Rodopiava sem o mesmo receio.
O corpo de Fernanda descansa sentado na pequena pedra de granito que faz de degrau à frente do jardim do senhor ministro.
O meu medo, mais uma vez, é de a perder nestas etapas em que a sua mente desliza para o desconhecido.
A água que bebe serve agora para seu consolo, renova-lhe as cores e não parece tão perdida.
Mantém o olhar preso ao chão, as mãos trémulas agarram o copo com dificuldade.
Volta a levá-lo à boca lentamente e bebe sem pressas recebendo a frescura renovada do néctar transparente.
Levanta os olhos em direcção ao céu. Procura os pássaros amigos que ainda agora pelas nuvens passeavam.
Recordo as palavras mágicas que me disse enquanto dormia naqueles dias de silêncio polvilhados com esperança.
Recordo acima de todas as outras, estas palavras:
Do vale à montanha
Da montanha ao monte
Desci na vontade de [encontrar] / engolir a tua sombra
De [encontrar] / engolir o teu mistério
De trocar os secretos caminhos
Por outros que teremos de encontrar
Em horizontes sem rios
Em rios sem pontes
Na Luz, no centro desnudado daquele vale
Caminhamos sem silêncios
Caminhamos desalinhados
Pisamos a imagem desfocada
No espelho deste leito refrescante
Que ao contrário de outros
Vai assim subindo
Do vale à montanha
Da montanha ao monte
Por penhascos pretos o tempo volta atrás
Volta a celebrar tudo aquilo que já fomos
Volta a encantar
Por nos transportar
Até ao cheiro da infância
Até ao púrpura que se cola aos dedos
Até ao doce que nos afaga a língua
Até aos prados onde nos conhecemos
Do vale à montanha
Da montanha ao monte
Desci na vontade de [encontrar] / engolir a tua sombra
Desci na vontade de encontrar
E engolir o teu mistério
Cavalo de sombra
adaptado de Cavaleiro Monge ( Fernando Pessoa )
Os momentos que nos colam a memória ao sonho e ao pesadelo são os mesmos. Enquanto fugíamos do centro do inferno cavalgando o fiel Felício, nada existiu, nada mais existiu nem nada se sonhou. Fernanda recorda os mesmos instintos e olha-me tão intensamente que os meus pensamentos passaram a ser seus. Tento fugir para um outro lado e não consigo. Nada do que eu penso lhe escapa.
A frieza inicial da experiência é substituída pela clareza, pela partilha, pelo sentimento de infinito que me invade neste instante. A viagem é comum e o azul é claro como o céu. O meu adversário passou a ser o nosso, o meu desejo, o meu destino, as minhas ilusões, todos os cansaços e todas as memórias são agora nosso património comum.
( LIVRO DE BERNARDO )
Com este pedaço de história se podem construir milhares de outras histórias, tal como um rio se pode transformar em mar, o mar em Oceano e o Oceano em vida. O que sai do mar tem força para transformar a vida, a mesma que cresce nas ondas, na areia, no princípio da selva, nos seus segredos, nas suas sombras. Da planície subi à montanha, desci à raiz das sequóias, até ao caule, o mesmo que se esconde nas profundezas da gruta mais funda. A vida encanta-se quando salto do cimo dos rochedos, quando fujo aos predadores, quando lhes dou caça. A vida não descansa, oprime mas liberta-me das angústias e dos medos. Dança comigo depois da noite, depois da lua, depois do gosto amargo que por vezes a pinta com cores escuras, que a transforma em pó e em vento e em miragem. A vida arrasta-se continuamente desde o socalco do seu princípio. Renasce por mistério nesta desmedida forma de loucura que nos esmaga, nos embriaga, nos ensina, nos perdoa, nos mima e nos alimenta.
Cedo percebi que nada mais fazia sentido. O poder da adivinhação que me foi estorvando os dias e as noites com loucura estão à beira do fim. Não me apercebi do vulto que pairava por cima de nossas cabeças. Não fui capaz de antecipar esta miragem que tudo destruiu e foi em mim que cresceu a vontade imensa em fazê-la acontecer.
Quis surgir depois da madrugada. Tudo aquilo que anteriormente se foi montando não é mais que um pedaço de sonho, uma amálgama de ideias, de desconexos pensamentos cruzados a preto-e-branco e sem a magia da tua presença. Vou voltar a adormecer. Talvez o sonho me possa trazer de novo a doçura da tua voz.
FIM.
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