obedece a um sentido que nos é transmitido através de conquistas. Muitos chamam-lhe destino, ou um outro qualquer nome das suas preferências para ajudar na tentativa de dar sentido a essa equação. A certeza, a única certeza é que ao longo desta jornada muitas serão as surpresas que nos estão reservadas. A invisível genealogia da existência está por cima de todas as coisas. O amanhã já aconteceu algures, o ontem estará algures por acontecer e o presente separa-se já, aqui e agora, em passado e em futuro sem o ser.

- Bernardo, em que pensas? Queres que eu conduza? Acabaste de passar ali atrás a saída para Nápoles Sul. Por ali era mais directo o caminho para o Hotel!

Os mundos encontram-se, afastam-se e arrastam-nos numa recorrente e paradigmática descoberta. Desde tempos imemoriais que corremos atrás de prejuízos. Nenhum deles nos faz acreditar no que quer que seja. Em determinados períodos da história as feras são atiçadas contra a nossa fragilidade, as bestas avançam sem aviso ou simulação e não se fazem antecipar. Atiçam as inclementes vontades assassinas, umas atrás de outras, sem descanso e com indiferença. Deixo para trás as memórias deste tempo longínquo com o muito que aprendi em Pompeia. As raízes e memórias desse passado iluminaram-me a viagem disso dando-me sentido.

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