Subi demasiado depressa antes que a ilusão do momento me transportasse novamente para onde não desejava regressar. A força dos Libertadores nasceu com a motivação invisível de sugar a linguagem dos homens. Descobri que Bernardo não possui ainda a força que ele próprio gostaria. Os espaços de regresso, de sonho ou ilusão, acabam misturados nesta paisagem difusa em que nada é aquilo que se representa. A própria Luz desapareceu, como as cores, como a linha longínqua do horizonte, como o discurso. Deixei de ver e de escutar. Resta somente a voz que me vai ditando estas palavras sem que as force. Derramei o medo e a justiça pois não fazem qualquer sentido por aqui. O desejo desapareceu. Não tenho corpo. Os Libertadores trabalharam estas paragens e não deixaram nada ao acaso. A página está em branco, está em preto, suja, encardida, baça, desfocada, dormente e ausente. A minha história acabada terá aqui um recomeço, um que me foi escondido. Voltar a ver a luz do sol, caminhar nas galerias relvadas dos planaltos de Queluz e nas praias de areias finas de Algés. Quando me descreverem novamente o gosto da tua pele, o delicado rendilhado das tuas palavras e do teu olhar, tudo voltará a ser como era antes. O voo destes pássaros, destes mensageiros amigos, acalmou de vez a minha solidão. Os dias não mais se anteciparão, as palavras não serão adivinhadas nem os ventos surgirão do local exacto em que antes se tinham dado a conhecer. Esses exercícios de pura insanidade, estas bolsas irreparáveis de solidão, acabam de ser destruídos nesta improvável reunião. O ministro acalmou-me com a demonstração clara da evidência relatada. Ao pintor daqueles sonhos e pesadelos que tão claros e cristalinos lhe saíram dos pincéis com inigualável mestria, essas histórias pintadas da antecipação da loucura, do trágico acontecimento, acalmaram-me os receios devolvendo-me o espírito e a raiz de quem sou. Quando deixarmos a presença do ministro, terei tantas coisas a esclarecer com Bernardo. Olho para ele e receio que não consiga entender nem a metade dos meus sentimentos.
Terei o cuidado de não abrir as emoções erradas. As minhas estão por agora mais tranquilas. Não serei o monstro que me estava a ser dado conhecer. Outros experimentaram do mesmo pedaço de irrealidade, o mesmo reflexo misterioso e inexplicável que nos impele para a dúvida, para a ilusão. O poder que se bebe desta malga é doce e torna tudo tão claro, transparente. Não consigo encontrar palavras capazes de o descrever.
Os pássaros fogem. A sua companhia promoveu-me a força necessária para continuar. Voltei a dar os passos correctos em direcção ao que ainda falta percorrer.
- Bernardo, tenho sede! Preciso de um pouco de água. Tenho a boca tão seca que mal consigo arranjar forças para falar.
Páro. Sinto as pernas a fraquejar, o corpo a dar de si, os olhos seguem a vontade das pálpebras. O segredo guardado e agora desvendado deixou-me marcas claras, físicas até, que sinto com maior intensidade. O sistema ameaça desligar-se, ameaça transportar-me para aquele lugar que não desejava revisitar. A escuridão voltou, as forças abandonam-me definitivamente. Aguardo pelo resguardo dos braços de Bernardo que correrão em meu auxílio.
*
A estrada devolveu-nos Nápoles. Tanto silêncio e simultaneamente tanta satisfação ao longo do regresso. Com a tarde a chegar ao fim, a baía ficou mágica com a luz do entardecer. Paramos junto a um dos muitos cafés que fica em frente ao porto. Aguardamos envolvidos neste confortável silêncio pelos cappuccinos que pedimos na nossa melhor imitação de italiano. Estamos sob a influência da recente visita a Pompeia. Bernardo resolveu as dúvidas e as antigas inseguranças. Nasceram-lhe asas de esperança. Portas abertas para outras tantas que continuam fechadas. Avançou e os seus olhos reflectem agora essa nova sensação de alegria.
Aquela era a mensagem que gostaria de escutar. Fecha-se no seu silêncio, guarda para si a solidão do momento. As respostas que Pompeia lhe trouxe vieram embrulhadas neste descanso. Que sei eu sobre a alma do meu amado? Que ajuda lhe poderei dar na sua dor? Agora que a tarde desceu e a espuma doce e quente nos pinta os lábios, deixamos que os pensamentos naveguem até ao horizonte que se espraia, até à luz do sol que se despede e onde a vista procura descansar.
Olhos que se cruzam novamente no lugar perfeito, olhos que se despedem, olhos que se entrelaçam e se escondem nas surpresas de cada um. Olhos que se lêem, olhos que se imaginam, olhos que sorriem e lutam por adivinhar o coração. Subimos, depois da delícia e do nascer da noite, para o quarto do Hotel Napolitano. A cama recebeu-nos, o doce escondido de nossos corpos derreteu os lençóis feitos de seda, contou as maravilhas perdidas que fomos redescobrindo às almofadas desalinhadas e o chão acabou por nos abrigar, agradecendo aos deuses o sumo que vai saindo de nossos corpos. A noite entrou pela janela, faz-nos companhia e enreda-se em nós como a maré, transformando-se em gente, transformando-nos em pétalas de flor, em pássaros, em outros que outrora fomos. Fundimos os corpos na companhia do luar que nos ilumina e transforma.
Morremos e renascemos vezes e vezes sem conta nestas horas. A noite persegue-nos, o tapete levanta-nos, a vida transforma-se. Queremos ser todos os seres vivos do Mundo ao mesmo tempo. Agarramos os que já nos aconteceram e todos os outros que ainda seremos. Refugiamo-nos um no outro como um só. A Felicidade existe agora e aqui como nunca antes a sentimos
Voltámos a dar passos correctos em direcção ao que ainda falta percorrer. Acordámos no meio da estrada como num sonho, viajando apaixonadamente pela cor dos nossos beijos. Descemos por um pequeno barco invisível que alguém se entreteve a pintar numa imensidão azul. Como dois condenados, somos incapazes de imaginar um final mais cruel para os nossos actos. O meu príncipe nem sabe como lhe vai saber a mel este meu beijo.
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