quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

QUINTO ACTO - continuação VI

Em dias destes em que os deuses se esquecem de deixar acesas as centelhas da razão, permitimo-nos a devaneios que nos colocam mais dúvidas do que certezas. Ao informar-nos desta maneira, o ministro marcou claramente a sua intenção. Fernanda trazia em si as mesmas imagens da pintura. Foi clara na descrição dos detalhes, nas palavras que lhe saiam apressadas mas compassadas e que eu recolhia nas páginas rasuradas que cresciam à medida das suas descrições. O antecipar de muitas loucuras ou de acontecimentos mais banais, era sinónimo de uma perturbante alucinação. São as descrições exactas de muitas destas estranhas personagens que me afligem a racionalidade. Teimosa, deseja vencer as raízes crescentes da nossa incerteza mas nem sempre sai por cima nessa demanda. O que dizer agora quando nos confrontamos com esta evidência surgida do passado, com estas pinturas fabulosas que o ministro Sebastião arrecadou e que, segundo ele, lhe vinham também pintadas em sonhos e pesadelos divinatórios? As suas vontades cresciam como as ondas daquela maré devastadora que limpou as ruas da cidade! O Mundo carece de uma maior segurança que permita restabelecer a estabilidade que só a dúvida eterna nos concede. Fernanda viu-se já despojada do peso dessa muralha. A normalidade subjacente à condição humana não vem carregada com esta força enigmática, nem tão pouco conseguiriam as humanas gentes lidar com estes atributos divinos. Mascaram-se em alguns de nós, poucos e restritos iluminados, estes poderes supremos, e surgem embalados em dor e em mistério, queimam, destroem e corrompem as almas destes Libertadores ao ponto de lhes transformarem por completo a consciência. Fernanda ainda não disse uma só palavra desde que os seus olhos contemplaram pela primeira vez a obra de arte. Percorre todos os pormenores da paisagem com atenção. Saltam de personagem em personagem sem que a cabeça se movimente, sem que a boca se desprenda ou sem que as pálpebras interrompam uma só vez o esforço da missão. Por debaixo do decote percebe-se a ansiedade e a surpresa nos movimentos ritmados que o peito comunica. O seu rosto iluminou-se com a surpresa. Veio carregada com um misto de alívio e alegria. Era claro que não tinha partido só de si a antecipação da tragédia. Outros antes e agora já tinham percorrido o espaço dessa dor imensa, tornando também suas as inquietações, as vontades, os sonhos e as frustrações. As ligações que misteriosamente acabaram por se revelar são motivo para o nascimento de uma indisfarçável sensação de alegria. Os seus lábios esboçam um quase imperceptível sorriso.

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