quarta-feira, 9 de março de 2011

QUINTO ACTO - continuação VIII

São os pássaros que nos recebem de coração aberto quando saímos do refúgio de senhor Ministro. A vontade de falar foi abafada, a voz ficou colada ao céu-da-boca e tudo aquilo que a minha imaginação supôs ficou esmagada perante as imagens da pintura do governante. A vida é um estranho desígnio, uma composição, um tecido fino de cambraia ou organdi que faz uso dos viajantes para com eles tecer eternamente as suas rendas. Gostei de saber que nada me foi antecipado sem que antes a outros a miséria e a desgraça tenha sido igualmente relatada. Uma espécie de loucura começou a tomar conta dos meus dias. Preparei muitas acções para irem ao contrário de tudo o que me ia sendo explicado. Mas até essas tentativas me foram comunicadas, mesmo essas, as que eu ousei tentar alterar, apareciam-me momentos antes em vozes que gritavam em mim as exactas dimensões desses desvios. E assim, mais uma vez, se transformavam em norma. Nada é deixado ao acaso, como uma vil doença, uma maldade acrescida de uma tremenda solidão. E depois tudo começou a ser diferente desde a tua chegada. Os pedidos que fiz para que tudo pudesse voltar a ser como antes começaram a obter algumas respostas. O silêncio que a mim própria impus foi tábua de salvação, foi o meu escudo. Nesse esconderijo senti-me segura, protegida das gélidas situações que fazia acontecer e de todas as outras que me eram transmitidas. Não há nada de bom nesse império vil pois são tremendas as dores causadas pela ruína do seu saber. Fico grata por aqui ter chegado sem qualquer antevisão do que nos foi apresentado. Este retorno da normalidade é uma autêntica bênção, o calor da tua mão é uma autêntica bênção, a vida tal como existe é uma autêntica bênção. Os pesadelos voltarão, como antes, porque é natural que aconteçam. Não serão impostos ou desejados, nem dourados ou prateados, nem coloridos, nem serão dados avisos da sua apresentação. Quando descerem pelas árvores do adormecimento, apertar-te-ei ainda mais na minha direcção para que o teu calor os dissolva até mais tarde, até que numa outra noite mais cinzenta voltem a visitar-me. Dar-lhes-ei de beber com agrado sabendo agora que são, afinal, partes de mim.

- Bernardo, olha quantos pássaros voam lá no alto. Estavam à nossa espera, eu sei que eles estavam à nossa espera. Só me apetece chorar.

Sem saber porquê, as lágrimas começam a correr-me livres pelo rosto abaixo como água num jardim. Estes últimos dias têm sido pródigos em trazer até mim pequenos terramotos. Nada em minha vida é uma certeza, só Bernardo, que depressa tomou conta do meu coração. Nisso não há razão nem tão pouco esclarecimento, só satisfação. As lágrimas continuam a limpar-me o rosto e a toldar-me a visão. Avanço com a mão cada vez mais apertada à de Bernardo sem que a vista consiga focar o chão que vou pisando.



Ei-los a desviar a sua rota, passam atrás de nós, por cima de nós como se soubessem que estamos diferentes. Vieram ter comigo em liberdade para me dar a entender alguma coisa. Sei como interpretar a presença dos pássaros em sonhos, mas eis que aqui eles surgem tão reais, dotados de um comportamento fantasioso. Seremos um do outro assim há tanto tempo? Tantas e tantas portas nos foram escondendo, mantendo-nos afastados como dois estranhos. E que dizer da escolha feita para nos colocarem de novo frente a frente? E digo de novo pois sei que não foi na praça destruída e em ruínas que te vi pela primeira vez. Não sei quantas foram as vezes que passeámos juntos anteriormente, sempre com a mesma dificuldade em encontrar o momento certo para alimentar o coração. Será isso que os pássaros me vêm aqui transmitir? Sinto diferença nestas lágrimas que agora me fogem até ao chão. É seguramente isso que estes pássaros bailarinos nos vêm hoje comunicar.
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