segunda-feira, 7 de março de 2011

QUINTO ACTO - continuação VII




Durmo. Se sonho, ao despertar não sei
Que coisas eu sonhei.
Durmo. Se durmo sem sonhar, desperto para um espaço aberto
Que não conheço, pois que despertei
Para o que ainda não sei.
Melhor é nem sonhar nem não sonhar
E nunca despertar.
Fernando Pessoa



QUINTO ACTO – continuação VII

Descobri a razão, a causa de tanto desespero, de tanto receio e ansiedade. Os caminhos já percorridos desenterraram a razão e o lamento. Num instante tudo se altera, num instante tudo acontece como se nos tivessem virado a alma do avesso. E contudo a luz dos dias volta a iluminar com a mesma doce aparência de sempre. Ajuda a fazer crescer uma nova raiz feita de esperança. Uma certa ventura paira no ar que se respira concedendo-nos uma alegria que há muito não fazia parte da paisagem. Encontrar a esperança após tamanha destruição e tentar encontrar os lados sensatos da razão. Muitos foram lançados numa empreitada meticulosa e imperialmente regulada pela organização imposta e arquitectada pelo ministro Sebastião. Começam agora as gentes a acordar pela primeira vez desde a catástrofe, sem o peso das terríveis imagens a pintar o início dos dias. Notam-se sorrisos, poucos, mas conseguimos notar um crescimento notável da confiança visível na maneira como os caminhantes avançam e em como a azáfama da grande cidade ecoa pelas suas colinas revigoradas. Tanta mão-de-obra ocupada nas gigantescas tarefas de limpeza e de reedificação e tudo conseguido com uma rapidez e organização inimagináveis. A alegria do ministro tem razão de ser, sente-se uma quase euforia nas suas palavras. Imaginou tudo ao detalhe, ao pormenor permitido pelas prenunciadoras imagens da pintura que nos deu a conhecer. Os acontecimentos foram-lhe antecipados e festejou o seu poder através desta visão que lhe permitiu acautelar ao pormenor todas as tarefas para restabelecer a paz e moldar a seu bel-prazer a imagem da nova capital, uma Lisboa que tinha previsto e que agora faz crescer dando assim forma ao seu sonho de grandeza e majestade.

Fernanda voou até mim e adivinhou as consequências do seu comportamento no meu coração. Sabia onde me vir encontrar e a sua momentânea perplexidade aconteceu fruto da interpretação que dera a muitos dos seus receios.
- Lembra-te dos sonhos, de tudo aquilo que te contei sem perceber, esperando que a minha vida não acabasse nesse código estranho e preocupante. Se eu pudesse controlar essa corrente desgovernada de imagens, histórias e sensações, teria tentado evitar essa maré de palavras. Já reparaste que estas pinturas parecem ter lido grande parte dessas descrições? Mas como são antigas, e como foram colocadas nestas madeiras com mestria por um mago pintor artista do passado. Pelos seus sonhos passaram os nossos sonhos e pelos seus pesadelos passaram os nossos pesadelos, e contaram-lhe estas histórias trágicas do que ainda estaria por acontecer. Afinal o mesmo tipo de padecimento flui, passa pelos tempos e por outros Libertadores. Serão seguramente situações distintas cujo peso não permite outra acção que não seja a de gritar em alta voz, numa qualquer voz que possa de alguma forma deixar registada a força do acontecimento. Assim como migram as palavras, migram os receios, os medos e a esperança.
Pedi neste momento um desejo. Poder voltar ao pequeno abrigo da cela hospitalar onde Fernanda, ainda mergulhada no seu cândido adormecimento, me ia contando em segredo todas as histórias que acabei por registar. Houve um instante irrepetível em que as suas palavras me transportaram para onde habita a verdade e o desejo. Naquele momento tudo aquilo que existe desapareceu, os nossos corpos não estavam mais ali, naquele lugar, e a sua voz transformou-se na mais perfeita de todas as melodias de mestre Bach.



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