terça-feira, 8 de março de 2011

QUINTO ACTO - continuação VII ( livro de Bernardo )



( LIVRO DE BERNARDO )


Vejo umas escadas que subo. Entro num quarto, estranho quarto onde as janelas abertas dão para uma imensa lagoa, talvez mesmo uma enseada onde o mar parece não ter fim. A vista alcança para o outro lado da enseada onde a terra se ergue numa montanha de dois cumes que sobem em direcção ao céu. A imensa montanha domina a paisagem com o silêncio como rei. O mar não se escuta, o vento é mudo e as nuvens parecem ter sido semeadas no azul de forma equilibrada. São muitas as gaivotas que bailam junto ao mar e nada as parece incomodar, nem mesmo as gigantescas cidades flutuantes que descansam em cima da imensidão azul.

De uma das janelas do quarto olho para ao montanha, para o mar, para o desespero perdido, para a ruína, para o que estando longe fica perto, muito mais perto de ti e de nós. Olho e não me consigo alhear da desventura e do pavor. A lembrança de um outro episódio surge no meio desta total ausência de som. Aqui o silêncio ainda é rei e senhor. Aqui vejo passar centenas de corpos ardentes, apavorados, correndo em todas as direcções e em nenhuma. As roupas deixaram de lhes fornecer compostura, alguns atiram-se para o chão rolando desesperados, tentando por cobro ao terrível padecimento. Uma luz imensa com o poder de mil sóis nasceu do centro do planeta tapando por completo o céu estrelado que antes se conseguia contemplar. Toda a vida desapareceu nesse instante neste lugar, o tempo fugiu, as pedras e o ar foram derretidos para sempre. Sem que o pudesse negar, começo a escutar novamente. Não podia ter sido escolhido momento mais inoportuno para que o dom da audição fizesse o seu retorno. É na fronteira da destruição causada pela luz incandescente que brotou das entranhas da terra que me encontro. Os esgares de dor destes milhares de mártires, as vozes, os gritos, são de tal ordem que não nasceram ainda as palavras certas para que os possa descrever. Os corpos desnudados que correm sem labaredas a vesti-los, trazem o rosto coberto de cinzas, os ombros cobertos de cinzas, os braços e as mãos cobertos de cinzas, o peito coberto de cinzas, o sexo coberto de cinzas, as pernas e os pés carregados de cinzas. Atiro-me para a cama que se encontra no centro do quarto, de barriga para baixo e com as mãos a taparem-me a face. Grito desesperada com quantas forças me permitem a garganta e a voz sem contudo me conseguir fazer escutar. Bato violentamente com as pernas e rolo para cada um dos lados da cama. Aperto os braços dobrados e os cotovelos em direcção ao corpo sem nunca tirar as mãos do meu rosto. De olhos cerrados, começo a morder os lençóis e a manta num reflexo incontrolável. No esforço para fazer desaparecer de vez esta lembrança, começo a bater violentamente com a cabeça na cabeceira da cama, uma, duas, três vezes, até que a salvação acaba por me ser cedida no final da quinta tentativa.

Passei mais uma vez pela escuridão morna e aconchegante, pelo silêncio e pela neblina. As dores não passam por aqui e o tempo deixa de fazer qualquer sentido. Os Libertadores são atirados para estes vazios de quando em vez. Vagueio sem rumo sabendo que o medo não tem razão de existir. Relinchos de cavalos, de muitos cavalos, são os únicos sons audíveis nesta imensidão. O cheiro que consigo alcançar, o único cheiro que me é aqui dado a conhecer, é o cheiro do dia daquela corrida, o cheiro do teu corpo onde descansei o rosto cansado antes de ter desfalecido. Voamos agora em direcção ao passado e ao futuro. Fazemos parte desses dois períodos sem que em nenhum deles possamos verdadeiramente dizer onde pertence o tempo presente.

Acordo junto à janela desse quarto, sem sentir o chão, sem sentir as cores e sem nada escutar. Olho a mesma paisagem e vejo as gaivotas a riscar o céu e o mar cinzento junto às enormes cidades flutuantes, junto à montanha do lado de lá do imenso mar. Não sinto o chão porque me trazes ao teu colo. Não sinto as cores porque me tapas os olhos enquanto me beijas os lábios com ternura. Não escuto os sons porque me tapas os ouvidos sempre que me acaricias e brincas com os meus cabelos. Desces comigo das alturas até ao reino do chão onde te ajoelhas. Sentas-me no centro da cama e colocas na minha mão direita o anel. Tudo o que me querias dizer está agora reflectido no sorriso do teu rosto.


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