sexta-feira, 18 de março de 2011

QUINTO ACTO - continuação X


Os únicos observadores aqui presentes vão descendo das alturas. O vento sopra com grande intensidade. Alguém o tentou e a intensa ventania ameaça tornar-se num temporal com proporções de ciclone. A água acabou o jejum neste final de Verão e finalmente começa a cair em bátegas fortes e compassadas. Ninguém se pode já queixar da sua falta. A corrente desce dos céus acompanhada por intensa trovoada. Rajadas fortíssimas dificultam-me a tarefa de encerrar as janelas e as portadas. A água tenta forçar a sua entrada nas divisões. Lefébvre vai chegar todo encharcado ao hospital caso ainda vá a caminho. A água da chuva vai ajudar a limpar a cidade pantanosa ao aumentar de caudal pelas ruelas outrora empoeiradas. Finalmente o Tejo vai poder respirar de algum alívio. O rio cemitério gastou todas as lágrimas quando recebeu os corpos dos milhares de mortos que caíram com a cidade. Ele próprio cresceu com a ajuda do mar enlouquecido e ajudou a destruir muito daquilo que ainda se conseguia manter de pé por um qualquer milagre. Presa de um destino cruel, foi-me difícil acreditar na vida como sobrevivente do terremoto. A vida transformou-se definitivamente depois daqueles minutos de angústia que tudo mudaram. Um deserto nasceu, uma solidão incomparável tomou conta de mim. Um frio impossível move-se como um réptil dizendo-me que nunca mais verei quem eu procuro. Quero voltar atrás, quero voltar para os dias antes da tragédia e sonhar com um novo Novembro sem o desastre. Um Mundo diferente onde as águas são calmas, o céu sempre azul, e onde a terra se mantenha sempre firme, fiel à sua missão.
As árvores surgem verdes e as flores perfumadas. O cheiro dos cavalos paira no ar, a luz invade o quarto, a casa toda. A mão no peito do meu filho protege o seu sono. A floresta está toda ardida e os tremores de terra continuam a fazer-se sentir. É difícil recordar as coisas neste lugar onde Deus deixou de falar. A fogueira já está acesa, o novo adormecer transporta mais um pesadelo, um em que tudo arde e apenas ficam as cinzas para contar a história. O ciclone é quase furacão e a morte já é vista como esperança. Lefébvre é lindo, um amigo que não imaginava saiu do túnel mascarado de esperança. O ruído incomoda e a sujidade é tremenda. Vai demorar dias para por tudo limpo e no seu devido lugar. Corro no meio da floresta ardida com o meu filho a acompanhar-me. Fugimos da desgraça e do medo mas somos perseguidos e as perguntas surgem umas atrás das outras sem parar. Vou para sempre tomar conta de ti porque essa é a minha obrigação. Já não há nada para conversar e a única vontade que me acompanha é a vontade que tenho de sobreviver a todo o custo. A chuva não pára de cair, o céu vestiu-se de um cinzento escuro, muito escuro, tão escuro que recordo os dias em que desejei morrer quando era jovem, quando me usavam para tudo o que não interessa recordar. O meu filho tapa os ouvidos para não me ouvir lamentar. As pontes são cada vez mais altas, as recordações pesadas, as despedidas dolorosas e o medo de falhar simplesmente insuportável. O calor é o mais importante, manter este calor aceso para sempre e assim derrotar a escuridão. A trovoada tomou conta da cidade, os trovões são imperadores e a água abastece os lugares escondidos com inclemência. Se eu morrer quem te irá proteger meu filho? Não fales, não grites pois os Libertadores podem escutar qualquer lamuria, qualquer gesto, qualquer cheiro de tristeza ou de doença. Temos de fugir daqui sem que dêem conta da nossa fuga. As lareiras voltaram a acender-se e o cansaço tomou conta de nós. Andamos sem saber ao certo que rumo tomar. São mais as dúvidas que as certezas. A fome tomou conta de nós. Esqueci Lefévbre e os dias são feitos de mentiras. O amor parece ter desaparecido, só o meu amor por ti, meu filho, se mantém eterno. E é essa a certeza única que me faz continuar. Não quero que me vejas chorar agora que os vidros se começaram a partir e a música deixou de se fazer escutar. Uma pequena maravilha pode sempre acontecer e tudo porque não se deve deixar acabar a esperança. Afinal, talvez se deva agradecer aos Libertadores por tudo o que somos e por tudo o que existe. Agradecer pelo meu filho, pelo nosso filho que agora descansa, agradecer as memórias, a relva verde e agradecer o calor deste mundo quando se mantém quente.
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